Marcos Alberto da Silva Pinto
*Texto escrito em 2003 e apresentado no VII Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa em Nova Friburgo/RJ em 2007.
O presente trabalho visa questionar o diagnóstico e a sua real utilidade. Busca-se iniciar uma reflexão a respeito do diagnóstico servir muito mais para manter o estigma da pessoa que sofre e o conforto do profissional de ajuda em firmar-se como pessoa superior nesta relação.
A proposta do trabalho é apresentar alternativas ao diagnóstico, buscando encontrar a pessoa que existe e sofre por detrás deste rótulo, pessoa esta que como todas, possuem sentimentos, histórias e sentidos e que quando estigmatizadas normalmente deixam de ser enxergadas como pessoas com potenciais, sonhos, desejos e possibilidades.
O trabalho é elaborado a partir de experiência pessoal, profissional e teóricas, buscando convidar o leitor a repensar a postura diagnóstica através dos princípios básicos da Abordagem Centrada na Pessoa.
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É improvável que alguém tenha condições de precisar há quanto tempo o diagnóstico é utilizado como forma de ajuda no campo da psiquiatria e da psicologia.
O primeiro “Manual de diagnóstico e estatísticas de distúrbios mentais”, da Associação Americana de Psiquiatria foi editado em 1952, sendo este, o primeiro manual oficial de distúrbios mentais a conter um glossário de descrições de categorias diagnósticas.
Este manual, hoje em sua quarta edição devidamente revisada e ampliada, foi e é amplamente aceito pela maioria da comunidade que trabalha com saúde mental no Brasil e no mundo, e segundo ele mesmo, tem a função de “realizar o tratamento do paciente”.
Na própria psicologia, existe uma vasta literatura a respeito do diagnóstico, sua importância, suas formas, técnicas e métodos.
Todos eles, devidamente embasados e demonstrando a sua importância e funcionalidade na relação de ajuda.
É importante verificarmos o sentido original da palavra diagnóstico (gnossis= conhecimento; dia=através), ou seja, conhecer o outro através. Conhecer o outro inteiro, por trás da fachada, em seus sentimentos e sentidos.
Em minha opinião, infelizmente, o que vemos hoje como diagnóstico é algo completamente oposto a esta concepção.
Gostaria de convida-los, através deste trabalho a refletir a respeito do diagnóstico (este que temos hoje em dia). Tão pouco questionado em função de uma quase unanimidade quanto a sua importância na relação de ajuda.
Em um de seus livros, Carl Rogers menciona o seu medo em escrever algo que seja controverso, e que ao escrever, fazia isto como se fosse apenas para ele próprio ler, pois se escrevesse pensando que outros o leriam, provavelmente mediria as suas palavras e não seria inteiro e autêntico em suas idéias.
É com este espírito que eu desejo me posicionar acerca do tema mesmo tendo claro que esta é uma visão muito pessoal e diferente da grande maioria.
Quando eu era criança, me lembro que adorava bife de fígado, até o dia em que descobri o que era um fígado. Perdi a fome, o desejo e o interesse no tal bife. Ainda que me contem o quanto ele é necessário e faz bem a saúde, simplesmente não o como.
Já não me importa mais nem o seu gosto, se há grande quantidade de ferro, etc. Assim funciona o rótulo.
Durante a minha vida profissional, tenho acompanhado em meu consultório, pessoas que chegam já devidamente diagnosticadas tanto por colegas quanto por outros profissionais de saúde.
Muitos chegam por sua própria conta buscando o seu diagnóstico.
Em minha opinião, o diagnóstico tem nos servido muito mais pra estigmatizar e menos para ajudar.
Por meio do diagnóstico, o outro já não interessa, os seus sentimentos, medos, necessidades. A pessoa que está por detrás do diagnóstico vira mero coadjuvante.
Embora muitas vezes revestida com uma capa de necessidade, a minha impressão é que o diagnóstico tem servido, na maioria das vezes, como manutenção a um modelo confortável e arcaico para o profissional de ajuda, que desta forma, abre mão do contato, do relacionamento e do vínculo, que a meu ver é o que de fato importa nesta relação.
Quando se diagnostica o outro, a meu ver, se está colocando a pessoa em uma condição inferior. A pessoa passa a ser o segundo plano. O diagnóstico afasta o profissional da pessoa.
Muitas vezes, em meu consultório, tenho encontrado pessoas previamente diagnosticadas, e o que tenho visto é que esta situação tem colaborado para a própria pessoa sentir-se inferiorizada e conformada com a situação, em muitas vezes até se alimentando e trabalhando para a própria manutenção deste.
Frases do tipo: – Afinal eu sou mesmo depressivo; – O que se pode esperar de um esquizofrênico como eu; a meu ver colaboram para que a pessoa perca a crença na sua possibilidade de se desenvolver e enfrentar a sua dificuldade em condições de igualdade, buscando a sua libertação e melhoria da qualidade de vida. Ao invés de cuidar, o diagnóstico tem servido para que haja uma total descrença e pré-conceito com a pessoa que sofre.
Há muitos anos, em uma visita a um hospital psiquiátrico, conversei com uma senhora que me contava estar em sua oitava internação. Contou-me que desta vez derrubara um prato de comida no chão e soltara um palavrão, o que fez com que a sua família acreditasse ser o início de uma nova crise, o que resultou na sua atual internação. Questionei esta senhora dizendo que eu já havia, por muitas vezes, derrubado coisas e dito palavrões e que isto não fazia com que eu fosse internado. A senhora olhou pra mim com lágrima nos olhos dizendo que eu não tinha o estigma de louco e por esta razão eu derrubar um prato e ficar irritado tinha um significado para as pessoas, mas em relação a ela a mesma atitude tinha outro significado.
Em outra ocasião uma cliente me disse que não agüentava mais passar pelas tais crises de depressão. Eu disse a ela que se estivesse passando pela mesma situação de vida que ela, provavelmente também estaria muito triste e sofrendo. Ela ficou meio chocada e me disse que eu era a primeira pessoa que entendia o seu sofrimento sem rotulá-lo. Depois disso sentiu necessidade de questionar a sua própria “depressão” e concluiu que este era o nome que davam para o seu sofrimento, e que ela merecia simplesmente se sentir triste ou alegre de acordo com o andamento da sua vida. Decidiu que não seria mais apenas um rótulo que a empurrava pra baixo. Resolveu buscar em si a sua capacidade de caminhar em direção a vida.
Certa vez ainda, um rapaz diagnosticado como “esquizofrênico”, me procurou e toda vez que eu aceitava as suas atitudes e enxergava por trás do seu rótulo o seu sofrimento ele me dizia que não tinha jeito pois era um “esquizofrênico”. Eu sempre mencionava que entendia que ele vivera a maior parte de sua vida com este diagnóstico, mas eu me interessava mesmo por seu sofrimento, independente do nome que lhe deram. Um dia ele chegou ao consultório com aquela fisionomia de sempre, trazido por parente e ao fechar a porta me disse que andava pensando no que conversávamos e que ele em função do diagnóstico que recebera, nunca se dera ao trabalho de encarar as suas dores e sua vida, e que a partir daquele momento queria olhar para si, para as suas angústias, medos, sonhos… No início me disse que não se sentia confiante em demonstrar pra todos que se percebera como um ser não mais inferior, pois tinha medo da reação das pessoas que já estavam acostumadas com isto. Depois, começou a pensar que do mesmo jeito que podia ser ele mesmo ali comigo, gostaria de tentar ser assim com os outros. Para isto concluiu que deveria começar a se posicionar. A família espantada passou a questioná-lo e a me questionar, pois ele começara a ser meio hostil e questionador. Começou a dizer não e isto desagradara à família que havia se acostumado com uma pessoa dependente e dócil. Na opinião da família, ele estava piorando, embora para ele este era o início de sua libertação. Para minha tristeza, depois de algum tempo, ele desistiu da psicoterapia dizendo-me que não tinha forças para lutar contra o rótulo que lhe fora imposto de “esquizofrênico”, e que de certo modo, a psicoterapia estava lhe fazendo mal, pois nela, se via uma pessoa “normal”, mas que como apenas ele e eu o víamos assim, ele não encontrava forças para enfrentar as pessoas que amava. Disse-me chorando que iria escolher ser o “esquizofrênico” conhecido e aceito de sempre.
Este é apenas alguns de tantos exemplos dos males, que ao meu ver, os diagnósticos produzem.
Talvez o maior problema para se abrir mão do diagnóstico, seja o de acreditar na capacidade natural da pessoa em se autodirigir.
Outra dificuldade é que abrir mão do diagnóstico significa que o profissional pode perder parte do seu “poder” e “superioridade” sobre o “paciente”.
Provavelmente poucos profissionais de ajuda queiram se colocar numa condição de igual perante o outro, pois isto acarretará numa perda de seu “status”, e provavelmente “em nome do bem”, será mantido esta tradicional forma de “ajuda” de opressor versus oprimido.
É sabido por todos os profissionais que buscam a Abordagem Centrada na Pessoa como sua referência, que desde o início, esta abordagem foi conseqüência da percepção de Carl Rogers a respeito do mal, ou pelo menos da “ausência de ajuda” que o diagnóstico pode causar.
O próprio Rogers nos conta em várias situações a sua experiência quando trabalhava em um centro de orientação infantil em Rochester onde uma mãe que ele entrevistava através de um questionário pronto visando o diagnóstico do filho ao se despedir comentou algo como: – Que pena, achei que aqui poderíamos conversar a respeito daquilo que me aflige.
Neste momento, ele percebeu que o enfoque estava sendo dado ao questionário, as regras, ao diagnóstico e não a pessoa que era a parte realmente importante em todo o processo.
Este foi o primeiro passo de Rogers em direção a esta nova visão que hoje conhecemos como Abordagem Centrada na Pessoa.
Há aqueles que possuem como referência a ACP e defendem o diagnóstico como forma do profissional poder se comunicar com outros profissionais que não tem como referência a ACP. Desta forma, estamos nos enquadrando a um modelo que coloca a pessoa em um segundo plano e estamos nos curvando a pressão e ao padrão de outras referências. O mesmo respeito que devemos ter com colegas que possuem outras referências, devemos saber exigir ao nos posicionarmos contra o diagnóstico da forma como este é realizado e mantido.
Não podemos esquecer que o importante, na relação de ajuda, é a pessoa.
Para mim, não agrada colaborar para que a pessoa do cliente seja ou se sinta contaminada com rótulos, pois isto apenas colabora para que ela perca a crença em si e em sua condição de buscar um movimento de libertação interna. Crescimento está intimamente ligado à liberdade e o diagnóstico em nada colabora para isto. Interessa-me a pessoa que está por trás do diagnóstico. A pessoa que sofre, que tem sentimentos e histórias. A mim, agrada olhar o outro em sua unicidade, respeitá-lo em seus sentimentos e sentidos e deixá-lo caminhar em seu caminho apenas facilitando condições favoráveis para que ele se desenvolva em sua direção própria.
Este talvez seja o momento de nós, que acreditamos em uma forma de ajuda mais humana, nos unirmos em torno do não diagnóstico e buscarmos uma ajuda cada vez mais livre de regras, nos libertando também para irmos em direção à pessoa que sofre de uma forma verdadeiramente genuína.
Referências:
American Psychiatric Association (2000). Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios mentais (4a. Edição). São Paulo: Ed.Artmed
Moffatt, A.(1983). Psicoterapia do oprimido: Ideologia e técnica da psiquiatria popular (4a. Edição). São Paulo: Cortez Ed.
Nowen, H.J.M.(2000). Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Ed.Paulinas.
Pinto, M.A.S.(1999). Apostila do Curso de introdução a Abordagem Centrada na Pessoa. São Paulo.
Rogers, C., Stevens, B.(1991). De pessoa para pessoa: O problema de ser humano. São Paulo: Pioneira.
Rogers, C.(1983). Um jeito de ser. São Paulo: EPU.