Edson Rocha Bomfim
“Quando uma pessoa me procura, perturbada por
sua combinação única de dificuldades, constatei
ser muito válido tentar criar uma relação com
ela na qual esteja segura e livre”
(in Tornar-se Pessoa, de Rogers).
Sempre tive interesse pelas ciências do conhecimento humano que se encontram estruturadas na necessidade de compreensão e, principalmente, de valoração da pessoa na sua ambientação social. Devo isto ao surgimento de uma motivação profissional direcionada para a conquista, preservação e aprimoramento de um sistema organizado que propicie a garantia dos direitos fundamentais e assegure, de forma prioritária, o respeito ao indivíduo e principalmente a sua liberdade. No entanto, com o passar do tempo, a experiência convenceu-me de que, em se tratando de “liberdade”, não se pode proceder a uma análise parcial do conhecimento alcançado pelo homem moderno porque, como sustento, as ciências políticas, humanas e sociais se completam quando a “liberdade” é desejada por todos como forma de realização interior de bem-estar. Com essa visão temos dois desafios: o da necessidade de conhecer os tipos de “liberdade” que o indivíduo poderá vivenciar; e o de saber quando se efetiva a sensação de “liberdade plena”. Quanto ao último, a contribuição da Psicologia tem sido valiosa, merecendo referência especial o psicólogo americano Carl R. Rogers.
A Liberdade nas nossas vivências.
Todo indivíduo nasce e existe para ser livre. O sentimento nato de liberdade é, na essência, de origem existencial. Na condição de “ser pensante”, possuidor de inteligência, sua capacidade psíquica é fonte inesgotável de “comandos de vontades” e de estímulos de sensações que precisam ser satisfeitas, porque representam espécies de “estados de necessidades” que são indispensáveis ao alcance do nosso crescimento. Esses “comandos de vontades” correspondem, na concepção de Rogers sobre a Abordagem Centrada na Pessoa, à noção de “tendência atualizante” pela qual – “Todo o organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento”. Ocorre que o crescimento de cada indivíduo nem sempre depende apenas da satisfação dessas necessidades interiores, porque também existem situações de vivências coletivas que estão associadas ao atendimento das necessidades dos outros indivíduos. Por sua vez, no processo de socialização que naturalmente expõe o indivíduo a uma diversidade de interações de comportamentos (objeto de estudo da Psicologia Social), é importante a presença do Estado organizado garantindo os direitos individuais e os direitos sociais. Do elenco dos direitos individuais previstos na Constituição, no meu entender, o que mais enseja uma análise de natureza psicológica é o “direito à liberdade”. De início, deve-se diferenciar o exercício da “liberdade individual”, daquela “liberdade” que repercute nas nossas interações de vivências coletivas: (a) Nas vivências de relações interpessoais que estão sujeitas apenas ao predomínio da efetivação da “liberdade individual”, a abrangência da nossa noção de “exercício de liberdade” fica restrita à satisfação de uma condição psíquica de “autodeterminação” que se manifesta de acordo com os independentes estímulos de “comandos de vontades” originários de estados interiores de sensibilidade e, também, de percepções emocionais representativas das exteriorizações de todas as nossas “ações” e “omissões”. (b) Nas relações do indivíduo que envolvem o Estado, o exercício da “liberdade individual” fica condicionado à observância de uma prevalência de proteção de valores e interesses sociais que, na nossa Constituição, qualificam os direitos sociais. Assim, o “direito à liberdade” que o Estado assegura a cada indivíduo, apresenta-se disciplinado pela necessidade de aceitação de um “princípio de direito” pelo qual a todos são conferidas oportunidades de “poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem”. Verifica-se, portanto, que esse “princípio de direito” contém uma regra geral de conduta que deve ser obedecida sempre que a nossa “liberdade individual” interage com o exercício da “liberdade” dos demais integrantes da sociedade. Além disso, ele sugere uma “aparente limitação” no exercício da “liberdade” ao dispor que ninguém poderá ser prejudicado pelas nossas ações de “liberdade”. Por esta razão, entendo que toda “ação” do indivíduo (isolada ou em grupo) somente poderá ser considerada plenamente “livre” quando não há qualquer espécie de impedimento que impeça a sua efetivação e principalmente quando não prejudicar outra pessoa. Isto é aceitável nas nossas vivências psicossociais, justamente por causa da necessidade de manter-se, no Estado organizado, uma supremacia de respeito aos valores coletivos e aos interesses sociais que estão juridicamente tutelados. Nessa perspectiva, reveste-se de importância a previsão constitucional do “princípio da igualdade” e a do “princípio da legalidade”. O primeiro, estabelecendo que “todos os brasileiros ou estrangeiros residentes no País são iguais perante a lei”, sendo-lhes garantido, dentre outros direitos fundamentais, o “direito à liberdade” (artigo 5º, caput, da Constituição). Por sua vez, pelo “princípio da legalidade”, proporciona-se a todos os indivíduos as condições básicas para ser mantida a estabilidade de um processo de socialização que atenda os ideais de “liberdade social” e consolide um sistema de absoluto respeito à lei pelo qual o “direito à liberdade” está assegurado através da seguinte regra de conduta: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º,II, da Constituição). Como se observa, em face da aplicabilidade obrigatória do “princípio constitucional da legalidade”, também poderá ser imposto ao exercício da “liberdade individual” um outro tipo de “limitação” (agora, de “ordem legal” e não “aparente”). Por exemplo: em face do “princípio da legalidade”, poderá surgir uma lei que obrigue a todos “fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. Digamos que essa lei estabeleça que “a partir de tal data” será proibido “fazer algo”. Diante dessa proibição legal qualquer indivíduo, mesmo contra a sua vontade, deverá obedecer a lei. Ocorre que todos nós temos a “liberdade” de optar pelo “desrespeito” à lei ficando, em conseqüência, sujeitos às sanções cabíveis (livre-arbítrio). Abstraindo-se a análise das implicações decorrentes da decisão de não se respeitar a lei, sustento (apoiado apenas em considerações de natureza psicológica) que essa imposição proibitiva da lei tem o efeito de gerar na nossa “realidade interior”, uma espécie de restrição ao exercício pleno da “liberdade individual” que reflete no nosso psiquismo (que, segundo Rogers, pode influenciar alguma das nossas “tendências atualizantes”). Isto porque o indivíduo, em razão de um agente externo e contrário a sua vontade (a proibição da lei), “deixará de fazer algo” que gostaria de “fazer”, mas que pela lei passou a ser proibido. O mesmo acontece quando a lei determina que “a partir de tal data” teremos que “fazer algo” que não gostaríamos de “fazer”. Em nenhuma dessas hipóteses de intervenção da lei poderá se cogitar da “liberdade plena”. Isto porque o exercício da “liberdade” somente poderá ser tido como “pleno” quando não existir qualquer interferência externa que seja oposta à manifestação da vontade do indivíduo, ensejando, assim, a satisfação emocional das suas necessidades. A “liberdade plena” pressupõe, portanto, a viabilidade da consumação final de um resultado que é alcançado pelo indivíduo em harmonia com os seus impulsos de preferências emocionais e, também, em harmonia com os seus estímulos de necessidades interiores.
Feita a distinção entre o exercício da “liberdade individual” e o da “liberdade” que está sujeita à proteção dos valores e interesses coletivos, observa-se que nos dois casos podem ocorrer bloqueios psíquicos na satisfação de crescimento do indivíduo. Assim, nas relações interpessoais que não envolvem a atuação de proteção social do Estado, as infinitas interações de vivências psíquicas podem gerar, nos casos de ocorrências de adversidades, o surgimento de conflitos de comportamentos emocionais que, segundo Rogers, refletem no nosso crescimento. Com relação às vivências interpessoais que recebem a participação tutelar do Estado como sendo o ente responsável pela proteção dos direitos sociais, o potencial nato de crescimento do indivíduo (tendência atualizante de Rogers) também é influenciado por uma série de fatores externos de socialização. A respeito, destacou Rogers em entrevista concedida à revista Veja, em 1.977, durante o primeiro Encontro Centrado na Pessoa, realizado na Aldeia de Arcozelo, na cidade do Rio de Janeiro: “(…) o ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se atualizar”; concluindo em seguida: “É claro que todos os fatores sociais, econômicos e familiares podem interromper esse crescimento, mas a tendência fundamental é em direção ao crescimento, ao seu próprio preenchimento ou satisfação”.