Vera Lygia Menezes Figueiredo
* Trabalho apresentado no IV FÓRUM NACIONAL DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA (Brasília, DF –Brasil -28/10/2001 a 03/11/2001).
INTRODUÇÃO
“Quando ouço, verdadeiramente, uma pessoa e apreendo o que mais lhe importa, em dado momento, ouvindo não apenas as suas palavras, mas a ela mesma, e quando lhe faço saber que ouvi seus significados pessoais privados, muitas coisas acontecem.”
(Carl R. Rogers – 1973:210)
Conheci a sra. V. em um momento de desespero frente a alta hospitalar do seu marido. Fisionomia envelhecida e cansada, uma imensa tristeza na voz ao dizer que não aguentava mais a vida que levava. Um casamento de muitos anos, atualmente ambos na 3ª Idade.
A visitação ao homem idoso hospitalizado atendia à demanda do médico-assistente para um apoio psicológico ao doente: pautas comportamentais discrepantes, reativas de complicações do seu quadro orgânico, tornavam-no uma pessoa de difícil trato. Mas, quem pediu ajuda foi a sua esposa, que o acompanhava na internação. Conversei com o casal, expliquei meu trabalho. O doente disse não perceber necessidade de uma psicóloga para si, e tentou estender sua opinião para a esposa. Esta refuta e afirma a sua própria necessidade. Neste primeiro encontro, caracteriza-se uma situação que a sra. V. percebe-se com um problema pessoal grave e importante, que tenta resolver e não consegue.
No dia seguinte, pela manhã, houve uma alta hospitalar – a do marido, e uma baixa hospitalar – a dela , a quem prestei atendimento psicológico por quase dois anos até a sua morte.
Com esta senhora, vivenciei seu adoecer, seguido de um ano de um viver liberto das amarras existenciais construídas, e o seu processo de morrer. Pressuponho que a morte, antes de concretizar-se no corpo, já vinha existindo em sua alma. E somente após a visão explícita do seu feio semblante é que a coragem para ser e viver pôde desabrochar. Na hora do tudo ou nada, a tão decantada liberdade pôde ser experimentada.
Através do relato de uma assistência psicológica efetivada ao longo de uma internação hospitalar, estarei entretecendo os postulados teóricos preconizados por Carl Rogers para uma Relação de Ajuda, além de afirmar a Abordagem Centrada na Pessoa como uma potente perspectiva de trabalho para o psicólogo em contexto médico-hospitalar.
FIXIDEZ E A POTÊNCIA DE SER
“Pode-se também formular a pergunta nos seguintes termos:
será melhor gritar e precipitar seu próprio fim,
ou calar-se e barganhar uma agonia mais lenta?.”.
(Milan Kundera)
A sra. V. é hospitalizada por conta de uma forte dor abdominal, que a nauseia e a deixa enfraquecida fisicamente. Exames são prescritos, hipóteses diagnósticas levantadas. Ela recebe sedativos para a dor, além de hidratação venosa, e é mantida hospitalizada para observação e fechamento de um diagnóstico médico.
Apresento-me para o segundo atendimento. No dia anterior, após desfilar suas mazelas e chorar muito, havia pedido que eu a ajudasse. Encontro-a no mesmo estado: prostrada e lamuriante. Quer muito falar de suas agruras familiares, reclama das necessidades pessoais insatisfeitas por não saber como se desvencilhar de problemas que a mantém sempre no mesmo lugar. Não se queixa da hospitalização, pelo contrário, aprecia a atenção e a solidariedade dos profissionais; sente-se acolhida e protegida, distante dos seus conflitos.
Dispomo-nos a trabalhar juntas. Vamos, então, a cada encontro, possibilitando descobertas sobre si mesma, desvelando sentimentos, compreendendo dificuldades… buscas frustrantes ao longo de uns vinte anos para mais, de um amor idealizado pelo esposo e pouco correspondido, no seu entender. Frustração, raiva, revolta… sentimentos ainda não claramente percebidos por não se encaixarem na imagem que tem de si mesma: é aquela que sempre cede, e que por isso pouco pode se cuidar e se poupar. Não se enxerga capaz de libertar-se, está à mercê do outro, através dele existe – esta é sua questão crucial !. Sente saudades de uma filha (que optou por viver sua própria vida, distanciando-se da família), expressa irritação e tristeza por um filho que se assemelha ao pai em temperamento, e que lhe traz aborrecimentos por conta de uma vida pessoal acidentada.
Nos dois últimos dias de sua hospitalização, observo mudanças atitudinais na jovem idosa que, paulatinamente, vão ganhando expressão, e nas trocas com o meio interpessoal hospitalar vão revelando que um processo de crescimento desponta: o reconhecimento e a aceitação de alguns sentimentos, que favorece a reflexão sobre os seus conflitos familiares e as possibilidades de ação a partir disso; o “ensaio” de algumas atitudes com relação ao esposo, nas suas visitações diárias à doente; a iniciativa de re-estreitar laços com a filha distanciada através de telefonemas convidativos à visitação no hospital; as possibilidades do viver, já esboçadas pela aparição da vaidade feminina no seu dia-a-dia no hospital, pelos telefonemas para os amigos, pelas visitas dos parentes que faz questão de solicitar, e também pelas reivindicações para manter-se bem assistida pela equipe de saúde.
A sra. V. recebe alta hospitalar, sendo recomendada uma continuidade no atendimento médico em ambulatório. Disponibilizo assistência psicológica pós-hospitalização por conta da preocupação demonstrada, de sua parte, de não perder um espaço que percebia vinha lhe fazendo bem. Ela fica de entrar em contato.
O campo relacional estava preenchido por ela e eu e a situação, que são o ambiente. Havia um texto (o mundo interno e subjetivo dessa pessoa) e um contexto (tudo aquilo que acompanhava o seu texto). Quando a sra. V. criticou o contexto, pôde rever o seu texto, possibilitando escolher para além das alternativas já prontas, reorganizando as percepções sobre si própria e sobre o mundo, pois “o comportamento se mantém coerente com o conceito de self e altera-se conforme este último também se altera”. (Rogers, 1992:224)
Havia uma incongruência do self, onde se configuravam discrepâncias entre suas necessidades pessoais, a percepção destas, e as ações que permitiriam a sua satisfação. Havia uma auto-imagem construída alhures no passado, que obstaculizava atualizações, gerando uma existência autolimitada que vinha sendo incomodamente arrastada. “O eu que se afirmava vazio está cheio de conteúdo, que o escraviza justamente porque ele não o conhece ou aceita como conteúdo.” (Tilich, 1976:118)
A tomada de consciência de sua experiência pessoal, segundo ROGERS (Rogers & Kinget, 1971), tende a ser uma diretriz no processo de reorganização das suas condutas atuais e das condutas futuras de sua vida.
Com a liberação do self para novas construções no presente, há uma tendência a um aumento da auto-estima por reconhecimento de potencialidades, que podem ser transformadas em atitudes construtivas e prazerosas, e a redução da angústia por afastamento dos grilhões da não-consciência que tendem a paralisar as expressões criativas. Em outras palavras, dá-se ênfase à experienciação da pessoa, onde a preocupação do terapeuta, nos orienta ROGERS (in Wood, 1994:264), deve estar “não com a verdade já conhecida ou formulada, mas com o processo pelo qual a verdade é vagamente percebida, testada e aproximada”.
TILICH (1976:82,139), discutindo a ontologia do ser, aponta o sujeito da auto-afirmação como um eu centralizado, onde ele é um eu individualizado, apesar deste eu somente poder ser este eu porque tem um mundo estruturado, ao qual ele pertence, e do qual ao mesmo tempo está separado. “Empenhar-se pela auto-afirmação faz uma coisa ser o que ela é” (id:15). Há uma opção a ser tomada, certamente espinhosa e muitas das vezes dolorosa, porém libertadora, que é a de possibilitar a potência que se tem de realizar-se contra a resistência de outros seres.
Eis o ponto de partida para uma Relação de Ajuda: “(…) uma das condições quase sempre presente é um desejo indefinido e ambivalente de aprender ou de se modificar, desejo que provém de uma dificuldade percebida no encontro com a vida”. (Rogers, 1991:260) Contudo, esta relação torna-se possível somente quando acontece debaixo de um clima de aceitação e de crença na capacidade daquela pessoa de empreender, na sua maneira singular, o resgate da sua responsabilidade sobre si mesma até onde ela quiser e puder ir.
FLUIDEZ E AS FORÇAS CONSTRUTIVAS DO SELF
“Temos a tendência a ver na força um algoz e na fraqueza uma vítima inocente.” (Milan Kundera)
“Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir, quando o forte é fraco demais para poder ofender o fraco.”. (Milan Kundera)
Mais ou menos uma semana após a alta, a sra. V. é internada em estado de emergência, indo direto para a UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). Acontece uma cirurgia de longa duração, com momentos críticos pelo seu delicado estado orgânico. Suspeição de câncer intestinal.
A sra. V. pede a minha presença. Momentos difíceis no confronto com a sua realidade de adoecimento, atitudes oscilantes e hesitantes pelo temor da morte. Sentimentos conflituosos relativos aos tratamentos médicos, estados de ânimo flutuantes.
Interconsulta e orientação familiar passam a ser minhas atividades constantes, facilitando as comunicações e amplificando os movimentos de ajuda à doente. A família e a equipe de saúde são estimuladas a participar intensamente desses seus momentos de hospitalização, compreendendo e acolhendo suas necessidades de atenção, de carinho, de apoio enfim.
Com o vínculo terapêutico estreitado em um “setting” flexível e adaptado por nós duas, as variáveis típicas de um espaço hospitalar puderam ser mais bem controladas e minimizadas (telefonemas, entrada e saída no quarto de profissionais ou atendentes, presença da família, etc), possibilitando nesta intimidade momentos de vívidas emoções e ‘insights’. Espontânea e corajosamente a sra. V. vai procurando formular planos de ação concretos, já que a experiência da responsabilidade sobre si torna-se mais aceitável. Emerge decidida a modificar sua vida, a permitir-se viver e a ser feliz. Dispensando os familiares da tarefa de “porta-vozes” (comportamento até então habitual seu), procura maiores explicações do médico acerca de sua doença (já consegue, agora, verbalizar a palavra ‘câncer’); enfrenta o medo pelo tratamento radioterápico prescrito, e lida de uma melhor forma com a difícil questão de uma colostomia permanente (intervenção cirúrgica de desvio do trânsito intestinal). Complementando este ciclo de tratamento intensivo de saúde, uma nova cirurgia é efetivada. A evidência orgânica da sua doença é afastada, até onde os resultados dos exames clínicos podem revelar.
Recebe alta hospitalar, já demonstrando atitudes de engajamento na responsabilidade dos procedimentos de manutenção do seu tratamento, sendo muito estimulada pela filha, que agora a acompanha permanentemente. Após haver experimentado a possibilidade concreta da morte, a sra. V. optou por ressignificar sua vida e libertar-se para viver. Ela havia deixado a morte para o momento real de sua aparição.
Ao longo de um período de mais ou menos um ano, vem visitar-me de quando em quando para contar as novidades. Sente-se ótima, vívida; diz ter-se dado férias da família, está passeando muito. Sua mudança física é surpreendente, parece ter rejuvenescido uns dez anos. Fala-me das coisas que vem descobrindo, de suas conquistas no âmbito pessoal-familiar-social. Às vezes uma sombra insinua-se no seu semblante, é o medo da recidiva da doença. Mas, logo em seguida, abre um sorriso maroto para falar da estupefação da família pelos seus novos comportamentos.
A família, às vezes, vem aconselhar-se comigo: reclamam das mudanças ocorridas na sra. V. e, relutantemente eu percebo, dizem-se contentes por vê-la tão feliz, “tão bem”. A filha, que com ela caminha incansavelmente ao longo do tratamento clínico, pede-me de quando em quando um apoio psicológico: quer partilhar sua tristeza por temer a recidiva da doença, quer entender a possibilidade de ligação da sofrida vida de sua mãe com o aparecimento do câncer, quer confirmar a importância dos estímulos que vem oferecendo para que sua querida mãe possa viver uma vida de forma mais prazerosa.
Através da relação terapêutica per se, configurada como um instrumento necessário e suficiente para focalizar o universo daquele ser que sofre, o enfoque centrado na pessoa facilita as experiências bloqueadas a virem à consciência e poderem ser simbolizadas, gerando assim uma abertura à experienciação, fundamental ao processo de mudança efetiva.
ROGERS (Rogers & Kinget, 1971) havia preconizado que, na liberdade da experiência, a pessoa sente-se livre para reconhecer e elaborar suas experiências e seus sentimentos pessoais, como ela crê que deve fazê-lo. “(…) uma característica desta mudança é que o indivíduo move-se de um estado em que seus pensamentos, sentimentos e comportamentos são governados pelos julgamentos e expectativas em direção a um estado no qual baseia seus valores e padrões em sua própria experiência”. (Rogers, 1992:183)
A liberdade do self possibilita que os recursos da pessoa (potenciais internos) sejam utilizados de uma forma mais construtiva, resgatando forças revitalizantes (fluidez de energia potencial); criam-se condições de vislumbrar metas vitais mais abrangentes e completas (ressignificação do seu momento existencial), abrindo espaço para um desenvolvimento mais positivo (no sentido de não-danoso) e coerente com sua realidade atual. Adquire-se uma maior autonomia nas atitudes e comportamentos para se alcançar os objetivos pessoais. Não se está obrigado a negar ou a deformar o que sente para conservar o afeto ou a estima dos que desempenham um papel importante na sua vida. Confirmando com ROGERS (1992:225): “O resultado essencial é uma estrutura de self com uma base mais sólida, a inclusão de uma proporção maior de experiência como parte do self e um ajustamento mais confortável e realista à vida”.
A MORTE ENFRENTADA COM DIGNIDADE
“A fraqueza de Tereza era uma fraqueza agressiva que o derrotava sempre e que o transformou numa lebre aninhada em seus braços.”
“O que significa ser lebre? Significa que a força foi esquecida. Significa que dali para diante um não é mais forte do que o outro.”
(Milan Kundera)
Enfim, um dia, a sra. V. precisa ser novamente hospitalizada por fortíssimas dores. Há indício de metástase (infiltração de células cancerígenas em outra parte do organismo). Uma bateria de exames é solicitada, e os resultados não trazem muita esperança. Por um curto período de tempo, ela ainda consegue voltar para casa, alternando os momentos de internação. Mas a doença perversa ganha a batalha, e no hospital finda por permanecer, fazendo uso de coquetéis de sedativos cada vez mais potentes. Seu enorme sofrimento perdura por uns quatro meses.
Queria ver-me todos os dias. Eu também a queria ver. Combinamos sobre o melhor momento para conversarmos, quando a sós podia ‘abrir sua alma’, conforme costumava dizer. Havia uma questão que a Sra. V. sempre trazia à baila: como teria sido sua vida, se houvesse desistido do casamento? Foi certo o que fez – prosseguir com ele, ou na verdade abriu mão do seu viver? Ia tentando explorar seus sentimentos no antes e no agora, como um balanço de vida. Pôde comprender que o marido foi o que pôde ser, que muitas prisões foram construídas por ela mesma. Foi-lhe também importante falar sobre os momentos felizes vividos; com que prazer saboreava essas lembranças!
Paralelamente a estes ‘mergulhos para o interior de si’, havia a realidade dos desconfortos da dor que enfrentava, do avanço da doença, e dos procedimentos médicos necessários porém muito invasivos. A isto tudo reagia com vigor, dando-se o direito de exprimir no tempo e na ocasião propícios os seus sentimentos, os seus desconfortos, os seus desejos, o que favorecia a uma menor ansiedade pela hospitalização e pela sombra da morte. Uma “nova” sra. V. descortinava-se aos olhos dos familiares e da equipe de saúde, pois fazia questão de colocar-se como co-partícipe das decisões sobre o seu corpo e o seu bem-estar. As vezes suas atitudes geravam polêmicas, mas ela tinha um jeitinho todo especial de amortecer os choques, conseguindo conduzir seus momentos de vida de uma forma mais autônoma e melhor ajustada às suas necessidades. O terço final de sua vida, no hospital, foi ocupado com as preocupações sobre a morte, seu desejo quanto ao funeral e os seus pertences pessoais, e como a família ficaria sem ela. Momentos pungentes de despedida , de desespero para os familiares, e de tristeza para a equipe profissional.
Uma tarde quis confidenciar um segredo que, disse-me, carregava desde menina, e que nunca teve coragem de contar para ninguém; ela mesma já não tinha certeza se o fato havia acontecido, mas não queria levar esta lembrança consigo. Tudo veio entrecortado por um mar de lágrimas, soluço, tremores corporais. Mal sabíamos que este seria seu último dia de consciência, pois no dia seguinte entraria em estado comatoso e, após três dias, viria a falecer.
Deste baque, o esposo da sra. V. veio a sucumbir pouco tempo após. Ainda nos encontramos algumas vezes nesse meio tempo; a doença crônica, da qual era portador, evoluiu negativamente com muita velocidade. Sua profunda tristeza o impedia de sair do vazio deixado pela morte da esposa. Ele sentia-se como uma lebre, frágil e indefeso; não conseguiu deixar de ser lebre.
Tendo o processo de experienciação desencadeado, eu percebia que nos intervalos entre os nossos encontros a sra V. ‘trabalhava’ muito consigo mesma. Pois quando eu me apresentava no dia combinado, ela já ansiosamente queria compartilhar seus sentimentos, contar as últimas novidades ocorridas. “(…) insights significativos ocorrem no intervalo entre as entrevistas,e embora o insight pareça bastante simples, é o fato de adquirir significado emocional (grifo do autor) e operacional que dá a ele o ar de novidade e nitidez.” (Rogers, 1992:139)
Entendo que a sra. V. pôde singularizar o seu processo de adoecer e até mesmo o seu morrer. Na segurança da relação terapêutica, a sra. V. foi capaz de permitir-se experienciar sua verdade, conhecer-se um pouco mais, construir seu presente e vivê-lo, onde “(…) a raiva é mais claramente sentida, mas o amor também; o medo é uma experiência feita mais profundamente, mas também a coragem.” (Rogers, 1991:175)
Termino este relato clínico valendo-me de uma definição sobre o crescimento pessoal, de C. MOUSTAKAS (in Miranda, 1983:10), bastante pertinente à ocasião:
“O sentido de ligação a outra pessoa é um requisito básico para o crescimento individual. O relacionamento deve ser tal que cada pessoa seja considerada um indivíduo com recursos para o seu próprio desenvolvimento. O crescimento, às vezes, envolve uma luta interna entre necessidades de dependência e de autonomia; mas o indivíduo se sente livre para se encarar se tiver um relacionamento em que sua capacidade seja reconhecida e valorizada e em que ele seja aceito e amado. Então ele estará apto a desenvolver seu próprio potencial de vida, a tornar-se mais e mais singular, autodeterminado e espontâneo”.
CONCLUSÕES
“Aqueles que passam por nós,
não vão sós,
não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”.
(Antoine de Saint-Exupéry – “O Pequeno Príncipe”)
O processo orgânico do adoecer leva a uma ruptura da realidade cotidiana da pessoa. Quando a hospitalização faz-se necessária, um nova realidade será descortinada. Neste contexto, há um pulsar humano dinâmico pelos inter-relacionamentos que se constroem, dos quais passiva ou ativamente o doente participa. Em meio ao sofrimento, o doente tende a procurar quem o conforte, quem sintonize com seus sofrimentos; a hierarquia vertical das categorias profissionais não lhe é tão significativa quanto a hierarquia dos valores humanos.
A pessoa, ao ser hospitalizada, mostra-se geralmente confusa e aturdida com o impacto da doença e com as consequências refletidas na sua vida pessoal-familiar. Quer sair disso, quer voltar a ser o que era e como era, assusta-lhe ser e/ou estar diferente. Seu pedido de ajuda é para partilhar sua confusão, aliviar seus medos, livrar-se do desconhecido que a assusta porque é justamente a perda do controle sobre si que teme.
“Do ponto de vista da Abordagem Centrada na Pessoa”, nos alerta ROSENBERG (1987:20), o ‘foco’ é dado pelo cliente (…). Isto implica que o cliente não só levante os temas e conflitos emergentes, como tenha a liberdade para explorá-los ou abandoná-los no decorrer do processo. Mesmo que se disponha de pouco tempo, este procedimento se mantém.” Assistir psicologicamente ao doente hospitalizado intenta facilitar a liberação do self para vivificar as suas forças construtivas. Assim, esta pessoa transforma-se no seu próprio agente de mudanças. “Uma relação de ajuda significa favorecer ao outro as condições mínimas para seu desenvolvimento” (Morato, in Rosenberg, 1987:25). Para tal, o psicólogo centrado precisa estar imediatamente presente e acessível ao seu cliente, apoiando-se na sua experiência, momento a momento, para facilitar o movimento terapêutico. “Acredita-se que um número pequeno de encontros, ou mesmo um único, tem uma função terapêutica e pode ser suficiente para que o cliente se organize internamente e prossiga sem ajuda”. (Rosenberg, 1987:19).
O método de trabalho de uma ‘Relação de Ajuda’ pode ser entendido como propiciar um clima contínuo tal de aceitação e liberdade que a pessoa possa re-pensar e avaliar seus desejos e necessidades. Autovalorização e autocorreção são as duas operações fundamentais advindas do conhecimento reflexivo. Este tipo de conhecimento é uma capacidade potencial existente em todo ser humano de compreender-se a si mesmo e resolver seus problemas, de modo suficiente para atingir a satisfação e a eficácia necessárias a um funcionamento adequado para si.
A Intervenção Psicológica Centrada na Pessoa, caracterizada pela Relação de Ajuda, deve ter como fundamentos:
· As atitudes do psicólogo (necessárias e suficientes) que ensejam a função facilitadora do processo de auto-exploração e mudança na pessoa
· A pessoa é capaz de viver e elaborar suas experiências de forma integradora, utilizando os seus próprios recursos potenciais.
Quando necessário, o psicólogo centrado também pode vir a ser um facilitador das comunicações, colaborando para uma maior integração na ação terapêutica da equipe de saúde, através do estímulo à reflexão sobre as atitudes profissionais e a capacidade de escuta refinada, de forma a que possam oferecer um ambiente acolhedor e facilitador para a expressividade da pessoa hospitalizada.
O profissional de saúde, via de regra, escolheu sua profissão motivado pela ajuda ao próximo e comunga um sentimento de humanidade. Muitas das vezes as emoções do doente são identificadas corretamente; contudo, precisa haver uma disponibilidade interna daquele profissional para ‘abrir-se ao outro’, caso contrário suas intervenções tenderão a ser diretivas, podendo até mesmo inibir ou bloquear a expressividade do doente. ROGERS (1991:290-294) comenta que a maior barreira à comunicação interpessoal é a natural tendência da pessoa para avaliar, julgar, e conseqüentemente aprovar ou desaprovar as afirmações e as atitudes de outra pessoa ou de outro grupo, partindo da apreciação do que foi dito do seu próprio ponto de vista, do seu quadro de referência interno. “Assim, quanto mais fortes forem os nossos sentimentos, com muito mais facilidade deixará de haver elementos comuns na comunicação”. A relação, deste modo, não conduz ao crescimento/desenvolvimento do outro. “E nessa medida creio que agora mais facilmente se evidencie que nem todas as relações interpessoais mantidas pelo indivíduo são consideradas relações de ajuda. Nem todas ajudam a crescer”. (Rosenberg, 1987:26)
Olhar o contexto hospitalar sob o prisma da Abordagem Centrada na Pessoa é considerar as forças dos relacionamentos emocionais nas mudanças, nas restaurações e nas melhoras do indivíduo. É acreditar nas expectativas e valores individuais como as partes mais importantes no sucesso para um bem-estar pessoal, a partir do seu compromisso de trabalhar no sentido da mudança. E isto tanto pode ser verdadeiro para o doente como para o profissional de saúde.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. 35ª ed. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 1985
MIRANDA, Clara F. de & MIRANDA, Mário L. Construindo a relação de ajuda. 6ªed. Minas Gerais: Crescer, 1983
ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991
_______ Liberdade para aprender. Minas Gerais: Interlivros, 1973
_______ Terapia Centrada no Cliente. São Paulo: Martins Fontes, 1992
_______ & KINGET, Marian Psicoterapia e Relações Humanas. Madrid: Alfaguara, 1971
_______ & ROSENBERG, Rachel L. A pessoa como centro. São Paulo: E.P.U., 1977
ROSENBERG, Rachel L. (Org.) Aconselhamento Centrado na Pessoa. São Paulo: E.P.U., 1987
TILICH, Paul A coragem de ser. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
WOOD, John K. (org.) Abordagem Centrada na Pessoa. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1994