Emanuelle Coelho Silva
*Texto escrito em 5/3/2006.
No início era Caos. Tudo existia, mas não havia ordem. A fonte de todas as coisas pairava latente na natureza do Caos. Em um determinado instante uma ordem se manifesta e surge então a primeira divindade: Gaia, a Terra.
Há tempos o homem cria seus mitos, seus deuses, que refletem, (até hoje) a sua própria natureza, os sentimentos interiores, medos, desejos mais profundos, sempre acrescidos por elementos que remetem a existência à imortalidade e ao prazer e satisfação de cada sentimento e emoção (humana), que se torna divina.
Os mitos, as histórias criadas são em sua maioria de caráter atemporal, acontecimentos e personagens misturam-se sem o cuidado de datas e seqüências. O mesmo acontece com o inconsciente humano, que também age de tal forma, resgatando passados, confundindo-se com o presente.
No inicio mitológico, tudo era CAOS, e na natureza humana, é o caos que inicia as grandes manifestações, as descobertas de si e as revelações. O constante caos só se fará ordem à medida em que o homem é tomado pela “TERRA”, pela firmeza de suas idéias, de seus sentimentos, para começar a origem. Nietzsche, em seu livro Assim falou Zaratustra, diz que é preciso dar vazão ao caos para que a luz possa se fazer, ou seja, o caos é o início da criação, é o início de tudo. No dia-a-dia, a cada novo caos instaurado, caminha-se para a criação ou o surgimento de uma nova perspectiva, de um novo horizonte, um novo “deus (interno)”.
A criação, o caos, o desenvolvimento são sempre permeados por sentimentos e sentidos, desejos e instintos, que conduzem o ser na busca por si mesmo. Um desses sentimentos mais aclamados por cientistas, poetas, artistas e pessoas comuns é o AMOR, sensação que invade, que enlaça, que embriaga os amantes. Esse sentimento tão estudado pela ciência, pela filosofia, pela psicologia e por diversas áreas, ainda é fonte de grande mistério, e está presente em alguns dos mitos mais interessantes, principalmente na greco-romana.
Ao tentar entender esse sentimento, que trava uma batalha entre o bem e o mal, o homem cria mitos e histórias que fascinam e o exaltam. O que é o amor? Por que o amor? Os mitos, que foram criados para explicar (e aceitar sentimentos humanos) também fazem alusão ao amor, de formas diferentes, desde o mais fraternal ao possessivo e doentio, que leva a outros sentimentos e sensações que resultam, sem sempre em frutos doces.
Um dos mitos greco-romanos que pode ser citado é o de Ares (Marte para os romanos), que tem a paixão, o amor e a tragédia como marcas de sua história.
Ares apaixonou-se por Afrodite (Vênus para os romanos), a deusa mais bela do Olimpo, que era casada com Hefesto (Vulcano para os romanos), filho de Juno. Hefesto era o castigo das deusas a Afrodite, que obrigou o casamento entre eles, para puni-la pelo poder de sedução que ela exercia sobre os outros deuses do Olimpo.
Afrodite e Ares encontravam-se constantemente as escondidas até que Apolo (Sol para os romanos), o deus que tudo via, contou a Hefesto que sua mulher o traía. Hefesto então, confeccionou uma rede de ouro invisível e armou uma armadilha para os amantes. Quando foram consumar mais uma vez o adultério, Afrodite e Ares ficaram aprisionados ao leito e Hefesto trouxe todos os deuses para observar a vergonha de Afrodite. Ao serem libertados, Afrodite esperava que Ares assumisse o seu amor e mesmo expulsos do Olimpo fossem vagar pelos cantos da terra juntos. Porém Ares frustrou a deusa abandonando-a. Afrodite, a deusa do Amor, transformando seu amor em ódio, rogou uma praga para que Ares se apaixonasse por todas mulheres que visse, tornando-se assim um deus constantemente apaixonado e agressivo, que tomava as mulheres a força quando estas não cediam à sua sedução. A primeira mulher que encontrou e se apaixonou foi Aurora esposa de Astreu.
O masculino e o feminino, o amor e o ódio, a traição, a vingança e a inveja, sentimentos humanos são exaltados no “mundo dos deuses” e vividos por eles. Essa dualidade de sentimentos, a “fraqueza” que eles remetem são extremamente humanas e compartilhadas. Uma analogia, onde o amor de Afrodite e Ares pode representar o que é verdadeiro, mas que sofre as interjeições e intervenções das normas (sociais), que aqui são representadas pelo casamento e pela ira das deusas invejosas. Esse amor, que transforma e embriaga também causa dor e decepção, que distinguem homem e mulher mais uma vez, que separa a dualidade, e os coloca em lados diferentes, quase opostos, onde o desejo de ser amada, sob qualquer circunstância, leva a mulher a querer o amor sob sua forma mais plena, já o homem, não consegue assumir o amor que sente, repreende seus sentimentos, em razão das regras, das normas pré-determinadas, procurando recompensar o sentimento renegado, com paixões diferentes e menos profundas. Essas “posições” tomadas por masculino e feminino os colocam em patamares diferentes e as reações dos deuses não diferem em muito da reação do homem e mulher do mundo inferior do mundo humano.
Essa emoção enigmática e potente, que é o amor, desperta no homem um instantâneo fascínio, quase surreal. Um conceito (quase) mítico contado e cantado em imagens, versos e poemas. É sempre muito evocado, através dos séculos, nas mais criativas e diferentes formas. Registros singulares e marcas de encontros e separações o acompanham.
A história de Hades também pode ser citada como exemplo de um amor, é verdade que é a história, talvez menos romântica entre todos os deuses da mitologia greco-romana, mas não menos importante para tentar entender a luta milenar do ser humano para aceitar seus sentimentos, seus desejos e instintos mais profundos.
Hades é o deus do inferno, conhecido como Plutão pelos romanos. Sua história traz uma ilustração dos sentimentos mais instintivos, sobre a dor e a morte, com base no amor.
Com a divisão dos reinos, os domínios do subterrâneo, o inferno, e tudo que se esconde, incluindo pesadelos e sentimentos de culpa pertencem a Hades. De seu reino, Hades ausentou-se apenas duas vezes. Numa dessas visitas fora de seu mundo, pediu a Zeus que lhe desse sua filha Perséfone (Prosérpina para os romanos) em casamento. A resposta de Zeus foi a de que a decisão cabia a mãe de Perséfone, Deméter (Ceres para os romanos). Deméter afirmou que necessitava de sua filha para a fecundação das plantas. Hades não se deu por vencido e aproveitando o momento em que Perséfone estava na Sicília colhendo flores, raptou-a utilizando o seu manto de invisibilidade. Quando Deméter percebeu o desaparecimento de sua filha, procurou Zeus que consultou ao deus que tudo via, Apolo, que lhe informou do ato de Hades. Deméter então prometeu provocar a escassez de alimentos até que sua filha voltasse, mas só aceitaria sua volta se esta não houvesse consumido alimentos no reino dos infernos. Hermes, o mensageiro dos deuses, foi chamado para descer ao reino de Hades e convencê-lo de devolver Perséfone. Mas já era tarde, ela tinha comido um grão de romã, ficando presa eternamente no subterrâneo. Hermes conseguiu convencer Hades a dividir sua amada com a sua mãe e esta a aceitar sua filha. Perséfone passou então a freqüentar o reino dos infernos durante o outono e inverno, a ajudar sua mãe durante a primavera e brilhar no Olimpo durante o verão.
Este mito remete aos sentimentos humanos relacionados a morte, aos pesadelos, as tormentas, as culpas, e ao amor que dilacera e separa. Uma vez experimentado o novo, o desejo, o sexo, mesmo em pequenas porções, como um grão de romã, prende ao desejo de descobrir e de aventurar-se em novos caminhos, deixando para trás a inocência do amor (o abandono da mãe, experimentando o alimento do inferno de Hades). Percebe-se o quão profundo os sentimentos, os desejos mais profundos conduzem a atos que nem sempre são aceitos ou esperados. É a eterna busca de satisfação do ser humano, através do desejo, do amor.
O amor passa de sereno a extravagante, dilacerador, provocador. É o momento em que o instinto e o sentimento se misturam e dão origem a reações imprevisíveis, impetuosas humanas.
O que foi dito até o momento é de um amor que envolve o ser e o outro. Mas além da dualidade, existe o amor a si próprio, a contemplação de si, que é um sentimento primário do homem, que leva a desdobramentos nem sempre tão aceitos pela sociedade, pela cultura.
Esse sentimento por si mesmo, remete ao desejo de crescimento, de aprimoramento, de aceitação, de grandeza, de paixão por si mesmo, e revela-se tão grandioso e poderoso, que por vezes é punido pela lei (castradora) social. A contemplação de si mesmo (o narcisismo) é por vezes associada ao egoísmo e ao desprezo pelo outro e pode ser bem ilustrada pela história de Narciso, que foi punido por sua autocontemplação.
Narciso era um jovem de singular beleza, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias adivinhou que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferente aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa Eco – segundo outras fontes, do jovem Amantis – e seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. A flor conhecida pelo nome de narciso nasceu, então, no lugar onde morrera.
O que pode pensar, (sem tentar ser conclusivo) mas apenas explicativo sobre o amor e a evolução do ser, é que o homem é entremeado pelo amor, sob suas várias formas e ações, que provoca o crescimento e o desenvolvimento da personalidade individual, o SER. A partir desse sentimento tão peculiar, a existência passa a ser criada e a idéia do outro a ser construída em si. O amor é base, é chão.
Não se pode esquecer da interferência do outro, que vem acompanhada da percepção individual que este outro tem dos sentimentos que também o compõe. Os sentimentos de si e do outro dão origem à nova formação ou desenvolvimento da nova percepção que cada um desses terá da realidade que estão inseridos, inscritos.
Ser homem, humano é demasiado complexo e por vezes pode ser bastante penoso, mas é sempre a partir dessas provações, desses obstáculos que o eu, que o ser é moldado. Conhecer-se, aceitar-se a partir de sentimentos, instintos, de si, do outro, é o caminho para o tornar-se.
O caminho percorrido em busca da formação do ser é permeado por todos os sentimentos que os mitos trazem consigo, amor, ódio, ressentimento, vingança, contemplação, inveja, sexualidade, desejo, instinto, sentimentos que o homem partilha da sua história com a dos deuses, e que, quase que inconscientemente, derramam sobre este, as expectativas de entendimento e de resolução de tais problemas, que o próprio homem é capaz de solucionar.
Vemos o quão são complexos o sentimento do homem de tornar-se SER, e a busca incessante por respostas, que por vezes, vêm ilustradas por histórias e mitos mirabolantes e cheios de efeitos que tentam criar uma ligação à vida cotidiana, mesmo que inconscientemente ou instintivamente.
Essa é a grande viagem do ser humano, a busca por si mesmo, a busca por explicações em suas próprias criações, sejam os mitos, na arte, na música, na ciência, seja na cultura que circunda e molda os passos desse árduo e longo caminho.
Lembrando Guimarães Rosa, que soube como poucos descrever esse sentimento de falta e eterna busca, o homem é um SER em busca de SI MESMO, através do outro e de si próprio (o eu e o outro):
“Viver é muito perigoso e carece de coragem.
Viver é muito perigoso porque ainda não se sabe.
E aprender a viver é que é o viver mesmo”.
Bibliografia consultada
VIEGAS, Sônia. Amor e Criatividade. Belo Horizonte, Mar. 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução Alex Marins. Editora São Paulo: Martin Claret, 2005.
ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. Tradução Manuel Jose do Carmo Ferreira e Alvamar Lamparelli. São Paulo: Martins Fontes, 1995