Elias Boainain Jr.
*Trabalho de Participação no IX Encontro Nordestino da Abordagem Centrada na Pessoa, Valença, Bahia, de 21 a 25 de abril de 1999.
“Nós temos sempre ajudado as pessoas a explorar a si mesmas e suas circunstâncias. Está a abordagem centrada na pessoa também dirigida a ajudar as pessoas a explorar experiências em áreas que transcendam a elas mesmas?”
Carl R. Rogers
I. APRESENTAÇÃO
O objetivo deste texto é apresentar, numa visão panorâmica e ilustrativa, alguns fenômenos experienciais que tenho observado como característicos do que é vivenciado pelos participantes dos grupos transcentrados. Os grupos transcentrados constituem uma tentativa, por mim idealizada, de aplicação da metodologia rogeriana de facilitação grupal fora de suas propostas habituais enquanto escola de Psicologia Humanista e dentro de um campo temático mais próximo do que caracteriza as escolas de Psicologia Transpessoal.
Carl Rogers tem sido considerado, com justiça, um dos principais líderes e expoentes do movimento, ou corrente, da Psicologia Humanista, e a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), por ele criada, é reconhecida como uma das mais típicas e modelares escolas de psicoterapia humanista-existencial. Creio, e desejo, que ele possa ser também reconhecido como tendo contribuído, assim como inspirado desenvolvimentos nessa direção, para a constituição de uma escola afinada a um outro movimento da psicologia contemporânea, a Psicologia Transpessoal.
Especialmente no aspecto teórico, estou convicto, Rogers realizou, nos últimos anos de sua vida, importantes transformações nos fundamentos de sua compreensão e abordagem dos fenômenos psicológicos. Essas transformações, separadamente e em conjunto, sem negar totalmente suas concepções anteriores, têm o sentido geral de ampliar sua visão sobre o ser humano e o universo que o cerca. Essas mudanças configuram, no meu entender, uma forte e articulada tendência de afastamento dos pontos de vista das psicologias humanistas mais tradicionais e de aproximação do conjunto de escolas teóricas e práticas que se congregam no movimento auto intitulado Psicologia Transpessoal. Não cabe aqui uma descrição detalhada do que sejam a Psicologia Humanista e a Psicologia Transpessoal (vide a respeito Boainain Jr, 1994 ou Nagelshmidt,1996), tampouco uma defesa de minha afirmação de que Rogers deixou estabelecidos os fundamentos de uma completa transformação da ACP em uma nova escola de Psicologia Transpessoal, o que, ademais, já foi assunto de minha dissertação de mestrado (Boainain Jr, 1996). Do que tratarei aqui é algo que vai um tanto além do que Rogers criou, e se refere a um trabalho que venho desenvolvendo há pouco mais de quatro anos, ainda a nível experimental, e que intitulo grupos transcentrados.
Os grupos transcentrados nasceram de uma idéia até certo ponto bastante simples, mas nem por isso menos interessante: aplicar os princípios de trabalho psicológico (especialmente grupal) desenvolvidos pela ACP a um campo que até então não havia sido especificamente focado pelos trabalhos com grupos de metodologia rogeriana, ou seja, o campo da transcendência, da espiritualidade, das possibilidades últimas, das experiências religiosas e dos estados alterados de consciência, temáticas essas que, em seu conjunto, caracterizam o foco principal de interesses das teorias e métodos das escolas de Psicologia Transpessoal. Em outras palavras, os grupos transcentrados são uma metodologia grupal, de inspiração rogeriana, voltada para a exploração e desenvolvimento das potencialidades transpessoais dos participantes.
Basicamente o grupo transcentrado pode ser considerado um grupo de encontro temático, ou seja, um grupo reunido em uma situação de não-diretividade e contando com as demais condições propostas por Rogers como propiciadoras de um clima de facilitação do desenvolvimento pessoal e grupal, tendo previamente assumido um objetivo, ou tema, comum para suas atividades. Nas aplicações mais usuais da metodologia grupal rogeriana – a saber, os grupos de psicoterapia, de encontro e de formação de comunidade – os objetivos e a temática grupal costumam centrar-se, respectivamente, na resolução de problemas psicológicos individuais, ou no desenvolvimento de potencialidades auto-expressivas e relacionais, ou ainda no aprendizado da construção comunitária. No caso dos grupos transcentrados a temática proposta refere-se à exploração das potencialidades transpessoais dos participantes, ou seja, é oferecida uma oportunidade para que possam, num contexto livre e grupal, experienciar e explorar a dimensão espiritual e transcendente de si mesmos e da realidade, como quer que cada um entenda (ou descubra) o que isto seja ou possa ser.
Tenho posto em prática essa idéia na forma de workshops intensivos de final de semana, intitulados encontros transcentrados, realizados de forma experimental, ou seja, com finalidades de pesquisa e sem fins lucrativos, contando apenas com participantes convidados, conscientes e de acordo em participar de uma investigação em andamento (para os interessados em uma explicação um pouco mais detalhada do que são os grupos transcentrados e sobre a forma como têm sido organizados e realizados os encontros transcentrados, o Anexo I traz um texto de divulgação e esclarecimento que tenho utilizado para apresentar e explicar a proposta às pessoas convidadas a participar da experiência). Na verdade, a investigação dos efeitos, características e possibilidades dos grupos transcentrados é o tema de que se ocupará minha pesquisa de doutorado, conforme projeto já elaborado (Boainain Jr, 1997). O presente texto é uma primeira notícia dessa investigação, uma espécie de estudo-piloto, focalizando mais especificamente os tipos diferenciados (em relação ao habitualmente observado nas aplicações da metodologia rogeriana de trabalho com grupos) de experiências vivenciadas pelos participantes dos encontros transcentrados.
Até o momento foram realizados oito encontros transcentrados, em diferentes lugares, sempre na forma de workshops residenciais intensivos de fim de semana, com dois a quatro dias de duração. Cerca de 100 diferentes pessoas já participaram desses encontros, e por volta da metade delas participou de mais de um, tendo muitas participado de vários. Os oito encontros ocorreram nas seguintes localidades e datas, e reunindo os seguintes números de pessoas:
1O Encontro Transcentrado: Pindamonhangaba, SP, com 22 participantes, de 18 a 20/11/94
2O Encontro Transcentrado: Petrópolis, RJ, com 25 participantes, de 17 a 19/03/95
3O Encontro Transcentrado: Pindamonhangaba, SP, com 19 participantes, de 12 a 15/10/95
4O Encontro Transcentrado: Paulo de Frontin, RJ, com 35 participantes, de 25 a 28/7/96
5O Encontro Transcentrado: Porto Alegre, RS, com 12 participantes, de 15 a 17/11/96
6O Encontro Transcentrado: Tremembé SP, com 22 participantes, de 7 a 11/02/97
7O Encontro Transcentrado: Ubatuba, SP, com 36 participantes, de 6 a 9/11/97
Encontro Transcentrado: Cristina, MG, com 38 participantes, de 6 a 9/8/98.
Os depoimentos citados neste trabalho foram fornecidos por participantes e utilizados com sua permissão. Referem-se à participação em diversos dos encontros já realizados e foram obtidos de variadas formas: relatos livres escritos ou gravados, “diários” de experiência redigidos durante o encontro, extratos de correspondência entre participantes, resposta a questionários e gravação de reuniões para relato e discussão de experiências. Mantive o anonimato dos autores nos relatos, utilizando letras maiúsculas para representar os participantes referidos nos depoimentos, sendo que a mesma letra é mantida para o mesmo participante no caso de ser citado mais de uma vez.
II. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO QUE É VIVENCIADO PELOS PARTICIPANTES DOS GRUPOS TRANSCENTRADOS
Nesta seção busco sintetizar, ainda que de forma um tanto superficial e exploratória, algumas características que, segundo minhas observações e conforme será ilustrado por trechos de relatos e depoimentos, podem ser consideradas como ocorrências típicas das vivências experimentadas pelos participantes dos oito encontros transcentrados já realizados. No caso deste estudo específico serão enfocados apenas aspectos dos efeitos imediatos dos grupos transcentrados, ou seja, aqueles fenômenos experienciais e comportamentais ocorridos durante, e como possível conseqüência deste, o decorrer da vivência intensiva dos encontros, ou workshops, que utilizaram esta metodologia de trabalho grupal.
Vários outros aspectos de interesse, que continuam sendo investigados e possivelmente serão abordados em futuros estudos, foram deixados de lado nesta pequena investigação piloto. Entre os aspectos que aqui não serão especificamente considerados (embora vez por outra possam ser superficialmente referidos) destacam-se a descrição das características do processo dos grupos transcentrados, a discriminação das diferenças e semelhanças entre os grupos transcentrados e outras metodologias grupais rogerianas, a caracterização do trabalho de facilitação nesse tipo de grupo e os efeitos a longo prazo observados nos participantes.
É oportuno ressaltar também que as observações referem-se aos oito encontros transcentrados que ocorreram, os quais na prática consistem na única experiência (salvo algumas reuniões mais curtas de demonstração) já realizada com a metodologia, por mim proposta, dos grupos transcentrados. Assim sendo, creio ainda ser prematuro dizer se as características aqui descritas e apresentadas possam ser consideradas típicas e esperáveis de quaisquer futuras aplicações da referida metodologia, ou restringem-se, em maior ou menor grau, aos encontros até aqui realizados, estando associadas às idiossincrasias das pessoas e das próprias configurações grupais que os constituíram. Ressalte-se, nesse sentido, que não obstante o clima de permissividade e não programação dos workshops, o fato de muitos participantes terem vindo a mais de um encontro pode estar contribuindo para a criação de uma certa cultura nesses encontros, a qual influenciaria os acontecimentos na direção de certos resultados e comportamentos predeterminados, os quais poderiam ser outros no caso de experiências realizadas apenas com participantes “novatos”. Assim, parcimoniosamente, as características a seguir apresentadas deverão ser consideradas apenas como observações descritivas das ocorrências relatadas em oito encontros realizados com a metodologia dos grupos transcentrados, permanecendo em aberto a questão sobre até que ponto as mesmas ocorrências possam ser consideradas como típicas e esperadas no que diz respeito a futuras aplicações da mesma metodologia.
Por fim, quero observar que, embora eu tenha dividido minhas observações em cinco tópicos, referentes a cinco categorias de características do fenômeno que me parecem relevantes e típicas, esta divisão tem principalmente finalidade expositiva, posto que as ocorrências descritas e os relatos apresentados freqüentemente envolvem mais de uma das categorias de características propostas. Além do mais, o fato de eu me referir a cinco classes de características não significa, necessariamente, que estas abranjam a totalidade do fenômeno investigado, nem mesmo que elas se refiram aos seus aspectos mais notáveis e significativos. Tão somente referem-se aos fenômenos que, no estado atual de minha pesquisa, já me é possível discriminar e descrever enquanto observações relevantes.
1. Ocorrência de Estados Alterados de Consciência e Experiências Transpessoais
Um dos tópicos centrais de interesse da Psicologia Transpessoal são os estados alterados de consciência – também chamados estados inusuais de consciência – e em especial aqueles classificáveis como experiências transpessoais. As diversas formas e metodologias de psicoterapia transpessoal estão envolvidas na utilização de vários destes estados inusuais da vivência consciencial como forma de acesso a inúmeras potencialidades de cura, crescimento e transformação, tanto psicológica quanto espiritual. Assim, naturalmente, os grupos transcentrados, enquanto metodologia que se pretende transpessoal, trazem em sua proposta um desejo e expectativa de exploração dessa via privilegiada de desenvolvimento das potencialidades transpessoais. E de fato, conforme o esperado, os grupos transcentrados têm se mostrado eficiente propiciador da ocorrência de diversas modalidades de estados alterados de consciência e experiências transpessoais. É o que brevemente será comentado neste tópico.
Para Charles Tart (1991, 1997), o primeiro a propor o conceito de estados alterados de consciência, um estado de consciência define-se enquanto um sistema, uma gestalt, um padrão, um conjunto, e não por aspectos parcializados da experiência (percepção, identidade, cognição, etc…). Conseqüentemente, a designação estado alterado de consciência refere-se àqueles momentos em que a pessoa sente que sua consciência apresenta um padrão de funcionamento qualitativamente diferente de seu estado usual. Nesse sentido, tem sido uma constatação bastante comum, entre diversos participantes dos encontros transcentrados, a vivência de estados conscienciais de variadas intensidades em que se sentem “funcionando”, digamos assim, de maneira bem diferente do que estão acostumados no dia a dia de sua existência, experimentando notáveis mudanças envolvendo o conjunto de vários aspectos de seu aparato psíquico. Participantes veteranos dos encontros passaram até a utilizar do vocábulo “trans” para indicar a qualidade diferenciada desses momentos em que se encontram em estado alterado, falando por exemplo: “estou trans”, “fiquei trans”[1], etc. Um participante, em carta para colega, fala da qualidade única e diferenciada de suas experiências em dados momentos do encontro, frisando serem estas inclusive distintas, no seu caso, daquelas vividas em contextos religiosos de desenvolvimento da espiritualidade os quais, freqüentemente, também envolvem o trabalho de alteração da consciência:
Em relação à minha espiritualidade, as experiências que vivenciei nesses importantíssimos encontros transpessoais, jamais havia vivenciado em qualquer momento de minha vida. Em nenhuma igreja, templo de qualquer religião ou seita, qualquer centro espírita ou terreiro de macumba. Essas coisas só acontecem comigo com esse grupo. Única e exclusivamente com esse grupo!
De acordo com alguns depoimentos, além de propiciar experiências em estados alterados, a participação nos grupo transcentrados oferece também a possibilidade de um aprendizado vivencial de desenvolvimento de uma maior capacidade de autocontrole e intencionalidade na obtenção e exploração destes estados. É o que observa uma participante ao comentar mudanças que sentiu a este respeito após participar de três encontros (o 1O, o 7O e o 8O):
(…) nos primeiros “trans” participei de forma “passiva”, deixando que os fenômenos ocorressem espontaneamente, mas a partir desse último minha postura mudou para “ativa”. A cada momento eu tinha a intenção de provocar o estado alterado e tinha uma finalidade.
O processo então fica muito mais rico, não é mais simples “experiências”, e sim atos intencionais com objetivos de acrescentar algo mais ao nosso crescimento pessoal.
Digo também que parece ser uma trajetória a percorrer, primeiro acontece espontaneamente e nós “aprendemos” a buscar estes estados alterados. Pelo menos eu acho que comigo funcionou assim, eu aprendi que a dança, a meditação, abrem os canais e me levam para outra dimensão, e assim que chego lá, então tento ficar o maior tempo possível e tenho conseguido cada vez mais, mesmo aqui fora do grupo.
Outra participante, comentando em relato gravado suas experiências na primeira reunião do grupo durante o Encontro, fornece um vívido relato fenomenológico de como esta busca intencional de um estado alterado de consciência nela ocorreu através de uma mescla entre um esforço mental interior (que compara à meditação) e envolvimento no processo grupal:
No primeiro grupão[1] , na hora em que nós nos sentamos, eu comecei a viver tantas coisas, a sentir tantas coisas (…) Olha só, quanta coisa se vive apenas numa “sentada” no grupão!
A primeira coisa que me aconteceu de forte, naquele grupão[2], foi como numa meditação uma dificuldade de sair do pessoal, de deixar que os pensamentos e os sentimentos, que vinham forte, passassem, não ficar me prendendo a nenhum deles, não ficar parando em cada um que vinha…vinham coisas, vinham coisas… mesquinhas até…coisas rolando e eu tentando soltar, soltar… e nesse esforço, nesse empenho de estar lá buscando mesmo algo além, estar olhando para o grupo, de estar chamando a energia do grupo para que ficasse mais coesa, e fui indo nessa pequena batalha. Num determinado momento o “F” colocou aquelas velas ali no meio e comecei olhar para as velas, nesse empenho, e comecei a viajar, e comecei a pensar na nossa necessidade de buscar a luz, de buscar a luz, e como aquelas mariposas que estavam ali voando em volta da luz e eu percebia que elas se queimavam, e aquilo doía em mim, mas é nisso, é assim, a luz está aí e a gente não sabe bem porquê mas o homem busca e era aquilo que a gente estava buscando como grupo, a gente estava buscando a luz, a gente estava buscando algo incompreensível, incompreensível, e necessário… Eu gostei de uma hora em que o “D” falou de “inominável”, de Deus, e eu senti um pouco isso, que a gente estava buscando algo muito além e que às vezes a gente precisava se queimar mesmo, se queimar nessa busca, morrer mesmo, por mais que isso doesse, tinha que morrer muita coisa ali. Eu olhava para as pessoas e eu sentia essa necessidade ficando mais forte.
Existem, é o que mostram as pesquisas nesse campo, uma enorme variedade de estados alterados de consciência, e muitos deles têm sido explorados em suas potencialidades não apenas pelas modernas psicoterapias transpessoais, mas imemorialmente pelas culturas humanas, especialmente no campo das tradições místicas e religiosas. Diferentes metodologias e contextos, embora envolvidas no mesmo campo amplo do desenvolvimento psicológico e espiritual, muitas vezes induzem e lidam com diferentes qualidades de alteração da consciência, sendo inapropriado tratá-las como se fossem um fenômeno só. Walsh (1997), por exemplo, tratou da questão em um
interessante artigo, em que busca critérios que permitam discriminar diferentes estados alterados de consciência, comparando os estados vivenciados na experiência xamânica, na desestruturação esquizofrênica, e em dois diferentes tipos de meditação oriental (budista e iogue). Quanto aos estados inusuais de consciência vivenciados nos encontros transcentrados, entretanto, no estágio atual de minhas observações seria prematuro afirmar que apresentam características distintas dos vivenciados em outras metodologias ou circunstâncias. Provisoriamente, e escudado no fato de já terem sido observadas e relatadas nos encontros transcentrados variadas modalidades de alteração da consciência, prefiro considerar que diversos fatores presentes nesses encontros agem como, utilizando a terminologia que Grof (1997) empregou para referir-se às drogas psicodélicas, “catalisadores inespecíficos”, ou seja, não predeterminando a natureza da experiência mas apenas quebrando o padrão habitual de consciência e favorecendo a emergência de vivências mais condizentes com o momento e as necessidades da pessoa submetida à sua ação. A própria ênfase rogeriana e não-diretiva, traduzida no clima de liberdade para que cada um viva à sua maneira sua espiritualidade e a dimensão transcendente de sua experiência, reforça a idéia de um estímulo genérico para a vivência da transpessoalidade. Não descarto, contudo, que a continuidade das observações venha a indicar tendências, ou predominâncias, de certas características ou qualidades nas alterações de consciência vivenciadas mais freqüentemente pelos participantes dos encontros transcentrados. Por ora, será interessante registrar algumas modalidades de experiências transpessoais cuja ocorrência já foi observada e relatada no contexto dos grupos transcentrados.
O conceito de experiências transpessoais, enquanto possibilidades acessíveis a diversas formas de alteração da consciência, foi proposto por Grof (1983), inicialmente com o propósito de categorizar todo um domínio experiencial a que teve acesso em seus anos de pesquisa sobre os efeitos do LSD. Genericamente, as experiências transpessoais foram definidas por ele (Grof, 1997) como aquelas em que há “expansão experiencial ou extensão da consciência além dos limites normais do corpo e do ego, e além das limitações de tempo e espaço” (p: 54).
A partir dessa definição mais ampla, Grof traça todo um esquema categorizador para diferenciar e classificar as diversas modalidades possíveis de experiências transpessoais. Em sua “Cartografia da Consciência” distingue três principais grandes categorias de experiências transpessoais, as quais por sua vez se dividem em um considerável número de subcategorias. Em minhas observações foi possível notar a ocorrência, nos grupos transcentrados, de experiências classificáveis em cada uma das grandes categorias de experiências transpessoais, embora não em muitas das subcategorias propostas e relatadas por Grof.
A primeira grande categoria da classificação de Grof (1997), refere-se às experiências de extensão da consciência “dentro da realidade e do espaço-tempo consensuais”. Nesta categoria, as experiências não rompem com a visão consensual de realidade, mas a consciência parece ultrapassar os limites em que se encontra restrita no estado de vigília habitual. Esta primeira categoria abrange duas principais subcategorias (por sua vez subdivididas em diversas modalidades de experiências transpessoais), respectivamente envolvendo transcendência dos limites espaciais e a transcendência dos limites do tempo linear.
Participantes dos encontros transcentrados têm relatado experiências, por assim dizer, “clássicas” enquanto experiências transpessoais de transcendência dos limites espaciais e temporais. A experiência de dissolução dos limites do corpo e de expansão da identidade até incluir porções do ambiente, típica experiência de transcendência dos limites espaciais, é relatada por uma participante ao descrever em seu diário sua experiência na primeira reunião do Encontro:
Agora me proponho uma tarefa difícil, que é a de colocar na linguagem verbal experiências que vivi num “nível averbal”
É tudo tão complexo e simples ao mesmo tempo, tão grande que não cabe nos textos, nas palavras.
É como se uma energia imensa me arrastasse para o fundo, e esta viagem é minha, comigo mesma, vou em frente e me entrego. O silêncio do grupo penetra em meu corpo, calando meu coração, minha respiração e de repente estou em silêncio e em paz.
Este foi o efeito que consegui hoje, durante o encontro do grupo da noite, uma imensa paz, vibrações passam por mim sem resistências, como se em meu corpo não existisse matéria, como se me misturasse com cada pessoa que está aqui presente, o fogo se faz na sala e em volta de mim e tudo fica escuro e iluminado.
Devagar as coisas se misturam, silêncio, luz, escuro, vozes, e sinto que sou tudo isto ao mesmo tempo, a sensação é de quietude e paz.
(…) Neste estado de paz vou dormir e sonhar, guardo as palavras para não perder a imensidão de energias que vêm e vão passando por mim e por todos, expandindo-se cada vez mais rumo à natureza.
Outro participante relembra, em reunião realizada após o encontro, ter passado por uma experiência semelhante no mesmo workshop, só que com uma expansão consciencial ainda mais abrangente no sentido espacial e envolvendo também uma sensação de superação dos limites do tempo linear, havendo ainda referência à possibilidade de se tratar de uma experiência vivida de forma compartilhada à distância por outro membro do grupo:
Me deu uma vontade muito grande de entrar na piscina (…) De repente eu fechei o olho na piscina e comecei a viajar. Nisso eu comecei a sentir que eu não estava só na piscina. Eu estava em todos os lugares: eu era a piscina inteira, eu era a água, eu era o ar que estava rodeando, eu era o céu que estava encima de mim, eu era a terra… E eu também não estava só naquele tempo, e estava… eu tive a sensação de estar em todo o tempo, no passado, no presente, no futuro… E um dos lugares que mais me chamou a atenção foi a montanha, do lado, e de noite, quando eu conversei com o “M” e contei isso para ele, ele fala que, justamente nessa hora, ele estava lá de cima e ele olha para mim e ele sentiu a mesma coisa que eu estava sentindo, como se ele não estivesse só naquele lugar, mas estivesse em todos os lugares, em todos os tempos.
Uma das modalidades de experiências de transcendência do tempo linear classificada por Grof, refere-se às experiências de vidas passadas. A teoria da reencarnação, só aceitável, numa perspectiva científica moderna, no contexto da Psicologia Transpessoal, é polêmica e recebe diferentes ênfases ou referência nas diversas escolas de psicologia e psicoterapia transpessoal. Reservando-me o direito de suspender o juízo sobre a natureza dessas experiências, e independentemente do fato de considerarmos tais experiências como sendo de natureza simbólica ou referente a fatos concretos, é oportuno observar que um número significativo de participantes relata vivências desse teor, por vezes compartilhadas, indo desde impressões vagas até a lembrança de cenas mais ou menos detalhadas de fatos hipoteticamente ocorridos em outras de suas vidas. Eis, por exemplo, um trecho de correspondência trocada entre participantes do 2O Encontro e que fala de uma impressão desse tipo:
Outra fantasia que gostaria de lhe escrever é a seguinte: após vivenciarmos a tormenta, quando nos olhávamos, a história que pensava dizia que em “outra vida” você era homem e eu mulher, e nesta viemos trocados. Você guardava uma mágoa muito grande em relação a mim por algo que passamos e foi mal interpretado ou compreendido, e foi numa situação como aquela. Não sei direito qual o sentido disso… mas naquele momento fazia. (…). Acredita em reencarnação? Eu tenho minhas dúvidas.
A segunda grande categoria de experiências transpessoais proposta por Grof, refere-se à expansão consciencial além dos limites da realidade e do espaço-tempo consensual, ou seja, vivências que dão acesso a regiões, ou dimensões, da realidade para além do que é percebido e aceito como realidade objetiva em nossa vivência cotidiana. Grof inclui aí diversas subcategorias de experiência, como por exemplo: experiências espíritas e mediúnicas; experiências energéticas do corpo sutil; experiências de espíritos animais; encontros com guias espirituais e seres supra-humanos; visitas a outros universos e encontros com seus habitantes; experiências de arquétipos e seqüências mitológicas complexas; experiência de encontros com deidades diversas; compreensão intuitiva de símbolos universais; etc.
Algumas experiências classificáveis nessa categoria parecem ocorrer de forma mais ou menos freqüente entre os participantes dos encontros transcentrados. Há vários relatos, por exemplo, de diferentes participantes, de percepção mais ou menos clara, durante momentos de alteração da consciência, da presença de “entidades” (espíritos? figuras arquetípicas? entidades supra humanas? personificação simbólica de conteúdos inconscientes?) de uma outra dimensão. Uma participante, por sinal de formação evangélica e sem especial simpatia por concepções religiosas que enfatizam a existência de tais seres, relata ter vivido a seguinte experiência durante o 3O Encontro:
A gente foi até o rio de novo (…) Eu fiquei com a “L” e a “U” e a gente resolveu se abençoar. E quando eu abençoava cada uma delas eu, quando levantava a minha mão, eu via uma mulher muito alta, como se ela estivesse do meu lado, uma mulher de cabelos negros, compridos, toda vestida de azul, e aquilo foi muito estranho. Ela como que abençoava, e essa mulher ficou comigo depois daquele workshop um bom tempo, depois também sumiu.
Outro participante, o qual por sua vez relata ter ido ao 8o Encontro com a expectativa de entender melhor certas inclinações e vivências que lhe ocorriam como a indicar sua tendência e potencialidade em seguir um caminho nesse sentido (de “mediunidade”), as quais entretanto rejeitava e tendia a nelas não acreditar, relata uma experiência mais elaborada, em estado alterado de consciência, de contato com habitantes desse mundo espiritual, e que para ele tiveram um certo sentido de confirmação de sua vinculação com este nível transcendente da realidade:
No primeiro dia, na quinta feira, eu estava acompanhado. E eu via perfeitamente, assim, a pessoa do meu lado. E era um índio. Nesse dia mesmo (…) Eu fiz uma viagem muito grande, mas numa velocidade muito assim que… difícil de dizer qual a velocidade, mas eu sei que eu fui, cheguei e voltei ao mesmo tempo. Além do mais essa viagem foi muito clara, foi no meio da mata… como se tivesse voando, realmente. E ao mesmo tempo em que eu estava numa velocidade muito grande, eu tinha todo o conhecimento dos lugares onde estava passando. E eu cheguei até uma tribo, uma tribo assim indígena. E ali foi conversado, em várias línguas, tudo né, até em língua indígena… e quando eu estava lá até pensei “puxa, eu nunca tinha pensado que eu fosse conversar em tupi-guarani” (…) E no retorno eu via assim que essa pessoa estava me acompanhando (…) Até eu deixei um símbolo, escrito num papel. E aquele símbolo já estava na minha cabeça (…) mas eu não sabia o que seria, depois ele me disse. Aquele símbolo era o nome dele: Sete Flechas.
É interessante notar que, embora vários dos participantes dos grupos transcentrados tenham envolvimento e mesmo vinculação com o espiritismo kardecista, com a umbanda e o candomblé, tem sido uma experiência extremamente rara nos encontros a manifestação de fenômenos mediúnicos envolvendo a “incorporação”. Embora sejam relativamente comuns vivências envolvendo momentânea alteração de identidade e personalidade, algumas da quais chegaram a ser interpretadas por alguns membros do grupo como tendo uma qualidade “manifestação mediúnica”, pessoalmente lembro de ter presenciado apenas um acontecimento, assim mesmo rápido, em que estavam presentes indicativos mais ou menos típicos de que estaria ocorrendo o chamado “transe de incorporação”, com o que concordou o próprio sujeito da experiência, o qual na época era médium umbandista iniciante. De uma maneira geral, por tratar-se de um fenômeno de alteração da consciência fortemente identificado com determinadas doutrinas religiosas, e de interpretação bastante negativa do ponto de vista de outras posições sectárias, intuo que a baixa ocorrência, pelo menos de forma mais explícita, desse tipo de fenômeno talvez se deva a uma espécie de respeito para não chocar, perturbar ou mesmo assustar pessoas, especialmente aquelas de formação católica ou evangélica mais rigorosa, que participam do encontro.
A terceira e última grande categoria de experiências transpessoais proposta por Grof refere-se às “experiências transpessoais de natureza paranormal”. Esse assunto será tratado mais adiante, em tópico específico.
2. Vivência da Religiosidade e Expressão de Atitudes Devocionais
Um dos aspectos mais interessantes dos grupos transcentrados, diz respeito às formas com que as pessoas entram em contato com a dimensão religiosa de sua espiritualidade. Este fator, em grande parte, é influenciado e propiciado pela própria proposta do encontro, e também pela natureza dos convidados, os quais – pessoas no geral já atentas ao desenvolvimento de sua espiritualidade – têm estimulada a intenção de vivenciar a dimensão espiritual de seu ser.
Mesmo os participantes dos encontros transcentrados que já têm todo um trabalho pessoal de desenvolvimento espiritual, por vezes dentro de uma religião mais específica, sentem uma grande libertação na vivência e expressão de sua religiosidade de uma forma desinibida e compartilhada, a qual em outros contextos costuma encontrar pouco espaço público para exposição, sendo habitualmente vivida de forma mais contida, disfarçada e privada, ou então dentro de algum ambiente religioso mais formal e sectário.
Temos aqui um aspecto que também diferencia muito os grupos de encontro e as comunidades de aprendizagem rogerianos habituais dos grupos transcentrados. Nos encontros rogerianos habituais – salvo em momentos fortuitos e pouco usuais – há poucas vivências envolvendo uma religiosidade mais explícita, ou mesmo íntima. Enquanto que nos grupos rogerianos habituais os participantes passam muito tempo pensando em seu próprio jeito de ser nas relações interpessoais, nos grupos transcentrados muitos se envolvem na interação com algo mais profundo, elevado e transcendente, o que assume para a maioria um sentido religioso de contato com Deus. Mesmo nos encontros religiosos formais, que por vezes usam da metodologia do encontro intensivo como forma de propiciar experiências classificáveis como místicas e religiosas, isto se dá dentro de uma armadura tanto a nível sectário quanto na própria estrutura do encontro, altamente direcionado e programado. A total liberdade dos grupos transcentrados acaba por permitir a espontaneidade, tanto ideológica quanto de ação, na expressão da própria espiritualidade de cada um. Uma participante do 8o Encontro Transcentrado, bastante envolvida com a vivência espiritual no Catolicismo, comenta as diferenças que percebeu em relação aos encontros religiosos formais que já conhecera:
O Encontro Trans foi a primeira experiência mística que vivi fora do contexto religioso católico, embora já tenha experienciado essa mística em cursos de liturgia com perspectiva ecumênica e retiros da Renovação Carismática Católica.
O novo foi o “imprevisto” e a liberdade de opção e ação para oração, contemplação e vivência espiritual (trans)
Eu fui com uma expectativa e não foi o susto que eu esperava. Estava com medo por parecer ser algo muito misterioso. Foi extraordinário e gostoso mas não assustador.
A liberdade chamou minha atenção. O clima de liberdade que não há nos encontros religiosos é o que foi mais lindo porque Deus se tornou transcendente como ele é. Não tinha nome, regras e não era manipulado por nenhuma religião. Essa foi a novidade contagiante que uniu a todos porque quando se busca o infinito ele congrega a todos. No infinito está o ponto convergente. Se você me permitir usar um texto bíblico; “um só rebanho e um só pastor” como diria Jesus Cristo. Uma experiência que a princípio parecia “profana” se tornou completamente religiosa. Mais próxima de Deus por ser trans como Ele. Religiosa mas trans porque não se limitou a segmentos religiosos.
Eu coloquei no chão a idéia de que psicólogos (cientistas) como o povo pensa e eu pensava não procuram Deus e só pensam com os pés no chão. Profanos, como pensam os beatos.
Eu achei importante o improviso para facilitar o despojamento do cotidiano rotineiro e a entrega sem preocupações ao poder infinito de Deus. Esta improvisação ajudou-me a elevar-me até Deus porque com ela esqueci o relógio, etc. Não tinha texto para ler, relógio para conferir o tempo, roteiro ou obrigatoriedade para freqüentar qualquer momento do encontro e etc…
Sempre levei tudo na rotina e não havia me preocupado em pensar o quanto ela atrapalha a nossa mística. É por isso que as pessoas têm tanta dificuldade em falar com Deus.
Num certo sentido, não houvessem outras vantagens, a proposta dos grupos transcentrados já seria uma grande contribuição por oferecer esta oportunidade tão rara de diferentes pessoas, de diferentes vinculações religiosas (temos tido participantes de diversas crenças – e singulares misturas delas!) poderem expressar sua religiosidade da maneira que sentirem necessidade ou desejo, de forma individual pessoal e/ou compartilhada. Sinto que, para muitas pessoas ao menos, é uma oportunidade muito liberadora poder estar expressando e desenvolvendo – em pensamentos, palavras, comportamentos e atitudes – sua própria forma de se relacionar com Deus, com o Divino, com o Transcendente e o Sagrado. Há depoimentos de uma sensação muito gratificante de estar em contato com um grupo em que isso é permitido, compreendido e compartilhado, sem as habituais doutrinações e sectarismos, mas como expressão de um desejo comum de entender e se relacionar com o Mistério maior. Uma participante, de anterior formação evangélica, relata o prazer de sua experiência no momento em que, durante o 4O Encontro Transcentrado, toma consciência deste, como ela mesmo diz, “privilégio”:
Eu me lembro que um determinada hora estava um grupo com o “U”, a “S”, outras pessoas, e eu senti o privilégio de estar ali… Sabe, eu fiquei olhando e pensando assim: puxa, eu era de uma igreja, eu queria tanto chegar perto de Deus, eu achava que era daquele jeito, que era de um jeito só, e ali eu senti que eu estava tão próxima, tão próxima, e que era aquilo, que existem pessoas em todo mundo que fazem parte de um povo que quer chegar perto de Deus, e que estão chegando, e que o Trans também tinha essa função ali, uma comunhão com Deus, uma comunhão com as pessoas, algo assim que eu nunca tinha conseguido, raramente eu tinha conseguido na Igreja… com as pessoas – com Deus sim – mas com as pessoas era mais difícil.
Para algumas pessoas o grupo transcentrado é uma oportunidade de descoberta, ou reconciliação, com relação à própria religiosidade, algo que estava pouco desenvolvido, ou reprimido sob mal resolvidos conflitos de natureza religiosa, que afligiram o participante em algum momento de sua vida e acabaram sendo soterrados por concepções mais racionais, materialistas ou psicológicas. Redescobrir a própria religiosidade, ou perceber e integrar, assumindo como um aspecto importante de si, sua dimensão de contato com o transcendente e a divindade, é um acontecimento que por vezes é relatado por participantes como um ganho em sua participação nos encontros:
Descobri que eu sou um templo onde Deus ainda existe. As contradições e opostos que lutavam dentro de mim se uniram transformando-se num elemento novo, onde o humano e o divino, o bem e o mal, o azul e o vermelho coabitam com mais serenidade.
Outro participante, em carta para colega, é enfático ao falar como esta conscientização lhe veio a partir de experiências transpessoais um tanto intensas, inefáveis e mobilizadoras que vivenciou no 1O Encontro Transcentrado:
No 1o, fui para tentar compreender o que seria “Psicologia Transpessoal”, pois estava cético em relação a esses aspectos de nossas vidas.
Dito e feito! Você acredita em Deus? Até então tinha minhas dúvidas… Quando cheguei bem próximo a ele, ou era ele próprio, “esfarelei”. Eu não era eu, não era mais nada e ao mesmo tempo era o mundo. Consegui compreender a essência de minha existência e do Universo. Um estado de ÊXTASE e plenitude, mesclados com pavor, indescritíveis! As pessoas estavam em sincronia. Não existem palavras para descrevê-la, classificá-la ou teorizá-la
A falta de uma doutrina oficial no encontro, e a mistura de pessoas de diferente formação religiosa, acaba oferecendo oportunidade para diferentes expressões rituais ou litúrgicas, por vezes de forma mesclada ou mesmo original. Já tivemos, por exemplo, um ritual de casamento durante o 8o Encontro, o qual foi totalmente realizado nos moldes da livre criatividade grupal, envolvendo desde prece espírita no início até benção em hebraico no final (com direito a pisar na “taça” de plástico), sem contar com fadinha benzendo as alianças com sua varinha de condão e todo um foguetório digno de “casamento na roça”. Uma breve passagem do depoimento gravado de uma participante sobre um momento do 3O Encontro, ilustra este saudável convívio de diferentes culturas religiosas no desejo de acionar a intervenção do divino em favor do encontro:
Eu me lembro de uma vivência legal, nesse workshop, que a gente resolveu… Uma hora a gente estava sentindo que a energia estava muito pesada, e a gente resolveu cada uma cantar. A “T” cantou uma “Ave Maria”, eu cantei o Kadish em hebraico e cantei um hino da Igreja, e tinha uma religiosidade muito grande.
A vivência religiosa, na forma de prece ou devoção, intermeia-se aos relacionamentos e encontros entre participantes, por vezes emergindo de forma espontânea como a simples expressão do vivenciar intenso do momento. Em carta a outro participante, contando como vivenciara o 2O Encontro, alguém descreve um momento desses no seu encontro com um terceiro participante, sendo esse relato interessante também por incluir aspectos que serão comentados em outros tópicos deste texto, como por exemplo as vivências energéticas e a percepção paranormal (quando o destinatário da carta pareceu advinhar onde tocar a mão da autora do relato):
Ficamos um com a mão no coração do outro. Tínhamos um mesmo ritmo, na freqüência da natureza. Era uma integração total e profunda. Senti a presença de Deus.
Perdi o medo e senti a mais profunda paz.
Nossas mão se juntaram como se estivéssemos rezando, Acho que uma oração saiu de nossos corações.
Minha mão se elevou ao céu e bem no centro da palma eu sentia uma pressão. Parecia que um feixe de energia pulsava em mim entrando e saindo por ali.
Quando eu estava ao seu lado na árvore você pressionou minha mão exatamente no mesmo ponto.
Outras vezes, o envolvimento com a religiosidade intensamente vivenciada mescla a oração a outros esforços, também pouco usuais para a psicologia corrente, em favor do processo grupal, o que se observa no seguinte relato, escrito por uma participante narrando sua experiência interior no início da primeira reunião do grupo durante o Encontro, e oferecendo além disso uma amostra da forma “transcentrada” de trabalho de facilitação grupal conforme vem sendo desenvolvida por alguns participantes mais ativos e veteranos dos encontros:
Grupo reunido e silencioso. (…) Logo já fechei os olhos, rezei e pedi a benção de Deus para este nosso VIII Encontro que estava se iniciando. Fui ficando trans, lágrimas corriam de meus olhos e eu estava bastante presente. Pessoas me chamavam a atenção e com elas eu trabalhava.
Eu estava trabalhando com todo o meu SER numa intensidade e dedicação que me deixou bastante satisfeita. Era como se eu estivesse chamando as pessoas para começarem a remar, pois já estávamos todos no “barco”. Rezava e trabalhava para que os medos fossem dissipados e as almas (?) fossem libertadas para se lançarem na abertura da possibilidade das experiências.
De uma maneira geral, essa abertura e esse assumir com relação à própria religiosidade, assim como a vivência grupal dessa dimensão da experiência humana, marca os encontros transcentrados de maneira quase constante, e em muitos dos relatos comentados nos próximos tópicos continuará a ser ilustrada essa observação. Por ora concluo a breve descrição deste aspecto dos encontros transcentrados, com o texto de uma participante que, respondendo ao pedido de relatos feito por uma colaboradora minha (Maria Tereza Vitor Cesar), sintetiza o sentido global que os encontros transcentrados em geral, e o 4o Encontro em particular, tiveram para si. Nesse relato, de várias formas, faz referência à religiosidade que impregnou suas vivências e marca como um todo o efeito intenso e transformador que os encontros transcentrados tiveram em sua vida:
Falar do Encontro Transcentrado…realmente um desafio O que acontece… não sei dizer…EU VIVO! O Encontro Transcentrado… percebo em mim como fazendo parte de mim… agora sinto meu coração bater forte, uma emoção vir à tona, à flor da pele… (…)meu Deus… sinto que não poderia ser diferente o que estou sentindo, se estou me “preparando” para falar de minhas experiências no Transcentrado. Sei que me pediu para falar do que aconteceu comigo lá, mas não consigo deixar de falar do que está acontecendo comigo aqui e agora. Me emociono em pensar naquele momento, no momento único do Encontro como um todo…sinto como mágico o Encontro Transcentrado… choro! Sinto que toca em algo profundo do meu ser agora, como sendo um caminho que me apareceu, um caminho que me chama e que para isto, para seguí-lo, tive que fazer renúncias, senti mudar minha vida, senti desmoronando imagens de vida construídas, senti mudando meu jeito de viver e sentir prazer… Senti mudando meus valores… “T” e “E”!!! Pessoas grandes para mim, pessoas que no 4O Encontro Transcentrado eu sentia um “trio” comigo; um triângulo que me fazia bem! Nas madrugadas, no silêncio das noites, nós três juntos… Foi mágico para mim – me sentia abençoada, me sentia num momento mágico, comungando com o universo, vivendo coisas que somente em momentos especiais vivo. Algo muito maior, como se estivesse comungando um “segredo”, uma outra dimensão… (não quero tirar a palavra que coloquei em primeira mão, mas não é como se estivesse, pois realmente sinto que aconteceu algo como isto)
Não sei falar, descrever determinada situação ou momento, pois agora vejo o Encontro o tempo todo como um momento único o qual sinto inteiramente mágico (…) quando quero falar dele agora só o vejo como “momento único” – me vem a sensação de PAZ, de MAIOR, de significativo para mim – momento que é parte de mim – momento Divino – como se estivesse no céu – porque agora me veio a imagem do céu estrelado e lembrei que olho muito para o céu quando estou no Encontro. Me sinto no céu, junto com as estrelas, com Deus… o Encontro acontece aqui na terra, mas para mim a sensação é que na verdade acontece no céu! Sinto amor, sinto paciência, sinto compreender, aceitar, sinto gratidão, alegria, sinto falar com Deus, sinto muito forte a presença Dele e isto me faz muito bem!
3. Aumento da Percepção e Interação com a “Energia”.
Um dos fenômenos que tenho observado como bastante característico e freqüente nos grupos transcentrados é a atenção e o envolvimento com que significativa parte dos participantes se volta para uma qualidade de “energia” não mensurável por procedimentos científicos aceitos e que é descrita com características transpessoais, isto é, não restrita ao interior dos organismos individuais. Alguns declaram vê-la, a maioria diz percebê-la através de sensações corporais ou de uma indefinida qualidade de intuição ou percepção extra-sensorial.
Na verdade não se pode dizer que se trate de um fenômeno exclusivo dos grupos transcentrados, sendo algo também percebido e verbalizado, embora de forma menos intensa e aberta, em outros grupos vivenciais, situações terapêuticas, ou mesmo situações habituais, conforme o paradigma cultural da pessoa e do meio aceite ou não este tipo de comentário. Hoje em dia, no ambiente Psi, têm se tornado relativamente comuns, em diálogos informais entre profissionais, observações sobre efeitos energéticos relacionados ao trabalho de atendimento psicológico. No campo das disciplinas espirituais o fenômeno é intensa e tradicionalmente enfocado, de variadas formas (basta lembrar as concepções orientais de Ki, Prama, e Kundalini), e muitas das metodologias curativas de vinculação religiosa envolvem atuações que assumem ou sugerem a manipulação de alguma energia dessa espécie (veja-se, por exemplo, as “imposições de mãos”, os “passes energéticos”, as práticas de benzedeiras, os “banhos de descarrego”, os incensos purificadores, etc). O mesmo se observa em toda sorte de terapias ditas “alternativas”, desde a respeitável acupuntura às especulativas terapias por cristais e aromas.
Acredito que o que o encontro transcentrado faça com certa originalidade seja apenas fornecer um ambiente despojado de preconceitos científicos ou dogmas religiosos em que as pessoas possam, se assim desejarem ou sentirem, experimentar e dar curso livre e criativo ao desenvolvimento dessa, entre outras, de suas potencialidades de crescimento transpessoal. E, de fato (ou pelo menos segundo minhas observações e relatos dos participantes) é o que grande parte dos participantes tem feito nos encontros já realizados, conforme procuro sintetizar e exemplificar a seguir.
A nível individual, nos grupos transcentrados têm sido relatadas mudanças bruscas, intensas e, muitas vezes, indeterminadas da qualidade e intensidade pessoal de energia. Pessoas relatam calores, ou frios, intensos e dissociados da temperatura ambiente, formigamentos, ardores, ativação energética de pontos corporais, súbitos esvaziamentos ou preenchimentos energéticos, energias de qualidade agradável ou incômoda, sensações de bloqueios ou liberação energética, etc. Eis, por exemplo, o que afirma uma participante em relato gravado:
Uma coisa que se repete em todos os workshops é que eu me sinto energizada demais, over, às vezes dói até a mão, eu tenho de pôr a mão na terra, eu tenho de pôr a mão na água, eu tenho de fazer alguns rituais nesse sentido.
Alguns participantes observam que a intensidade energética sentida no encontro costuma, ao menos para eles, persistir mesmo após o término deste:
(…) fica um potencial de energia vital mesmo, que leva em média uns três a quatro meses para “gastar”. Uma energia vitalizadora que me impulsiona a realizar projetos, neutraliza o cansaço da vida diária, e neste último encontro [refere-se ao Encontro Transcentrado] até resolveu problemas de saúde (stress, hipertensão) que vinham dando um pouco de trabalho para normalizar.
A energia, muitas vezes, não é sentida como um fenômeno meramente intracorporal, mas como algo intercambiado com o ambiente, inclusive com o todo mais amplo incluindo a terra e o céu, conforme observa um participante ao falar de suas experiências energéticas no 1O e no 2O Encontro, associando-as, além disso, a uma certa alteração da consciência, influenciando sua percepção da realidade:
Sentia uma força vibrar em mim, por todo meu corpo e que vinha do chão. Diferente da força que senti no primeiro encontro que vinha em forma de espiral, também do chão para o céu. E enxergava a realidade de forma sutil, diferente dessa nossa realidade.
Outra participante, escrevendo sobre suas experiências durante o 1O Encontro Transcentrado, também narra vivências envolvendo intercâmbio energético com elementos da natureza – a água, no caso – e aparentemente associadas a estado de alteração da consciência, as quais lhe ocorreram durante caminhada que fez com outros membros do grupo:
Realmente me impressionou o fato de ter tido tantas sensações ao mesmo tempo. O mais engraçado foi que as pessoas que estavam comigo, em alguns momentos, achavam que poderiam ser exageradas minhas descrições sobre tais sensações. Em determinado momento da caminhada chegamos a uma cachoeira, pensamos logo em nos refrescar devido ao forte calor. Estávamos sentados em uma pedra quando fechei os olhos e senti uma vibração muito forte dentro de mim, não sei até agora descrever com palavras o que foi. Sei que comecei a rezar e senti uma energia muito forte, que emanava da corrente das águas que batiam nos meus pés, por alguns minutos acho que fiquei completamente fora do ar. Quando ouvi alguém me chamar é que dei por mim e então resolvi deixar esse lugar, colocando minhas mão dentro d’água e finalizando minha prece. Eu nunca pensei que pudesse ficar tão leve e receptiva às energias que estavam a meu redor.
A nível interpessoal também se verificam relatos de envolvendo a experiência de intercâmbio energético, sendo comum a sensação de que esta energia espontaneamente pode ser transmitida de uma pessoa para outra. Uma participante, em relato gravado em que conta suas experiências no 4O Encontro Transcentrado, fala de um momento destes em que, a partir de uma comunicação não verbal seguida de contato corporal, recebe ajuda de outro membro do grupo para “descarregar” um excesso energético que a estava incomodando:
Eu estava naquela vivência de uma energia muito grande, eu estava me sentindo mal de tanta energia, mal mesmo, doía perna, doía mão, e eu estava no grupo e de repente sinto que alguém está olhando para mim e olho para o “M”, e o “M” estava me chamando, ele chamava com o olhar. (…) Quando ele olhou para mim, Elias eu não sei, mas eu me joguei para cima dele, não sei como eu saí de onde eu estava, eu sei que eu já estava grudada nele. Na hora que a gente se tocou, eu peguei a mão dele, eu senti como se, assim, uma descarga elétrica profunda, profunda, e nós dois começamos a rir, a rir, a rir… E foi muito, muito forte.
Também a nível grupal, muitos declaram-se bastante atentos e sensíveis à intensidade, fluidez, movimentação e qualidade da energia que está presente no ambiente nos diversos momentos das reuniões. Assim, no geral, tem sido um fenômeno característico dos encontros transcentrados pessoas declararem “ver”, perceber intuitivamente, sentir por ressonância corporal, ou mesmo por “invasão” e “contaminação”, essa energia em si mesmas, em outros, inclusive no todo grupal reunido, ou ainda em locais ou objetos determinados. Essa experiência costuma ser verbalizada, sem maior constrangimento, e escutada com respeito, atenção, interesse e credulidade, nos diálogos entre os participantes, seja individualmente ou seja em grupo. Uma parte dos participantes, inclusive, ocupa-se em indagar e trocar informações a respeito destas percepções, tratando-as como indicativos do momento e do processo grupal.
Mais que apenas vê-la, pressentí-la ou intuí-la, vários participantes crêem estar interagindo com ela, de forma passiva ou ativa, sendo bastante comum a manifestação de comportamentos que visam estar modificando ou influenciando intencionalmente a energia observada, sentida ou pressentida em si, nos outros e no ambiente. Dentre as formas mais comuns dessas, digamos assim, “ações energéticas”, estão os abraços, os toques corporais e a “imposição de mãos” a certa distância, que costumam ser praticados sem maiores constrangimentos, conforme comenta uma participante referindo-se às atitudes facilitadoras inusuais por ela observadas nos encontros transcentrados:
Eu tenho percebido que durante o transcorrer do grupo as pessoas se ajudam mutuamente, intencionalmente ou não. Algumas expressam em atos e assumem posturas facilitadoras, outras apenas “são” e às vezes nem se dão conta da contribuição energética que dão ao grupo.
Nas minhas experiências pessoais, eu sempre sinto esta força energética do grupo todo que me faz ir cada vez mais fundo.
O “M” tem um grande potencial energético que ao abraçar uma pessoa faz o papel de facilitador, que desbloqueia energeticamente, não sei se ele usa isto intencionalmente ou não.
O que eu tenho observado é que as pessoas, ou eu mesma em alguns momentos, utilizam a imposição das mãos em outros que estejam em dificuldades. (…) vejo este procedimento como uma doação, ou interação energética entre duas pessoas que se beneficiam mutuamente.
Há ainda participantes que declaram utilizar-se de mentalizações com a intenção de influenciar a energia grupal e também pode ser observada a utilização de outros meios (incensos, água, oração, ruídos, dança, rituais, etc) com a mesma finalidade. A “empatia à distância”, isto é, o comportamento de “sintonizar” mentalmente com pessoas não necessariamente presentes no mesmo ambiente e, através desse contato, tentar exercer alguma influência, é algo que também tem sido relatado com certa freqüência por participantes. Uma delas, referindo-se aos aprendizados que teve em suas participações nos encontros transcentrados, refere-se à descoberta dessas novas possibilidades de atuação terapêutica e facilitadora:
(…) foi crescendo em mim esta maneira de participação. Rezo bastante pelo Encontro, fico atenta ao Grupo, envolvida e ligada no que está acontecendo. Se percebo alguém necessitando de ajuda, procuro ajudá-la. Quando isto acontece, geralmente, até poderia dizer SEMPRE, acontece de maneira inusual, pois sinto que posso ajudá-la mesmo sem falar com ela, sem estar próxima corporalmente. Posso ajudá-la me ligando nela e transmitindo através da minha intenção, pensamento, energia, atos mágicos… o que eu sinto poder ajudá-la. Isto me ampliou muito, na possibilidade de poder ajudar alguém, me trouxe paz pela possibilidade de poder transcender o tempo e o espaço .
4. Aparecimento de Formas “Mágicas” de Pensar e se Comportar
Um curiosa tendência que tem sido observada, de várias formas relacionada aos aspectos acima examinados, diz respeito ao crescente aumento, manifestado no decorrer dos encontros até agora realizados, de uma forma de funcionamento mental, refletida em comportamentos, que parece traduzir um envolvimento com a realidade a partir de um referencial que se pode qualificar, na falta de um melhor termo, de “mágico”.
Alguns participantes adotam, durante momentos ou períodos mais duradouros dos encontros, uma forma de perceber a realidade e com ela interagir bastante diferente da observada como usual em nossa cultura objetiva e racional. Parecem assumir um padrão de pensamento e percepção, e um jeito de ser e atuar, semelhante ao decorrente da mentalidade lúdica e fantasiosa das crianças, da panteísta e mítica visão de mundo das culturas primitivas, do pensamento simbólico e criativo, e da imaginação artística. Digo “mágico” por que nos remete a uma vivência em que o mundo parece encantado, entrelaçando o que é subjetivo e o que é objetivo e ampliando nossas possibilidades de ação e interação de tal forma que só encontra paralelo na forma com que os xamãs, bruxos, alquimistas, pajés, magos e feiticeiros envolviam-se na prática da magia. Não só o mundo, mas o próprio ser do sujeito, e consequentemente sua forma de “ser-no-mundo”, altera-se, assumindo nos comportamentos sua identidade enquanto ser “mágico,” seu jeito “mágico” de ser. De várias maneiras, e em variada intensidade, isto tem sido observado como ocorrência nos grupos transcentrados.
Talvez a forma mais comum dessa manifestação seja a intensa, e quase pessoal, interação que muitos participantes mantém com a natureza num grau de envolvimento tal que caracteriza um estado alterado de consciência e um modificado “mapa de realidade”. A natureza é sempre referida como marcantemente presente durante os encontros transcentrados, seja pelo êxtase que sua beleza e intensidade provoca, seja pela interação energética que permite e alimenta, seja pela surpresa de nela desvendar canais de um diálogo com dimensões transcendentes e misteriosas da realidade.
Uma participante, por exemplo, relatando num diário suas experiências durante o Encontro, fala de uma noite em que, envolvida em sua interação com a lua e com o fogo, consegue transitar para uma outra dimensão da vivência, o que por sua vez parece ajudá-la a integrar-se num todo mais amplo e cósmico de possibilidades:
Nesta noite a lua estava presente, não lá em cima no céu, mas ali no meio do grupo, e sentia um contato quase físico com ela, era como se a estivesse bebendo, um líquido de prata que fervia no calor da fogueira e me transportava, não sei para onde, talvez para o universo.
Pensei que tinha feito o propósito de buscar minha bruxa interior, que de certa forma representava o aspecto feminino de minha personalidade, e ali estava ela, na minha frente, a lua, a fogueira, a noite, e alguém que se aproximava de mim vestida de preto. Na minha visão esta pessoa em momento algum tinha um rosto, apenas era uma figura negra e linda, sem rosto mais ainda. Todo o meu ser a reconheceu e teve certeza de sua presença sagrada. Eu sabia que era a “C” que estava na minha frente, mas em alguma parte de mim via uma figura que não era humana, sem rosto, imponente, e sagrada, e tive a certeza que ela descera da lua para juntar-se a mim. Senti-me inteira, completa, sentei-me perto da fogueira para esperar o sol.
Outra participante, tendo vivido a partir de uma experiência interior a sensação de conexão com o sol, nos conta a qualidade mágica e encantada que a partir daí sua interação com o mundo passou a assumir, incluindo também a vivência de um estado alterado de consciência em que lhe parece possível a interação energética com uma entidade, ou uma personificação, transumana associada à luz de um sol interior e exteriormente percebido:
Aqui fui tomada de uma sensação de paz e tranqüilidade tão intensa que senti não precisar de mais nada a não ser estar aqui e me fazer presente neste lugar entre as pessoas que aqui se encontram. Não senti vontade de falar inicialmente sobre isso, mas apenas desfrutar e deixar fluir esse mar de tranqüilidade que me invadia. E quando durante o encontro as pessoas começaram a falar sobre a dor que estava presente, eu não senti essa dor. Mas ao fechar os olhos vi um sol lindo e imenso sobre nós, vi cores fortes, intensas e reais, senti necessidade de virar as palmas de minhas mãos em direção ao céu e vi que um ser que se misturava com a luz do sol, porém todo de branco, enviava um raio de luz na direção de minhas mãos. Esse raio de luz em contato com minhas mãos se transformava em uma bola de luz, prateada e dourada. Levei então essa bola de luz em direção ao meu peito e a apertei. Senti que ela penetrava em meu coração, se incorporava no meu corpo e preenchia todas as minhas células, do alto da cabeça até a sola dos pés. Senti-me leve, feliz e ao mesmo tempo forte. Ouvi pessoas chorando e automaticamente me dirigi até elas e senti que tinha de tocá-las. E ao tocá-la vi o mesmo ser do alto enviando luz que penetrava em mim e fluía através do meu corpo até as minhas mãos e passava para a pessoa que eu estava tocando. Percebi então o verdadeiro sentido de minha presença neste lugar e o significado real do compartilhar.
O pensamento simbólico e arquetípico é intensamente adotado por vários participantes (temos tido significativa presença de simpatizantes das idéias de Jung), que liberando-se na vivência dessas possibilidades de seu ser, não raro elaboram e executam, sós ou em grupo, trabalhos rituais com finalidade de estar provocando ou propiciando algum tipo de efeito, para si ou para o todo. Um participante conta, em conversa gravada, uma experiência destas que viveu durante o Encontro, quando durante a realização de um ritual que idealizara por inspiração, sente sua consciência e percepção alterarem-se, vivenciando expansão dos limites corporais, interação inusual com elementos da natureza e mesmo pressentimento da presença de entidades transumanas:
À noite… eu resolvi fazer um ritual, sozinho, quatro horas da manhã (…) mexia com os elementais, ar, água, fogo e terra. (…) Eu sentia que não estava sozinho lá, havia pessoas me olhando, passando por mim… parecia como se as árvores falassem, estivessem mais vivas. E eu sentia que eu aumentava de novo, conseguia tocar as árvores, a ponta das árvores… quando eu mexia a mão eu sentia que minha mão se prolongava. E tudo tinha mais vida. (…). Eu antes já estava com vontade de fazer um ritual e no primeiro dia da reunião me veio a imagem de como seria, o que eu levaria, em que lugar iria colocar (…) Eu faria um círculo, e esse círculo como se tivesse uma camada de energia em volta e me protegesse, nada de ruim poderia entrar. E dentro desse círculo um quadrado em que cada ponta era um elemento: numa ponta era água, numa ponta era o fogo, noutra ponta era o ar, a outra era a terra. (…) Em cada ponta eu fiz uma oração e eu conseguia absorver a energia de cada elemento (…) E depois eu fiz uma oração agradecendo o ritual
Alguns participantes, e isto tem sido uma tendência crescente entre os mais veteranos e mais preocupados em estar trabalhando pelo grupo através do desenvolvimento de atitudes facilitadoras transpessoais, passam a vestir fantasias, em geral idealizadas a partir de intuição ou inspiração, incorporando o sentido simbólico delas, e encarando a intensidade congruente de suas figuras fantasiadas e dos personagens sui generis que assumem como dotadas de poderes mágicos, crêem estar por essa via sendo capazes de influenciar os acontecimentos grupais. Uma participante, por exemplo, conta como confeccionou antes do encontro uma capa e estrelas brilhantes, narrando um momento em que as utilizou, ilustrando a seriedade e intensidade com que este tipo de atitude mágica é vivida por determinados participantes:
Quando o Encontro já estava marcado (…) me veio a imagem de eu usando uma capa cheia de estrelas (…) Confeccionei com ajuda de minha mãe uma capa branca cheia de estrelas penduradas com duas faces: prateada e preta brilhante.
(…) Depois [já durante a primeira reunião do Encontro] sai da sala e andei pelo espaço de fora, sem pensar me percebi chegando perto da “Z” que estava bem TRANS, sentada sozinha. Estive com ela também, ela estava intensa, mas ficamos juntas por pouco tempo, ela se levantou e foi andar. Eu estava experimentando um êxtase, satisfeita com meu trabalho, senti vontade de usar minha capa de estrelas. Saí correndo buscá-la e apareci com ela. Me senti digna de usá-la, eu estava TRANS.
(…) Antes (…) eu havia saído da sala, peguei uma peneira onde eu coloquei minhas estrelas soltas e debaixo da lua cheia, rezei e pedi para Deus a presença Dele através das estrelas. Entrei com as estrelas e as joguei ao chão em volta da vela acesa no centro da sala.
Além das fantasias, vários participantes, assumindo um jeito “mágico” de ser e de pensar, passam também a utilizar objetos como anéis, espadas, cristais, plantas, flores, artefatos indígenas, pedras, etc., adquiridos, improvisados ou criados para esse fim: servirem de “objetos de poder” capazes de auxiliar o exercício de uma atuação terapêutica transpessoal, instrumentos de atos mágicos. A atribuição (ou percepção deste?) de poder a tais objetos muitas vezes não se limita ao seu proprietário, conforme ilustrado neste depoimento em que uma participante conta um momento do Encontro em que recebe o empréstimo, para utilização, de um objeto mágico confeccionado por outro participante:
Bom, quando estávamos reunidos naquele galpão, “M” estava com uma espécie de cajado com um cristal e um incenso na ponta. Passando perto de mim, não me lembro exatamente as palavras, mas perguntou se eu estava bem, e eu querendo dizer que “SIM” disse não muito (não me lembro exatamente as palavras!!). Então, neste momento, ele entregou seu cajado a mim. Foi uma honra, senti um poder muito grande.
Passei então a concentrar-me no grupo, nas manifestações, na energia. Imaginava uma energia em espiral sobre o grupo e a pedir que ela se manifestasse.
Depois de um tempo, “M” veio ao encontro de seu cajado, pegando-o novamente. Verifiquei que as forças e a concentração se foram. A partir desse momento, o frio começou a tomar conta de mim e o ambiente estava pesado, difícil de manifestar-se a energia. Estava travado!
A dança e a música, proporcionada pelos próprios participantes com sua vozes e instrumentos musicais disponíveis ou improvisados, e também pelas fitas e CDs com músicas evocativas (especialmente as de “Boi Bumbá” amazônico, que falando da natureza, dos índios, suas lendas e magia, tornaram-se uma espécie de “trilha sonora” ou “tema musical” dos encontros) levados pelas pessoas, têm sido uma presença marcante nos grupos transcentrados, ajudando a criar climas mágicos, envolvimento grupal e estados alterados de consciência. É o que nos descreve uma participante, ao falar de sua descoberta dessa via de transcendência durante o Encontro:
Descobri na dança um caminho fácil e rápido para transcender, é como se a música do batuque entrasse em meu corpo e abrisse todos os canais energéticos por onde eu passo a fazer uma interação muito forte como o que me rodeia, as pessoas, a lua, as árvores, tudo… Cada movimento vai me dando uma nova sensação que logo me transporta para outra realidade, maior, mais abrangente, total.
A faculdade de imaginação, ampliada na vivência em estado alterado de consciência e intermeando a experiência interna e a percepção do mundo, por vezes é tida como forma de estar atuando e influenciando os acontecimentos externos. É o que sugere este relato em que uma participante comenta suas experiências durante uma reunião do Encontro:
Sentamos ao ar livre, gosto de ficar observando o grupo, olhando cada pessoa de uma maneira só minha, muito intensa, é como se aos poucos fosse me misturando com todos e isto me ajuda a transcender.
(…) E tudo veio muito forte, com toda a intensidade que estou acostumada a sentir. A calma foi dando lugar a uma ansiedade, e o coração batia com violência e me deixei ir. Minha vontade é que todos fossem comigo, e pensando (se é que se pode chamar isto de pensamento) assim, fui me entregando, sentindo que ia cada vez mais e mais fundo.
No meio do grupo abria-se um enorme buraco negro, aquilo era o vazio total, mas logo foi mudando de cor.
Agora estava mais forte a sensação do coração e respiração, mas eu sabia que iria passar e era necessário seguir em frente. As cores ficavam cada vez mais intensas e brilhantes, vermelho, amarelo, prateado, agora eu era só cor, mudando e esperando minha cor. Quando o arco ficou violeta, tudo se acalmou, e senti que aquela era minha cor e eu tinha que passar para lá. Sabia que logo trocaria de cor, e que cada pessoa que estivesse ali teria sua cor para passar, mais uma vez desejei muito que todos reconhecessem sua cor e passassem.
Quando atravessei o arco um sol claro e forte brilhou com muita intensidade no centro, era o sol que eu havia esperado por toda a noite em volta da fogueira e não viera.
Seu calor foi ficando cada vez mais forte, senti medo de ser “torrada”, mas parecia ser tão real que achei que o sol tinha saído naquela manhã nublada e deixei o calor penetrar no meu corpo. O sol esquentou mais, mais, até que meu corpo não agüentando mais passou a irradiar esta energia, agora eu sentia o calor expandindo-se por todo o ambiente e a temperatura ficou mais confortável para mim.
Senti alguém próximo, refrescando meu corpo, e voltei para cá. O sol era real, mas não estava ali, o dia continuava nublado, o calor era real e a sensação maravilhosa.
5. Acontecimentos Sugestivos de Fenômenos Paranormais
Em suas obras mais recentes, Grof tem acrescentado uma terceira categoria na sua classificação das experiências transpessoais, intitulada Experiências Transpessoais de Natureza Paranormal (Grof 1997) ou Experiências Transpessoais de Natureza Psicóide (Grof, 1994), na qual inclui aquelas em que a vivência subjetiva é acompanhada de fenômenos concretos e objetivos de natureza paranormal. Aí Grof (1997) classifica os fenômenos que sugerem vínculos sincronísticos entre consciência e matéria; os acontecimentos paranormais espontâneos (como, por exemplo, os fenômenos OVNI; as ocorrências Poltergeist; os fenômenos espíritas de mediunidade física) e a psicocinese intencional (conforme ocorre na magia cerimonial; nas práticas mágicas de cura e feitiçaria; nos poderes místicos – os chamados siddhis da tradição hindu; e na psicocinese de laboratório)
É bem verdade que, de acordo com sua classificação, tal categoria inclui apenas experiências envolvendo a relação, por vias inusuais e paranormais, entre consciência e matéria, tais como certas espécies de sincronicidade e toda série de fenômenos estudados pela Parapsicologia sob o título de “psicocinese”. Com relação à paranormalidade eventualmente sugerida em acontecimentos relacionados às vivências ocorridas nos grupos transcentrados, não constatei ou tive conhecimento de nenhum evento que indicasse consistentemente um fenômeno de influência da mente sobre a matéria por vias inusuais, tais como movimento de objetos à distância, combustão espontânea, ruídos inexplicáveis, aparições e materializações, etc. As sincronicidades envolvendo coincidência entre eventos psíquicos subjetivos e acontecimentos materiais objetivos, naturalmente, parecem ocorrer com relativa freqüência, mas trata-se de um campo um tanto especulativo e sujeito a interpretações variadas, não me ocorrendo no momento nenhum exemplo que sugira de forma mais desafiadora a ocorrência de fenômenos nesse sentido.
Bem mais comuns e significativas têm sido, nos grupos transcentrados, a classe de eventos sincronísticos envolvendo o relacionamento entre mais de uma consciência, e relacionado ao campo de fenômenos psíquicos abordados pela parapsicologia sob o título de “percepção extra-sensorial”, especialmente aqueles sugerindo a ocorrência de “telepatia” entre os participantes. É sobretudo destes eventos, de teor paranormal mas a rigor classificáveis por Grof em outras categorias de experiências transpessoais, que tratarei neste tópico.
A mais comum, e típica, ocorrência neste sentido diz respeito à naturalidade com que participantes do encontro declaram perceberem-se capazes de estar, sobretudo no decorrer das reuniões grupais, manifestando sensações e emoções que acreditam ser de outras pessoas. Embora seja um fenômeno que, até certo ponto, também ocorre em outras situações que não os grupos transcentrados, especialmente em grupos terapêuticos, eu pessoalmente nunca participei de outros grupos em que isto fosse tão aberta e pacificamente expresso e aceito. É uma situação típica dos grupos transcentrados pessoas envolverem-se em fortes sensações e intensas experiências emocionais, declarando tranqüilamente, durante ou após a vivência (de um descontrolado choro ou de uma dor, por exemplo), que aquilo não era deles, que haviam simplesmente “captado no ar”, “canalizado” e ajudado a manifestar. Lembro-me que isto já surgiu significativamente no 1O Encontro, quando, por exemplo, uma dor de cabeça parecia brincar de passar de uma pessoa para a outra, surgindo num participante no exato momento em que sumia em outro. É relativamente comum que uma pessoa, durante o encontro, erga a voz para declarar determinado sentimento ou sensação, e perguntando a quem aquilo pertence, ou vice-versa, alguém perguntando com quem estaria agora algo que sentia ainda a pouco. Já houve algumas ocasiões em que algum participante, na finalidade de ajudar alguém ou simplesmente testar a realidade dessa possibilidade, intencionalmente buscou atrair para si o mal estar que afligia a outro, sendo aparentemente bem sucedido, pois o sofrimento do outro cessava ou diminuía, com o inconveniente de passar a incomodar o “terapeuta”. Além de alguns depoimentos com esse teor que já vimos nos tópicos anteriores, selecionei mais alguns trechos de relatos para ilustrar a ocorrência um tanto comum desses sugestivos fenômenos nos encontros transcentrados.
Uma participante, por exemplo, conta um momento do 4O Encontro em que ajudou a outra a manifestar um choro que a incomodava:
E a “I” não conseguia chorar e eu puxei o choro dela, e eu chorei, eu sentia que aquele choro não era meu, que eu estava puxando, que eu trouxe para mim aquilo que ela não conseguia chorar, não conseguia viver, e também foi forte.
Outra participante narra o momento durante o Encontro em que, através de uma aparente empatia telepática, um membro do grupo faz por ela o que intimamente pensava em fazer:
Neste período, ocorreu-me grande vontade de gritar, mas não o fiz. Sentia uma espécie de cansaço e abaixei-me por alguns segundos (Conversando com o “M” ele contou que quando abaixei ele estava na mesma posição, e quando senti vontade de gritar, ele manifestou por mim).
Outra participante ainda, narra o momento, durante o 3O Encontro, quando, pensando em ajudar uma amiga, aparentemente acaba atraindo para si o mal-estar a incomodava:
Numa tarde a vi sozinha encostada na cerca e depois sentada fora da casa, no chão e sozinha. Me aproximei dela mas não quis atrapalhá-la. Sentei atrás dela e ali permaneci em silêncio, mas me ligando nela, eu queria compartilhar com ela, ajudá-la… Começou a rolar uma energia entre a gente e eu comecei a pegar “coisas” para mim. Eu me entreguei na vivência – nós duas nos aprofundamos… eu aprofundei tanto que comecei a ficar com medo do meu estado, das minhas sensações (…) comecei a sentir dores e medo.
(…) ele veio e me ajudou a diluir e soltar o que eu havia “pegado” para mim e não era meu (as energias).
Além da “transmissão” de emoções, conteúdos energéticos, dores e sensações corporais, alguns eventos sugerem a comunicação de consciências (ou então uma notável coincidência sincronística) no que diz respeito também a conteúdos cognitivos. É o que parece acontecer nesse episódio ocorrido no 4O Encontro e narrado por uma participante em depoimento gravado, quando em momento de oração com outra colega, e possivelmente estando ambas em um estado alterado de consciência, sem que nenhuma diga nada para a outra, às duas ocorre o mesmo trecho bíblico:
Aí eu e ela fomos, e eu orei, ela falou uma oração, e nós pudemos chegar tão perto de Deus, eu senti tanto a presença dele ali. E naquela hora ficou me vindo um corinho que eu sei da igreja, que fala de uma noiva e que eu sentia durante todo o workshop e que era “ quem é essa que aparece como a alva do dia…”. É um texto de Cantares, que fala da noiva, que vem formosa como a lua, pura como o sol, formidável como um exército com bandeiras, e eu senti muito vindo, vindo esse hino, mas eu não cantei para a “T”. Depois quando a gente veio fazer uma reunião aqui em São Paulo, ela me falou o texto que ficava vindo aquela hora e era exatamente o texto que eu estava cantando por dentro ali.
Em minha opinião, os momentos mais marcantes das reuniões grupais durante os encontros são aqueles em que, de maneira mais ou menos súbita e sem muita (ou mesmo nenhuma) comunicação verbal, várias pessoas em conjunto, às vezes em diferentes espaços do ambiente e vivendo individualmente sua experiência de forma introspectiva e meio alheia (inclusive fechando os olhos) ao que se passa com os outros, mergulham ao mesmo tempo em intensas vivências. Isto na maioria das vezes se passa sem expressão verbal, e só após passada a experiência mais intensa, às vezes só em depoimentos bem posteriores, os envolvidos informam o conteúdo de suas experiências naqueles momentos e, freqüentemente, nestes relatos encontram-se notáveis coincidências, as quais por vezes evidenciam ainda uma sincronização e complementaridade das experiências interiores e não comunicadas verbalmente enquanto ocorriam. Fica assim uma forte impressão de comunicação, ou mesmo comunhão, entre as consciências. Num destes eventos, durante o 4O Encontro, cerca de oito pessoas se viram, em pequenos grupos ou isoladas no salão onde se dava a reunião grupal, vivendo emoções e sensações intensas: alguns choravam, outros se sentiam paralisados, alguns estavam envolvidos em aparentes trabalhos energéticos, e coisas assim. Tudo isso sem qualquer verbalização que esclarecesse o conteúdo cognitivo da cada experiência. Posteriormente, nos comentários, soube-se que vários haviam se envolvido, de diferentes formas, com a temática da morte, alguns inclusive relacionando o episódio a eventos ocorridos em supostas existências anteriores. Infelizmente não documentei a maioria destes depoimentos, mas uma participante relembra o que ocorreu consigo, e acrescenta interessantes informações sobre a experiência de outra participante, que envolvida em experiência de conteúdo relacionado ao da depoente, foi capaz de ajudá-la aparentemente em virtude disso, embora sem que uma soubesse, no momento, do conteúdo da experiência da outra. Note-se que o acontecido incluiu ainda um certo reviver de um sonho pré-encontro por parte da outra envolvida, sugerindo, embora de forma vaga e discutível, uma coincidência sincronística de eventual teor premonitório sobre o que se passaria no encontro.
Vivenciei a morte. (…) “T”. teve um sonho em que ela descia uma escadaria em busca de vida e voltava levando a vida. Já de madrugada, quando restavam poucas pessoas na casa principal (…) olhando para “S”. e “I”. [outras pessoas que também tiveram vivências intensas aquela hora] bem para os olhos delas, comecei a sentir uma perda de energias e fui me entregando. Caí no chão e ali fiquei estendida, imóvel entrando nas experiências. Um clarão muito grande e um distanciar dali. Eu escutava todos, percebia que ficavam preocupados comigo, mas nada me levava a tranqüilizá-los, ou seja, a sair daquela experiência em função deles. Em algum momento eu até direcionava minha intenção para movimentar meu corpo mas nada se movia – como se eu também não tivesse comando sobre ele. Sabia que meus companheiros mais próximos das experiências TRANS estavam por perto e eu me sentia segura, tranqüila. Sentia a presença de “E” por perto me respeitando e me permitindo vivenciar o que eu estivesse vivenciando. Lembro-me de ter permanecido um por um longo tempo nessa vivência, até que de repente, sem ser por vontade própria, suspirei forte, como um susto, abri os olhos e em cima de mim estava a “T” que me soprou. Após “T” contou-me sobre seu sonho e que se realizou nesta vivência, pois enquanto eu estava estirada ao chão vivenciando a “morte” ela desceu a escadaria da casa principal e foi buscar vida. Ao voltar e a me soprar – eu voltei ao normal.
No 1O Encontro, ocorreu um evento muito interessante, que se aproximou, digamos assim, de uma evidência empírica da ocorrência de fenômeno telepático ou evento sincronístico. Um dos participantes do encontro estava particularmente interessado em testar a ocorrência de fenômenos transpessoais e/ou paranormais e, na manhã do último dia do encontro, resolveu não participar da reunião do grupo e sair para uma caminhada, confidenciando-me que pretendia verificar se ocorreriam coincidências entre o que se passaria na reunião e com ele no momento da caminhada. Sem saber de suas intenções investigativas, três outros participantes resolveram acompanhá-lo. Iniciada a reunião com os demais, a certa altura eu senti um impulso de pedir que todos se dessem as mãos, coisa que absolutamente não é de meu hábito em reuniões de grupo, tendo até certa antipatia por atitudes deste tipo, que me parecem um tanto artificiais. Mas naquele dia o impulso foi muito forte e acabei dando-lhe vazão, sendo que após darmo-nos as mãos passamos a vivenciar várias coisas interiores, algumas bastante intensas, que eram parcialmente comunicadas em curtas verbalizações. A certa altura, já não mais de mãos dadas mas ainda prosseguindo com alguns bastante envolvidos nas vivências interiores, começam a chegar os participantes da caminhada, trazendo alguns punhados de argila. Manipulando a argila, acabamos por fazer uma pequena esfera, que começamos a lançar uns para os outros. Uma das participantes da caminhada fica surpresa e diz que ela e seus companheiros tinham feito havia pouco a mesma brincadeira, e nos conta como fora o passeio, sendo que então quem se surpreendeu fomos nós, pois também lá havia ocorrido um inesperado dar de mãos. Eis como essa participante conta o que aconteceu, conforme registrou por escrito em carta que me enviou após o encontro:
Adorei me sentir com liberdade de fazer o que queria em todos os momentos, aliás aquela caminhada na montanha foi muito significativa. Na verdade no começo, quando o L propôs essa experiência fiquei na dúvida, pensei no que eu poderia perder sem estar junto do grupo. Depois, quando senti que essa outra experiência também poderia me acrescentar algo mais decidi ir, o que aliás não foi por acaso.
(…)No caminho de volta ao grupão, as três pessoas que estavam comigo (…), me disseram que eu fiquei muito compenetrada e acharam que eu talvez pudesse ficar horas e horas ali [durante o passeio ela havia tido aquela experiência energética com as águas da cachoeira, já narrada mais atrás]. Logo foi surgindo um calor em minha mãos, elas ardiam como se estivessem formigando, sentia como se algo me puxasse para poder me aproximar das mãos dos que estavam ao meu lado. Assim descemos a montanha, de mão dadas, rindo e brincando com barro, pensávamos no grupão e então eu e o “K” chegamos ao convento [o encontro foi realizado nas instalações de antigo convento] onde nos deparamos com cenas muito interessantes. A primeira foi quando alguém do grupão pegou o barro na mão e começou a entrar em contato com esse poderoso material que a natureza nos deu. Fiquei impressionada quando você olhou para a tal pessoa e deu sinal para que ela jogasse o barro para cima, que por incrível que pareça era exatamente os movimentos que fazíamos na montanha. Ali foi o momento em que tive a certeza de que existia alguma coisa de transpessoal. Depois que fiquei alguns momentos quieta, observando o que acontecia no grupo senti que tudo era parecido com o que eu vivi na montanha, até que não agüentei e coloquei para o grupo, foi emocionante
Nesse evento, mesmo a separação espacial dos participantes (alguns passeando outros na reunião) não parece ter impedido a coincidência de acontecimentos. A impressão que me fica, destas experiências, é que de fato a distância espacial é de pouca relevância nessa qualidade paranormal de comunicação ou sintonia entre consciências. Convicto que estou destas possibilidades, tenho inclusive feito convites a pessoas, que por um motivo ou outro não podem comparecer aos encontros, para que tentem comparecer “à distância”, em “pensamento”. Numa destas ocasiões, com cujo relato terminarei este tópico, fiz muito empenho em que uma pessoa (“R”), que participara de todos os encontros anteriores, participasse do 7o Encontro, não obstante este se desse em Ubatuba, estado de São Paulo e a pessoa estivesse em Porto Velho, Rondônia. Uma participante do encontro, muito amiga da que não pode comparecer, narra uma experiência que teve em dado momento e que, após conversar com a colega depois do encontro por telefone, convenceu-se, pela coincidência de momentos e sensações, que de fato haviam compartilhado experiências não obstante a enorme distância. Eis o que ela conta:
Eu, que fui introduzida no TRANS a convite da “R” e tive sempre uma ligação forte com ela nos TRANS, sentia que seria diferente não tê-la por perto neste VII TRANS. Como o TRANS transcende o tempo e o espaço, “R” foi convidada pelo “E” a estar presente no VII TRANS à distância, ou seja, ficar ligada no TRANS. (…) Sexta à tarde senti um incômodo muito grande, estava incomodada, me sentindo distante e comecei a sofrer com isto. Eu amargurada disse ao “E” que não estava conseguindo chegar no TRANS e isto estava me incomodando, eu já estava ficando aflita. Fui almoçar e com o prato na mão, veio uma emoção muito forte e dolorida no meu peito, fechei os olhos e um choro forte e sentido se expressou. Chorei bastante sem saber porque estava chorando. Sentia que aquele choro não era meu e tinha a certeza que era a “R”. Eu sentia que este choro tinha ligação com a “R”. Após toda esta vivência, mais à noite, eu senti que cheguei no TRANS e no decorrer de todo o TRANS, eu sentia a presença de “R”. [conta outras experiências]
(…) Quando acabou o TRANS, liguei para a “R” e esta me confirmou que na sexta feira foi muito difícil e sofrido para ela, pois ela estava trabalhando, mas sua vontade era se ligar no TRANS… ela não estava conseguindo porque a todo momento a solicitavam no trabalho. Isto fez ela ficar angustiada e chorar!
Minhas vivências estavam expressando a “R”? Digo que SIM!
III. Conclusão
Os grupos transcentrados nasceram de uma idéia fundamentada na premissa teórica de que os princípios metodológicos de atuação facilitadora propostas por Rogers, especialmente em sua modalidade de trabalho com grupos, poderiam ter sua aplicação estendida para além do campo teórica e praticamente visado pela Psicologia Humanista, focando uma proposta de desenvolvimento que adentrasse domínios do ser e da realidade só aceitáveis, na psicologia contemporânea, pelo ponto de vista das escolas de Psicologia Transpessoal. A idéia foi posta em prática na forma de workshops experimentais, cujos resultados, em termos de seus efeitos imediatos na vivência dos participantes da experiência, foram examinados e sinteticamente descritos e exemplificados neste texto.
Conforme o que foi apresentado, pode-se observar que, colocados frente ao estímulo de uma situação grupal permissiva e pouco estruturada em que eram genérica e inespecificamente convidados a explorar as suas potencialidades transpessoais e espirituais, os participantes dos encontros transcentrados envolveram-se, tipicamente, numa série de experiências, atitudes e comportamentos. Dentre estes, separadamente examinamos, enquanto possíveis efeitos da metodologia utilizada, a ocorrência de variadas espécies de estados alterados de consciência e de experiências transpessoais, a abertura experiencial para vivência da própria religiosidade e sua expressão em atitudes devocionais, o aparente aumento da capacidade de perceber e interagir com uma misteriosa qualidade de energia transpessoal, o espontâneo aparecimento ou incremento de formas “mágicas” de pensar e atuar, e ainda alguns fenômenos sugestivos de que os participantes estavam acessando e desenvolvendo poderes paranormais. Separadamente e em seu conjunto, os variados aspectos característicos examinados destacam-se enquanto possíveis indicativos de que, de fato, estaria sendo propiciada a exploração e o desenvolvimento das potencialidades transpessoais dos participantes.
Assim, no retrato sintético, panorâmico e ilustrativo de algumas das características até agora observadas e relatadas enquanto típicas dos encontros transcentrados já realizados, creio ter deixado fortemente indicado que a proposta dos grupos transcentrados é viável e coerente dentro de seu propósito de constituir uma metodologia grupal, de inspiração rogeriana, para exploração e desenvolvimento das potencialidades transpessoais dos participantes. Notam-se, além disso, algumas características que os diferenciam, em especial no que diz respeito aos tipos de vivência propiciados, das habituais aplicações grupais da metodologia rogeriana de facilitação psicológica e terapêutica. Embora ainda fiquem em aberto diversas questões sobre o alcance, as possibilidades de aplicação, e as vantagens e desvantagens de tal metodologia, parece-me ter sido demonstrado que, nas condições propiciadas por diversos (e ainda não totalmente determinados) dos fatores presentes nos encontros transcentrados até agora realizados, foi possível aos participantes, de uma forma mais intensa e extensa do que a observada nos grupos rogerianos habituais, a vivência e a exploração de diversos aspectos e dimensões de suas possibilidades, teoricamente associados ao que tem sido considerado como as potencialidades transpessoais do desenvolvimento humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_____(1996) Transcentrando: Tornar-se Transpessoal – Elementos para uma aproximação entre a abordagem centrada na Pessoa e a psicologia transpessoal. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
_____(1997). Grupos Transcentrados: Investigando uma metodologia grupal “rogeriana” para exploração e desenvolvimento de potencialidades transpessoais. Projeto de pesquisa apresentado como requisito do processo seletivo para ingresso no curso de doutorado em psicologia social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Grof, S. (1983). Royaumes de l’Inconscient Humain. Monaco: Du Rocher.
_____(1997). A Aventura da Auto Descoberta. São Paulo: Summus.
Nagelshimidt, A.M. (1996). Argonautas dos Espaços Interiores: uma introdução à psicologia transpessoal. São Paulo: Vetor.
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Walsh, R. (1997) Mapeamento e Comparação dos Estados. Em Walsh, R. N. & Vaughan, F. (orgs.) Caminhos Além do Ego: Uma Visão Transpessoal. São Paulo: Cultrix/Pensamento, pp. 50-57.
ANEXO I
(Texto utilizado para divulgação dos encontros transcentrados)
Alguns Esclarecimentos Sobre os “Grupos Transcentrados”
Meu nome é Elias Boainain Jr, sou psicólogo identificado com a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), criada por Carl Rogers, e tenho estado há vários anos envolvido em estudos visando consolidar a aproximação teórica e prática entre esta abordagem e a Psicologia Transpessoal, aproximação esta que, em meu entender e de vários outros estudiosos e praticantes, já foi esboçada e iniciada pelo próprio Rogers em seus últimos anos de vida.
A proposta dos Grupos Transcentrados representa uma das facetas aplicadas deste trabalho de aproximação que venho desenvolvendo e, resumidamente, pode ser definida como uma experiência na utilização de uma metodologia rogeriana grupal com o objetivo de exploração das dimensões e potencialidades transpessoais do ser. Alguns esclarecimentos a respeito dos termos desta definição é oportuna:
1. Metodologia Rogeriana: Sabidamente Carl Rogers é um dos principais psicólogos identificados com a Psicologia Humanista (ou Terceira Força da Psicologia), tendo desenvolvido, a partir de seu trabalho com psicoterapia individual e posteriormente com a aplicação de suas idéias no trabalho com grupos, uma original e consistente metodologia de exploração e desenvolvimento do potencial humano, a qual tem se mostrado eficiente nos campos da psicoterapia, educação, criatividade, administração, solução de conflitos e treinamento em relações humanas, entre outros. Em todas as formas ou finalidades em que as propostas de Rogers são aplicadas, destaca-se seu credo de confiança nos potenciais de crescimento dos indivíduos e dos grupos quando deixados livres para buscar a satisfação de suas próprias necessidades, interesses e objetivos de desenvolvimento pessoal, em um clima psicológico no qual estejam presentes certas condições de aceitação, compreensão e autenticidade. Na aplicação mais conhecida da metodologia rogeriana grupal, os Grupos de Encontro, pessoas se reúnem com o objetivo de conquistar um relacionamento mais profundo, autêntico e criativo que as habituais relações estereotipadas e mascaradas que predominam no convívio social dito normal. Neste processo, trilhado a partir do esforço compartilhado dos participantes em romper as barreiras do condicionamento cultural que os distancia de sua própria experiência e da comunicação autêntica com o outro, progressivamente graus cada vez mais profundos da vivência emocional, afetiva, relacional e cognitiva costumam ser explorados, resultando, não raro, em significativas mudanças positivas em diversos campos do jeito de ser dos participantes.
2. Dimensão Transpessoal do Ser: Na defesa de uma visão otimista dos potenciais da natureza humana, diversas escolas, estudiosos e praticantes da psicologia contemporânea têm ido além das propostas da Psicologia Humanista mais clássica e apresentado uma visão de homem em que, a exemplo das tradicionais concepções dos místicos e espiritualistas, são destacadas possibilidades transcendentes da consciência e da personalidade, vistas agora da perspectiva de sua dimensão espiritual e cósmica. Tais psicologias congregaram-se, a partir de 1969, em um novo movimento, auto-proposto como a Quarta Força da Psicologia e articulado por iniciativa de Maslow, o mesmo mentor que anteriormente havia liderado a institucionalização da Psicologia Humanista enquanto corrente da psicologia contemporânea. O novo movimento, inicialmente intitulado Psicologia Trans-Humanística, acabou adotando o designativo Psicologia Transpessoal, destacando assim o interesse e a crença na dimensão transcendente da natureza humana, cujas potencialidades últimas iriam, de acordo com estas escolas, além das experiências biográfica e organismicamente limitadas, adentrando domínios da realidade e do ser que, na falta de melhor termo, podem ser designados como espirituais.
3. Aplicando a Metodologia Rogeriana à Exploração da Dimensão Transpessoal: Diversas metodologias têm sido aplicadas pelas escolas de Psicologia Transpessoal para exploração das potencialidades espirituais de seus clientes e eu me perguntei se a abordagem rogeriana, a qual tem se mostrado eficiente na exploração e desenvolvimento de todas as dimensões da experiência pessoal e relacional em que foi aplicada, não seria também útil e revolucionária neste novo campo. A proposta me parece particularmente promissora uma vez já ter sido amplamente constatado que as práticas da Abordagem Centrada na Pessoa, especialmente as que envolvem grandes grupos (os chamados workshops Comunitários), propiciam, mesmo sem visar esse fim, farta ocorrência de fenômenos e vivências transpessoais (estados de consciência alterada e ampliada, vivências arquetípicas, manifestações paranormais, eventos sincronísticos, fenômenos energéticos pouco conhecidos, experiências místicas, etc.). Surgiu-me então, entre outras, a idéia de promover um trabalho de grupo com metodologia rogeriana em tudo semelhante aos grupos de encontro normais, salvo por um detalhe: Desta vez os participantes não se reuniriam com a proposta e intenção de explorar e vivenciar as dimensões emocionais e relacionais de suas pessoas e de seu meio psicológico, mas estariam voltados a empenhar esforços para explorar e vivenciar as potencialidades transpessoais, ou espirituais, de suas consciências, de seus seres, da realidade, e do próprio Ser como um todo, seja lá como cada um entenda, acredite ou, sobretudo, descubra e experiencie o que isto possa significar.
Num grupo de encontro normal, o clima propiciado pelas condições facilitadoras propostas por Rogers e a disposição dos participantes em se encontrar consigo e com o outro de uma maneira mais autêntica são eficientes em promover a descoberta, exploração e desenvolvimento das dimensões emocionais e pessoais habitualmente despercebidas e pouco valorizadas, ou mesmo deturpadas, censuradas e reprimidas, no convívio social habitual. No caso do grupo por mim idealizado, espera-se que as mesmas condições facilitadoras, agora consoantes com a nova intenção e proposta dos participantes, sejam também eficientes em favorecer a exploração e o desenvolvimento das potencialidades transpessoais, as quais, na cultura racionalista e materialista em que vivemos, também costumam ser ignoradas, censuradas, ridicularizadas, ocultas e temidas, ou então submetidas às armaduras dogmáticas, sectárias e autoritárias das religiões institucionalizadas.
A mudança na intenção, na expectativa e no foco assumidos pelos participantes, fator que essencialmente diferencia o grupo aqui proposto dos grupos de encontro habituais, parece-me extremamente relevante, pois mesmo no ambiente libertador dos grupos de encontro comuns diversas facetas da repressão cultural ao transpessoal ainda costumam persistir, de forma aberta ou velada. Tenho, na verdade, constatado que, ao passo que manifestações emocionais (de choro, de medo, de raiva, de carinho, de afeto, de desejo, etc.), por exemplo, sejam ocorrências bem aceitas e mesmo estimuladas nos grupos de encontro, vivências mais abertas, expressivas e autênticas das potencialidades transpessoais freqüentemente costumam ser pouco percebidas, aceitas, compreendidas ou estimuladas, possivelmente devido aos vários temores, desinformações, desconfianças e preconceitos profundamente arraigados pelo condicionamento cultural. Fica clara assim a relevância de um grupo rogeriano específica e declaradamente voltado para a exploração transpessoal, um ambiente grupal protegido em que a vivência desta dimensão do ser seja favorecida por um clima de permissividade, partilha, companheirismo, aceitação, liberdade, compreensão, acolhimento, respeito, e autenticidade. Esta é minha proposta.
4. Os Grupos Transcentrados: Considero o neologismo transcentrar adequado para designar este trabalho por três motivos: a) Sintetiza a proposta de aproximação entre a Abordagem Centrada na Pessoa e a Psicologia Transpessoal; b) Enfatiza a concepção de que a pessoa não é o limite último e a hipótese de que centrando-nos na pessoa e aceitando-a totalmente poderemos ir ainda além, transcendendo este centro (ou seja, transcentrando) e atingindo algo ainda mais profundo transpessoal; c) Descreve o que se pretende fazer na prática, isto é, centrarmo-nos (com nossa intenção e vivência) na dimensão transcendente do ser e da realidade, centrarmo-nos no que está para além da consciência habitual, centrarmo-nos no transcendente, no trans, ou seja: transcentrarmos.
Até agora foram realizados oito Grupos Transcentrados, na forma de workshops residenciais de fim de semana. Em todos eles foi esclarecido tratar-se de uma proposta nova, ainda em fase de estudos e desenvolvimento, fase esta que prevê a realização de nove workshops experimentais. Ao menos nestes primeiros nove workshops, tratando-se de uma experimentação em andamento, não serão cobrados honorários, sendo as despesas de alimentação, hospedagem e organização compartilhadas pelos participantes, inclusive eu próprio. Tenho dado especial atenção à questão da seleção dos participantes, sendo essencial que estes estejam conscientes dos objetivos e da natureza da proposta e se sintam pessoalmente engajados na sua realização, considerando-se num momento de sua trajetória de vida em que seja oportuna e desejada a exploração e o desenvolvimento destas dimensões de seus seres. É especialmente importante, dado que o diferencial entre o grupo transcentrado e o grupo de encontro comum reside basicamente na intenção e disposição dos participantes, a compreensão de que a proposta não é de um grupo de terapia ou de solução de questões psicológicas pessoais, no sentido habitual e humanista do termo, e que só de forma muito preliminar ou indireta se deve esperar atividades ou efeitos neste sentido. Avesso que sou a entrevistas de seleção, a forma mais coerente de selecionar os participantes a que cheguei (e que até agora tem se mostrado satisfatória) consiste em evitar divulgações públicas (tipo cartazes em faculdades ou malas diretas indiscriminadas) e só aceitar a participação de três tipos de candidatos:
Os que eu convido: São aqueles que, tendo eu algum conhecimento dos interesses e do jeito de ser da pessoa, dão-me a impressão – intelectual, emocional ou intuitiva – de ser alguém que eu gostaria que estivesse lá.
Os que meus convidados convidam: Tenho estendido este poder – de identificar participantes em potencial – aos meus convidados, mas ressalto que estes não percam de vista a responsabilidade implicada, tanto para o sucesso do grupo como para o próprio bem estar do participante convidado, e sejam portanto bastante criteriosos e esclarecidamente bem intencionados em seus convites.
Os que se convidam: Incluí nesta categoria as pessoas que, mesmo sem ter sido convidadas por mim ou por meus convidados, tomaram conhecimento do grupo, compreenderam a proposta e se identificaram com ela, sentindo-se intimamente motivadas e convictas de que devem estar lá. Nestes casos, quem sou eu para obstar o destino, o acaso e a escolha e responsabilidade pessoais…