Textos

Psicologia popular clinica.

Maria Eufrásia de Faria Bremberger

Mestre em Psicologia  – PUC-Campinas(2009)

Docente, Supervisora da área educacional e clínica da Anhanguera Educacional – Unidades Jundiaí e Campinas

Psicoterapeuta com consultório particular e parceria com consultório médico.

E-mail: brembergerfb@ig.com.br 

 

TIPO DE TRABALHORelato de experiência.

 

RESUMO 

Esse trabalho relata a experiência da autora sobre a abertura de um consultório de psicologia privado em uma região da periferia de Campinas, atendendo pessoas em situação sócio-educacional-econômica baixa. Trata-se de uma iniciativa, enquanto atividade profissional privada, um tanto quanto desafiadora pois segundo levantamentos bibliográficos, os atendimentos psicológicos nesses contextos são realizados por vezes via postos de saúde, extensão de projetos de instituições acadêmicas, entidades filantrópicas ou religiosas. Nessa região, no qual o consultório foi instalado, os profissionais liberais da saúde que podem ser encontrados com mais freqüências, na condição de autônomo, normalmente são os dentistas e fonoaudiólogos. No decorrer do amadurecimento das idéias da concepção desse projeto, sua implementação, o desenvolvimento do trabalho bem como o fazer propriamente dito, deparei com muitas indagações e dúvidas que me obrigaram a recorrer à intensas leituras nas mais diversas áreas da psicologia, na área da educação popular, ao código de ética do psicólogo, conversas com professores, escuta das experiências dos profissionais que lá se encontravam, ampla leitura demográfica e social da população e, principalmente, resgate da minha própria história em relação com a psicologia e com as comunidades carentes, enquanto pessoa e profissional. Ainda que esse consultório possua 2 anos de existência, percebo que estou começando a identificar o eixo empírico dessa minha prática nesse espaço, qual seja, uma modalidade de intervenção clínica no âmbito psicoeducativo com vistas à implicações terapêuticas, acompanhada pelos princípios filosóficos e científicos da  Abordagem Centrada na Pessoa.

 

PALAVRAS-CHAVE:  Psicologia popular, Psicologia clínica, Abordagem Centrada na Pessoa.

(Texto completo)

INTRODUÇÃO

Ter nascido em uma comunidade rural, de família desprovida de bens materiais, mas, dotada de bens afetivos e princípios cristãos me propiciaram um grande alcance. Resta agora saber o que fazer, quando se está lá. Não há dúvidas, para quem foi criada no terreiro da religiosidade, que o próximo passo é descer da grande montanha anunciando aos quatros cantos do mundo a “[...] Boa Nova a toda a criatura[1]tal como ordenou Jesus aos seus Apóstolos e a todos os seus discípulos.

Durante todos os anos da minha graduação em psicologia, principalmente a partir de 2002, participei de várias atividades tanto na universidade, como em outros espaços acadêmicos, sociais, comunitários e culturais, sobretudo na região de Campinas. Circulei por esses ambientes seja na condição de estudante, estagiária, voluntária ou pesquisadora. Essas vivências, agregadas à minha própria história impulsionaram-me a levar a psicologia para as comunidades mais carentes, numa modalidade distinta da predominante, ora como um recurso filantrópico, ora como instrumento de pesquisa dos laboratórios da academia do ensino superior.

Entretanto, como estender esses saberes oriundos da minha profissão de uma forma distinta dos modelos tradicionalmente conhecidos, de qual modo as pessoas desses espaços poderiam ter acesso à esse serviço da área da saúde, à semelhança dos serviços particulares disponíveis nos grandes centros urbanos freqüentados por pessoas com médio e alto poder aquisitivo?

A CONCEPÇÃO DO PROJETO E SEU PERCURSO

Surgiu então a idéia de montar nesse ambiente, um consultório clínico privado e daí os pensamentos começaram a borbulhar . Entretanto, no decorrer do amadurecimento das idéias de concepção do projeto, sua estruturação organizacional, sua implementação, o desenvolvimento do trabalho e o fazer propriamente dito, deparei-me com muitas indagações e dúvidas, haja vista que a princípio não localizei nenhum modelo onde me apoiar.

Diante dessas inquietações e, não sabendo como operacionalizar minhas idéias, trabalhei com afinco, durante dois anos, me instrumentalizando para a concretização do projeto.

Recorri a inúmeras leituras, nas mais diversas áreas da psicologia, da educação popular e do código de ética do psicólogo.  Longas conversas com os professores, escuta atenta das experiências dos profissionais já instalados na região, análise do perfil demográfico e social da população e, principalmente, resgate da minha própria história, em relação com a psicologia e com as comunidades carentes enquanto pessoa e profissional. Além disso, a participação nos grupos de encontros do Prof. Mauro Amatuzzi, e o conhecimento do Programa de atendimento psicológico à uma comunidade popular de Clóvis Martins Costa, em parceria com uma igreja católica, onde comecei a participar das reuniões bimestrais como ouvinte, começaram a dar corpo concreto às idéias do meu projeto de clínica popular em psicologia. 

Mas será que todo esse preparo para montar uma clínica realmente se faz mesmo necessário? Não poderia estar seguindo a mesma trajetória dos demais profissionais recém-formados?

Em princípio eu queria estar montando uma clínica com bases sólidas em função de vivencias alheias de colegas, cujos consultórios não sobreviveram aos quatros meses iniciais. Tal peregrinação filosófica, científica, profissional e vivencial buscavam solidificar não a montagem do consultório clínico, mas sim meu Projeto de Vida. Além disso, objetivava sanar as seguintes dúvidas: Que saberes da psicologia estão presentes e cabem nesse espaço? Quais os motivos de não haver consultório de psicologia em comunidades carentes, se havia consultório de dentistas? Como levar a psicologia e seus serviços desvinculados de projetos filantrópicos e acadêmicos?  Como a psicologia e o profissional que a representa são conhecidos e entendidos pela comunidade? É semelhante ao profissional da odontologia ou da fonoaudiologia?  Em que medida estar com os serviços da psicologia nesse espaço, na modalidade privada, praticando outros valores, readaptando possivelmente o jeito de clinicar, diferente dos moldes tradicionais transmitidos pela academia, não estaria de certa maneira ferindo os princípios éticos preconizados pelo órgão de classe da profissão?  

Essas indagações e essa atitude mais cautelosa, ao levar os serviços da psicologia para esse espaço tornaram-se o cerne das minhas preocupações. Fazia-se então necessário delinear os princípios filosóficos, científicos, profissionais desse projeto cercando-me de qualquer eventualidade de cunho científico ou ético às quais teria de responder, seja junto a comunidade científica ou à categoria de classe. Uma vez psicóloga toda e qualquer conduta, enquanto profissional, tem repercussões junto a categoria de classe à qual pertenço,  sob pena de advertências e outras notificações conforme pode ser constatado no Jornal Federal do CFP e em Processos éticos. Acrescento a esse escopo de questionamentos outras informações, oriundas da história de outros profissionais, como por exemplo, os assistentes sociais. Ao longo da história dessa atividade nota-se o quão deturpada se tornou a percepção da profissão do assistente social, cuja prática, ao longo do tempo, ficou marcada por uma imagem assistencialista, culminando na desvalorização do fazer desse profissional, segundo apontam os estudos de Costa (2004).

Para a autora, as atribuições desse profissional, embora reconhecido pela sociedade, mas diminuído na sua importância ocupacional, estava associado pela própria iniciação do campo profissional, concebido no seio da esfera religiosa. Logo, os profissionais dessa área se tornaram reféns da própria história que os originou.

Diante disso, há de se constatar, a relação estreita da prática do psicólogo se assemelhar a uma ajuda humanitária, numa vertente caritativa, principalmente nas comunidades carentes. Isto decorre, de certa maneira, de como a psicologia tem sido levada até à essa população, via academia e profissionais da área. Tal postura pode até mesmo ser identificada junto aos estudantes e estagiárias de psicologia, que de forma implícita, carregam esse estigma de caridade, já que a maior parte dos trabalhos executados nesses espaços, não é remunerada. Caracterizam-se como o exercício da prática da profissão, estágio ou pesquisa, o que não ocorre usualmente com os demais profissionais, engenheiros, contadores, administradores ou advogados, entre outros, cujos estágios normalmente são remunerados.

Igualmente, obtive informações de uma profissional da fonoaudiologia, coordenadora de uma clínica-escola de fono prestados à comunidade, relatando que a profissão também estava sofrendo de alguns declínios de imagem, em face da baixa procura de interessados aos cursos de graduação, somado ao empobrecimento das práticas por partes de alguns profissionais, cujos serviços prestados estavam sendo cobrados a preços baixíssimos, chegando a valores de R$ 5,00 por sessão, em determinados procedimentos, vulgarizando, dessa forma, a profissão.

Isto posto, fiquei atenta para os fazeres da psicologia não caírem na mesma armadilha desses outros profissionais, até porque, fui até a clínica-escola de uma universidade tentar me inscrever na lista de profissionais recém-formados para indicação daqueles pacientes que constassem da lista de espera. Fui informada que a instituição havia interrompido essa parceria com seus ex-alunos, alegando estar preocupada com a qualidade dos serviços, haja vista que a maioria dos profissionais não estava sendo supervisionados. Percebi também que havia certo receio de que os profissionais, cujos atendimentos terapêuticos eram realizados com práticas de valores monetários menores, pudessem sinalizar baixa qualidade do trabalho. Pareceu-me também que a instituição não queria estar associada a esse procedimento.

Mas porque levar a psicologia como uma prestação de serviços privada e não como uma prática social-comunitária vinculado a uma esfera pública, comunitária ou institucional?

Por princípio queria praticar uma atividade psicoterapêutica com a mesma qualidade e ciência das práticas exercidas nos bairros nobres, haja vista que todos têm direito a essa qualidade independente do local em que se encontram.

Além disso, não era minha intenção montar um consultório localizado em um centro urbano de classe média fazendo algumas concessões de horários para uma prática de psicologia popular, conforme o que constatei em algumas propagandas da internet e até mesmo com alguns colegas de profissão. As ações desses profissionais pareciam-me estar muito focadas na prática de redução dos preços e por vezes ecoava como uma conduta benemerente ou caritativa, pois não se pensava, por exemplo, em inovações das práticas psicológicas ou estratégias de atendimento a essa população e que viessem atender às suas especificidades e ao perfil psíquico em que elas foram constituídas.

Contudo, vale registrar que existe um movimento significativo e presença dos trabalhos da psicologia nas comunidades carentes, ainda que de forma incipiente e insuficiente, todavia, não é fácil, e também indignamente remunerado, atuar nesse espaço, via rede pública ou institucional filantrópica. Ainda que tenhamos profissionais e pesquisadores engajados nessa luta de ampliação dos saberes da psicologia para todos e em todos os contextos, especialmente para a população carente, entendo que esse alcance não tem se operacionalizado de forma digna no âmbito ocupacional para o profissional que a representa.

É evidente que a nobreza de um ofício não se faz somente porque ele é pago para ser realizado, mas há de se considerar que na medida em que há um movimento deliberado do profissional para estar em determinado espaço, levando seu ofício de forma concebida por si próprio, passa a ter uma relação mais libertadora com seu público, desprovido de qualquer sentimento de desvalia ou filantropia, ainda que os valores financeiros praticados nesse espaço sejam bem distintos dos praticados no mercado.

E quanto ao fazer dessa prática no âmbito teórico, operacional/estrutural e profissional?

Nesse momento deparei-me com a falta de referência empírica e teórica para conduzir-me, já que o modelo vivido clinicamente era oriundo da prática exercida na clínica-escola e os demais exemplos derivavam dos consultórios dos centros urbanos, freqüentados por uma população mais abastada. Fui então buscar subsídios do “como fazer” no Programa de atendimento psicológico de cunho social voluntário concebido por Clóvis Martins Costa em um bairro da periferia de Campinas. Conhecendo a dinâmica estrutural e processual de seu trabalho, fui delineando meu projeto e a indagação que ficou a mercê de mais pesquisas foi a respeito dos preços que deveriam ser cobrados nos atendimentos terapêuticos, já que no Programa que me servia de inspiração praticava-se preços  simbólicos conforme denominava o próprio fundador  do projeto.

Como minha proposta de trabalho almejava não ter um caráter filantrópico, mas os valores de referências sugeridos pelo CRP/SP[2](Conselho Regional  de Psicologia) eram inviáveis para o público com o qual eu iria trabalhar, como resolver tal questão?

A experiência das profissionais, dentista e fono, com as quais eu estava formando uma parceria foram deveras importante. A dentista atuando naquele bairro há mais de 12 anos e a fono com 3 anos de atuação orientaram-me nos aspectos mais operacionais do trabalho e contribuíram significativamente para a formulação dos preços, o processo da cobrança e a forma de pagamento. Segui os mesmos parâmetros de funcionamento estrutural de trabalho e de atendimento para que houvesse uma sincronia das ações nessa parceria tríade: dentista –fono – psicólogo.

Se os preços praticados no Programa de autoria do Clóvis eram denominados valores simbólicos e, os valores de referência promulgados pelo CRP/SP representavam os valores de mercado, pensei então, em elaborar uma proposta de valores intermediários a essas práticas monetárias, com as quais estava me referenciando. Logo, concluí que os valores praticados na clínica seriam denominados preços populares. Tal definição e atribuição numérica dos valores das sessões terapêuticas contaram também com uma ampla pesquisa, oriunda da combinação matemática: dos preços já praticados pelas profissionais dentistas e fono; da tabela de preços do CRP; dos valores de hora-aula pagos pelas faculdades de ensino superior aos docentes de psicologia; dos salários médios pagos aos psicólogos sociais – comunitários pela rede pública e rede filantrópica e, da renda mensal da população da região, segundo os dados do Censo demográfico da cidade de Campinas[3]. Contudo, é fato que um dos grandes eixos norteadores para se chegar aos valores praticados na clínica, atualmente, se deve aos valores pagos pelos Planos de Saúde aos psicólogos credenciados à sua rede.

Isso posto, há de se perguntar: Não parece um tanto quanto exagerada essa “via crucis” de pesquisar sobre a forma de pagamento ou valores a receber das sessões psicoterapêuticas?  Será que não se está ampliando demais uma situação aparentemente simples?

Inicialmente deve se considerar que estamos falando de um modelo de consultório clínica privada, em uma comunidade carente, cujo projeto está se constituindo numa plataforma que não assuma de modo algum um caráter filantrópico e, que seja um serviço de acesso a todos, sejam diaristas, empregadas domésticas, motoristas, vendedoras, cozinheiras, garçonetes, camelôs, frentistas, guardas, entre outros, bem como seus parentes e filhos.

Por ora, cobrar sessões terapêuticas parece simples, mas se há algo que a academia não ensina é como vender e atribuir um valor à sua prática. Ainda que tenhamos as informações acerca dos valores oriundos da Tabela de Honorários do CRP/SP por vezes não são suficientes ou não é possível aplicar a realidade na qual o profissional se encontra, até porque as atribuições do psicólogo são amplas e em variados contextos. O debate acerca deste assunto é escasso, não só na academia como também não constam nenhuma orientação, referência, estudos ou literatura científica que tratem do tema. Diante disso surgiu a necessidade de explorar esse assunto, que por sua vez, acabou se tornando um tema de discussão no Programa de atendimento psicológico de Clóvis Martins Costa, culminando na produção de um artigo científico, apresentado no III Fórum da Associação Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa, 2010, haja vista a ausência de referência de modo mais esclarecedor do assunto na literatura acadêmica – científica.

 Se há uma proposta ideológica, política, social e profissional na concepção desse projeto, em termos financeiros, qual será o retorno, haja vista que o projeto não tem caráter filantrópico, e sim, é concebido como atividade ocupacional-profissional?

Fiz também uma leitura demográfica, social e econômica da região a partir das informações constantes no Censo demográfico regional disponível no site da prefeitura de Campinas.  Em razão de trabalhos anteriores desenvolvidos na região, via academia ou trabalhos voluntários fiz um levantamento visual empírico dos principais profissionais da saúde localizados na região.  Predominaram os consultórios de dentistas seguidos de fono. Os dados obtidos via Censo registrava que as famílias possuíam uma renda mensal baixa, contudo a economia da região ascendia para um crescimento dado ao interesse e investimento das autoridades políticas municipais, já que a região, além de ser muito populosa é considerada uma massa eleitoreira significativa no município. Em função dessa expectativa pode-se observar nos últimos anos a ampliação da infra-estrutura e serviços públicos da região, bem como o investimento privado comercial e empresarial nesse local. Tal movimentação sinalizava uma aposta no maior consumo populacional, já que a maioria das pessoas dessa região supria suas necessidades deslocando-se até o centro de Campinas.

Ainda que alguns estabelecimentos comerciais e de serviços estivessem se instalando na região tais como: bancos, correios, lojas, escolas e cursos técnicos, escritórios de advocacia entre outros, serviços mais nobres ou mais comumente observados nas regiões de classe média, não se aventuraram nessa região. Ousei trazer um serviço diferenciado, pois além de haver uma demanda para tal prática apostei que a população pudesse consumir não só bens materiais, mas que também pudessem consumir outros produtos, como por exemplo, saúde mental.

Percebi que não sofreria muita resistência ou preconceito em relação aos serviços que eu ofertava em função da existência de uma instituição de ensino superior na região há muitos anos, cujos serviços já eram utilizados pela comunidade desde e, havia uma fila de espera para atendimentos terapêuticos, com um grande número de pessoas, principalmente crianças, conforme informações obtidas junto à clínica-escola de psicologia dessa instituição.

 

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO NA ATUALIDADE

 

Decorridos 2 anos da abertura dessa clínica nessa região, cujo início foi em abril/2008,  percebo que estou começando a encontrar o eixo norteador filosófico e científico dessa minha prática nesse espaço, qual seja, uma modalidade de intervenção clínica psico-educativa com implicações terapêuticas, que por sua vez, está sendo desenvolvida numa relação de tempo definido à semelhança da terapia breve.

Vale esclarecer que adotar um modelo de ciência psicológica na perspectiva humanista e, extrair os conceitos teóricos que melhor se aplicam à realidade que ora se apresenta requer primordialmente, por parte de um psicólogo recém-formado, não só a ampliação de seu repertório científico, mas principalmente romper com certos paradigmas tradicionais da psicologia e outros vícios impressos pela academia. Há de superar concepções teóricas e concepções de prática, já que de uma maneira geral, as pessoas na contemporaneidade, em especial da população com a qual estou trabalhando, não se propõem à um trabalho terapêutico numa vertente preventiva, de auto-conhecimento ou crescimento pessoal. Recorre aos serviços de psicologia normalmente em face de uma situação crítica e emergencial à semelhança dos serviços de plantões médicos em hospitais, e ainda acompanhada de uma relação temporal imediatista na solução dos problemas e de uma visão de “cura”.  Enfim, por vezes, chegam ao consultório clientes dispostos a comprar saúde psicológica como se mercadoria fosse, até porque há de se considerar o ônus, tanto psíquico como financeiro, desse tratamento.

Face da realidade com a qual me deparei, adotei outros parâmetros de trabalho na clínica objetivando garantir uma prática psicológica que fosse possível, sem eximir-me conceitualmente e eticamente de um “fazer psicológico” de âmbito ideal.

E quais foram os elementos que me conduziram a tal prática psicológica?

As experiências já acumuladas em tempos anteriores à instalação do meu consultório clínico, as vivências, as avaliações psicológicas realizadas, os casos atendidos, os relatos dos clientes, as devolutivas quando do momento dos encerramentos, os trabalhos de consultoria e palestras, realizados nas escolas das proximidades, resultado de um trabalho de divulgação realizado por mim; as conversas com pessoas da região, com os líderes ou presidentes das associações de bairros com os quais construí vínculos; a participação em eventos sociais ou festivos da região, entre outros envolvimentos, propiciaram-me um rol de conhecimentos empíricos que foram delineando minha prática em diálogo com os princípios teóricos humanistas adotados.

Ainda que a minha linha de estudo e pesquisa esteja fortemente marcada pela área da educação, mas a julgar por esse conjunto de saberes adquiridos nesse período, conclui que minha prática psicológica não iria obter maiores êxitos, caso trabalhasse numa vertente mais terapêutica psicológica, haja vista, que a maior parte das pessoas dessa comunidade e aquelas que estavam em terapia no consultório, careciam primordialmente de uma ajuda que antecedia à sua própria dimensão psíquica, necessitavam de um trabalho terapêutico que enveredasse para uma vertente de cunho educativo-social.

Em relação ao desenvolvimento desse trabalho numa modalidade breve, tal conduta foi implementada nos últimos meses, em função da própria demanda dos clientes, que por sua vez são ansiosos por uma “cura rápida”, somado às condições financeiras que são restritas. Objetivando garantir que as pessoas usufruíssem desses serviços, ainda que minimamente, no tempo disponível, mas nem por isso menos significativo, eu optei por essa prática, amparada numa concepção de trabalho de “educaterapia”, guiada não mais pelo tempo cronológico e sim pelo tempo significativo. Há de se reconhecer os limites dessa atuação, pois a intenção não era solucionar problemas e sintomas, mas apresentar condições mais ampliadas de possibilidades e escolhas para que a pessoa pudesse tomar consciência e a partir daí montar formas próprias e singulares, que conseguissem acessar, para enfrentar os principais desafios do seu cotidiano.

Para chegar a tal prática, certos princípios e paradigmas tiveram que ser rompidos. Contudo, sem abrir mão dos referencias teóricos tomados como pontos de partida, incorporei ao meu conhecimento, saberes oriundos das técnicas das terapias breves. Apoiei-me nos amplos estudos realizados durante a disciplina psicoterapias breves que lecionei no ano de 2009, no curso de graduação em psicologia, subsidiada pelos trabalhos das pesquisadoras Enéas e Yoshida(2004).

Atualmente os atendimentos clínicos ocorrem no período matutino, uma vez por semana, adotando a prática de preços populares, onde a cobrança dos atendimentos é mensal e antecipada e as sessões são semanais. Houve casos de atendimentos quinzenais com sessões duplas e atendimentos intensivos realizados somente em uma semana. Os atendimentos, a freqüência e a forma como é desenvolvido depende das condições pessoais, ocupacionais e financeiras do cliente. Adoto a mesma forma de pagamento antecipado tal como as minhas parceiras, em função de suas experiências com a inadimplência dos clientes.

A demanda na clínica normalmente é para crianças, cujas queixas giram em torno de dificuldades de aprendizagem e, na seqüência, queixas relativas à agressividade e em seguida transtornos emocionais, tais como medos excessivos.

A demanda por jovens e adultos têm sido pouca, ainda que a maior parte dos problemas das crianças deriva de desajustes do núcleo familiar. Identificando tal situação, mas notando que os adultos resistem à sala de terapia, montei uma estratégia de levar implicitamente a sala de terapia até eles adotando a técnica da biblioterapia, ou seja, enquanto as crianças ficam em atendimento os adultos ficam na sala de espera lendo algum material, artigo ou fazendo alguma atividade que eu preparo para eles em consonância com a queixa trazida e o trabalho desenvolvido na sessão com a criança.  

Por outro lado tenho observado, não só na clínica, como também no grupo de estagiários de psicologia clínica que supervisiono na academia, que levar a criança ao consultório psicológico tem sido um movimento dos pais, ou responsáveis por vezes de forma quase imperceptível, para obter ajuda para si próprios, sem arcar com a imagem de estar “louco” ou ser uma pessoa fraca, já que é fato que a psicologia carrega alguns resquícios da história.

Logo, torna-se um “ônus” muito alto para o adulto colocar e responder para a sua comunidade ou seus familiares tal situação de fragilidade ou até mesmo de constrangimento. Percebendo tal movimento procuro até mesmo nem sugerir terapia para o acompanhante da criança e daí aplico esse método da biblioterapia. Tem sido comum outros membros da família acompanhar o cliente, daí esse método acaba sendo estendido aos demais co-clientes.

 

AS QUESTÕES PROBLEMAS QUE EMANAM DA PRÁTICA

 

Adotando uma prática operacional semelhante à das profissionais com as quais divido a clínica, realizo uma avaliação diagnóstica inicial, sem nenhum custo, para tomar conhecimento da situação e seus desdobramentos, até para saber se a queixa trazida é de natureza psicológica, médica ou outros encaminhamentos. Conforme dito esse primeiro encontro é gratuito, contudo no decorrer da minha experiência tenho notado que esse primeiro contato já tem se caracterizado quase como um atendimento terapêutico, haja vista que as pessoas que têm procurado o consultório psicológico, já se encontram em uma situação tão emergencial que o contato acaba se tornando uma sessão de plantão psicológico à semelhança de um plantão médico.

Tem sido comum essa avaliação inicial durar em torno de 1 hora cujas falas trazidas já são de natureza terapêutica e não operacional da própria prestação de serviços. Nesse sentido observo que a pessoa já teve seu ajuda terapêutica necessária e o trabalho ali desenvolvido lhe propicia caminhar por mais um tempo na vida.  Diante disso ela não retorna para fazer a terapia, pois aquele tempo disponível já deu conta, de naquele encontro, esclarecer suas angústias.

Observando esse ciclo da avaliação diagnóstica ter se transformado em um plantão psicológico, entendo que esse procedimento inicial deve ser mudado, pois dessa maneira estou praticando filantropia já que a pessoa no primeiro encontro consumiu meu tempo e minha competência de modo gratuito.

Mas como operacionalizar tecnicamente um procedimento de natureza tão relacional e humana? Tais questões que estão surgindo no decorrer dessa prática clínica nesse espaço  têm sido objeto de discussões nas supervisões que realizo junto com Mauro Amatuzzi e, por ora, estamos ainda em processo de construção e reflexão.

ALGUMAS CONSIDERACÕES

 Enfim, o clinicar psicológico, em espaços distintos, se constitui como um grande desafio, pois obriga o profissional à criatividade, novos fazeres, novas idéias e atitudes que possam atender às demandas e especificidades do contexto no qual está inserido o público que o procura. Sem se furtar ao referencial teórico adotado há de se fazer novos arranjos conceituais, concessões e, por vezes repensar, debater, refletir sobre os próprios referenciais teóricos que nos acompanham.

Dessa minha experiência nesse espaço percebo que a necessidade de dialogar com outros campos de conhecimentos e referenciais teóricos é essencial à própria sobrevivência da prática. Não estou aqui advogando por um ecletismo teórico, mas para uma articulação e incorporação dos saberes de várias áreas, novas formas de práticas psicológicas e enquadramentos clínicos que se constituam como perspectiva ampliada e distinta dos modelos tradicionais e, que possam ser desenvolvidas em contextos comunitários variados. Logo, faz-se necessário criar um território clínico à altura do nosso tempo.

Sendo assim, considero imprescindível a leitura, a reflexão de todo e qualquer conhecimento, seja oriundo do campo filosófico, científico ou tácito, tal como preconiza Amattuzi (2001), na busca de se conhecer o fenômeno psicológico, uma vez que, o alcance efetivo das práticas terapêuticas psicológicas estar à depender do quanto se conhece esse fenômeno.

Percebo que, a minha prática e jeito de clinicar estão exigindo-me leituras diversas e de outros campos do conhecimento, quebras de paradigmas acadêmico-científicos, ampla discussão dos princípios conceituais da teoria que me subsidiem e, o constante cultivo de reflexões teóricas, clínicas, éticas e profissionais da área.  Penso que o surgimento da clínica ampliada, a dinâmica de funcionamento e, o fazer clínica em diferentes contextos não tradicionalmente conhecidos, exigirá novos fundamentos e reformulações teóricas e profissionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMATUZZI, Mauro Martins. Por uma Psicologia Humana. Campinas, SP: Editora: Alínea, 2001.

ROGERS, Carl R. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1961.

______.  Um jeito de ser. São Paulo: EPU, 1983.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Tabela Referencial de Honorários. Disponível em: < www.crpsp.org.br/crp/orientacao/tabela.aspx>.   Acesso em: julho/2010

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Org.). Psicólogo Brasileiro: Práticas Emergentes e Desafios para a Formação . São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.

COSTA, Selma Frossard. A política de Assistência Social no contexto da educação infantil: Possibilidades e desafios para um trabalho sócio-educativo. 2004. Disponível em: http://www.ssrevista.uel.br/c_v6n2_selma.htm>. Acesso em: maio/2008.

ENEAS, Maria Leonor E; YOSHIDA, Elisa Medici P. Psicoterapias Psicodinâmicas Breves: Propostas Atuais (org). 1ª ed. Campinas, SP: Alínea Editora

ROMAGNOLI, Roberta C. Algumas reflexões acerca da clínica social. Revista do Departamento de Psicologia da UFF, Niterói,  v. 18,  n. 2, p. 47-56, Jul./Dez. 2006.


[1] Mensagem bíblica constante no santo Evangelho segundo são Marcos, 16 :15.

[2] Tabela Referencial de Honorários do CRP/SP, Disponível no site: http://www.crpsp.org.br/crp/orientacao/tabela.aspx

[3] Informações extraídas do site da prefeitura de Campinas http://www.campinas.sp.gov.br/governo/seplama/

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