Esther Gomes de Lima Carrenho
*Texto escrito em 2005.
Há diversos tipos de encontros. Encontro amigável, encontro amoroso, encontro sexual, encontro familiar e assim por diante. O encontro que quero tratar aqui, com certeza, é o mais difícil de definir e explicar, porque é um encontro que transcende a compreensão. Veja o que Carl Rogers fala, já quase no fim da sua vida, sobre esta transcendência se referindo a ela como mais uma característica facilitadora de crescimento no encontro:
Quando estou no meu ponto de excelência como facilitador de um grupo ou como terapeuta, descubro que há uma outra característica. Constato que, quando estou perto do meu centro, do meu eu intuitivo,de uma certa forma e entro em contato com uma parte não conhecida de mim, talvez num estado levemente alterado de consciência na relação terapêutica, então qualquer coisa que faça me parece ser totalmente curadora. Assim, simplesmente minha “presença” é libertadora e de completa ajuda. Não existe nada que eu possa fazer para forçar essa experiência, mas quando posso relaxar e estar perto do meu centro transcendental, posso me comportar de maneiras estranhas e impulsivas na relação, maneiras estas que não tenho condições de justificar racionalmente e que não tem nada a ver com meus processos de pensamento.[1]
Em palavras mais modernas é um encontro que expande o consciente levando a pessoa a experimentar algo que até então mesmo conhecido cognitivamente, não o era visceralmente. E o encontro onde se depara com um mistério singular e infindável que quero chamar o “mistério de encontrar” e neste mistério acontece o que Rogers classificou como:
“crescimentos profundos, cura, e energia estão presentes”. [2]
Em geral acontece entre duas pessoas, mas também acontece entre mais que dois. Pode ser em qualquer ambiente desde que os envolvidos estejam dispostos a experimentar as sensações do seu próprio ser que aparecem como uma resposta para si mesmo ou uma resposta para o outro; ou para as pessoas com as quais se está interagindo naquele momento.
Clark E. Moustakas, psicoterapeuta, em seu livro Descobrindo o Eu e o Outro cita vários relatos de como alguns autores vêem o encontro:[3]
“Existe, no entanto, uma percepção de um tipo bem diferente…É quando, num momento receptivo de minha vida, encontro alguém com quem está acontecendo alguma coisa. Não consigo captar essa coisa de maneira objetiva, mas sei que significa algo para mim. Não consigo dizer que espécie de pessoa ela é, nem o que está acontecendo. Ainda assim, ela me diz alguma coisa, dirige-se a mim, fala de alguma coisa que penetra minha própria vida”. MARTIN BUBER
“Seres humanos não são máquinas com fios soltos ou válvulas queimadas que um cirurgião perfeito possa tocar e consertar, ajustar, retirar ou reconectar. Somos seres interativos, experienciais. Quando respondo ao que passa com uma pessoa, então algo mais começa a acontecer dentro dela.É claro, alguma coisa já está acontecendo antes mesmo que eu responda….Quando eu respondo (ou melhor quando eu consigo responder, pois as vezes tento e falho por semanas ou meses), então algo mais está acontecendo; ela sente realmente alguma coisa, há um sentido surpreendente do próprio eu…” EUGENE T. GENDLIN
“O encontro é a confluência da harmonia e da reciprocidade; é um sentimento de estar dentro da vida de alguém, sem nos esquecermos de nossa própria identidade e individualidade. O encontro consiste numa experiência interna decisiva, na qual se revelam novas dimensões do eu (não como conhecimento intelectual, mas como consciência integral) e se descobrem valores mais amplos e abrangentes”.CLARK MOUSTAKAS
“A ameaça da ansiedade em potencial só pode ser eliminada pelo encontro real com a situação ou atividade temida. Até nos depararmos com a situação real, não sabemos se e como vamos conviver com ela, dominá-la ou sucumbir a ela; até enfrentá-la, não podemos transformar o novo e desconhecido em algo conhecido e familiar. Esse encontro significa abandonar o aconchego do que é familiar e atirar-se ao desconhecido, a um confronto com o mundo…A determinação de ir, em direção a tais encontros mantém abertas as portas à expansão da vida, enquanto que a procura do aconchego familiar torna a vida estagnada e restrita”. ERNEST G. SCHACHTEL”.
Como já disse o encontro pode acontecer nos mais variados ambientes, mas na minha experiência o lugar que mais tenho visto encontros acontecerem é nos Grupos de Encontro. Rogers também via mais possibilidade desta experiência nos grupos de encontro. Tanto que, acreditava que a necessidade psicológica que leva as pessoas para um grupo é:
“uma fome de qualquer coisa que a pessoa não encontra no seu ambiente de trabalho, na sua igreja, e com certeza também não na sua escola ou universidade, nem mesmo, infelizmente, na moderna vida de família.É uma fome de relações próximas e verdadeiras, onde sentimentos e emoções possam se manifestar espontaneamente, sem primeiro serem cuidadosamente censurados ou dominados”…[4]
Fui a um Grupo de Encontro pela primeira vez em março de 1.996. O impacto da proximidade, não a física, pois esta eu já conhecia muito bem, mas o estar perto da essência do outro e o permitir que o outro chegue perto da própria essência, muito me marcou.
No grupo cria-se um ambiente onde o encontro é facilitado. A começar pela proposta. Sai-se do cotidiano e separa-se um tempo onde o objetivo principal é a interação com o outro e ou consigo mesmo num desejo de um conhecimento mais profundo.Quem vai ao grupo já vai sabendo do contexto onde se propõe um contato maior de pessoa para pessoa. Quando um encontro acontece não tem como não haver mudanças e crescimento. Depois de um encontro nunca mais seremos os mesmos. O experimentado num encontro mesmo que dure apenas segundos, se eternizará na vida de quem o vivenciou. A crença de que na interação há um aprendizado é muito antiga. O terceiro rei da história de Israel, Salomão, considerado uma das pessoas mais sábias que já tenha vivido sobre a terra declara num dos seus provérbios afirma que:
“como o ferro afia o ferro o homem afia seu companheiro”.[5]
Além do aprendizado cognitivo que com certeza acontece numa interação, pode acontecer também a experiência que transcende nossa compreensão porque pertence ao mundo sensorial.
Não tem hora marcada para acontecer. Pode ser no silencio. Pode ser no choro! Também não tem forma. Pode ser um olhar, um tocar, um sorriso, uma frase…Mas com certeza é uma interação de almas.É algo difícil de descrever ou definir. É um momento também único. Em geral, do mesmo jeito e da mesma forma e na mesma intensidade nunca mais acontece. Um encontro não se repete. Cada encontro é novo e singular!
Num encontro é possível que algo da pessoa que está estagnado e deserto percebe alguém que lhe oferece uma feição. Gilberto Safra[6], psicólogo, numa palestra, citou que acredita que a presença do outro pode encher de significado algo até então estéril. No encontro é como se algo desértico do mais profundo de um ser humano se revelasse e uma pessoa se apresenta neste vazio O encontro é uma comunicação que se sobrepõe a diferença sexual, racial, social, religiosa, cronológica e pessoal. É algo que se transpõe a pessoa. É uma interação onde a pessoa tem a sensação de se completar no outro. Nessa experiência o que é singular se solidifica na presença do outro. E nesta solidificação algo novo, mútuo, acontece. Novamente deixo aqui a experiência e como Rogers também via esse acontecimento:
“Mas, esses comportamentos estranhos resultam em ações “certas”, de uma maneira curiosa, bizarra. Nesses momentos, parece que meu espírito interno tocou ou penetrou o espírito interno do outro. Nossa relação transcende a si mesma e se torna parte de alguma coisa maior.”[7]
No encontro mútuo o singular se ressalta, exaltando a unicidade que cada um é.
Lembro-me do dia em que num momento de profunda intro-reflexão e também muita dor, recebi um abraço acolhedor do meu psicoterapeuta. Naquele instante no contato do abraço percebi todo o calor do corpo que me envolvia. Houve ali, misteriosamente uma fusão. E desta mistura “algo ressuscitou dentro de mim”. [8] Minha capacidade de sentir.
No encontro, em geral há um sentimento intenso de “sou aceito e sou amado”. Não só naquele relacionamento, mas a partir dali muitas vezes o que foi “gerado” é estendido para todos aqueles que estão a nossa volta.
Não posso deixar de fazer aqui uma correlação com a fé cristã, onde uma fusão entre o Divino e o humano resulta na encarnação da graça, amor e misericórdia divina, na pessoa de Cristo. Do encontro entre o Sagrado e o humano algo novo surgiu para fazer bem a toda a humanidade.
Nem sempre o encontrar é prazeroso. Algumas vezes nos damos conta daquilo que falta quando o outro se apresenta. É necessário então um trabalho de (des) construção daquilo que existe e não faz mais sentido para a existência da pessoa, para então tentar construir o que foi percebido no encontro. E desfazer é doloroso. E não raro às vezes construir algo novo e diferente também pode não oferecer satisfação imediata. Às vezes é necessário tempo para que as novas conquistas e percepções se solidifiquem para então experimentarmos o conforto do bem que esta conquista nos traz.
O encontro não é uma prática psicológica, não dá para fazer um manual, mas requer algumas posturas que se tornam pré – requisitos para a possibilidade dele acontecer. Em primeiro lugar é preciso acolher um ao outro numa aceitação sem reservas e sem preconceitos. É preciso esvaziar-se e se colocar como disponível para que o outro entre, sinta o acolhimento, perceba a si mesmo e se acolha também numa atitude de aceitação de si mesmo e do outro. É como hospedar o outro em si mesmo. Não para mudar a pessoa, mas para que ela encontre um espaço onde a mudança possa acontecer. Nouwen faz um paralelo entre hospitalidade e hostilidade partindo das palavras hospes de hospitalidade e hostis de hostilidade.[9] O acolhimento que antecede ao encontro já eliminou toda e qualquer hostilidade em relação a pessoa presente. Fica apenas a hospitalidade amorosa.
Para isto é preciso humildade. É preciso despojar-se de todo e qualquer saber. Clara Feldman, psicóloga, em seu livro Encontro diz:
“Ser humilde é colocar o foco no outro, é fazer dele o ponto de referência do encontro, é aceitar que tenha metas diferentes das nossas, ou que trilhe caminhos diferentes dos nossos. Ir ao encontro do outro com humildade é construir com ele uma relação de equanimidade, igualdade, reconhecendo nele e em nós virtudes e limitações”.[10]
No encontro quem fala mais alto é a capacidade de sentir e de intuir. Enquanto ficamos empoleirados em cima de uma posição social, título ou cargo, o máximo que pode acontecer é assistirmos a algum encontro, mas experimentar um encontro é impossível. No encontro não há lugar para a auto-suficiência. Todas as regras, e tudo que é convencional se desfazem diante do mistério do encontro. É preciso também estar conectado consigo mesmo enquanto também entra em contato com o outro. E nesta conexão de mão dupla é que posso intuir e perceber o que o outro chama de dentro de mim para ele e vice-versa. E ao mesmo tempo em que me abro para alguma troca também me fecho para que o mistério interior que me atraiu para o outro fique em secreto. Nouwen, teólogo e padre, afirma que quando não somos capazes de proteger nosso mistério interior também não somos capazes de nos doar numa interação.[11]
Enfim só quem consegue amar o outro, ultrapassando as fronteiras da aparência, da sexualidade, das crenças, dos costumes, da cultura, das raças e do conhecimento terá alguma chance de experimentar na interação toda a riqueza misteriosa do encontrar.
Nada melhor do que encerrar com a letra da música Amplidão[12].
Elba Ramalho
Deixa eu te guardar, a casa é sua
Faz em mim teu lar, me reconstrua
Queira me habitar onde eu me escondo
Faz deste lugar só seu no mundo
Eu quero ser onde você sossega a alma
E chora e ri
E encontra a calma pra sonhar, sem dormir
Vem acender as luzes que iluminam o meu coração
Vem ter comigo sua parte da amplidão
De minha parte, eu estou aqui…
Eu quero ser onde você sossega a alma
E chora e ri
E encontra a calma pra sonhar, sem dormir
Vem acender as luzes que iluminam o meu coração
Vem ter comigo sua parte da amplidão
De minha parte, eu estou aqui…
BIBLIOGRAFIA
Bíblia Sagrada (Nova Versão Internacional) Editora Vida. São Paulo
Carrenho, Esther – Raiva: Seu bem, seu mal. Editora Vida. São Paulo – 2005
idem – Ressurreição Interior. Editora Vida. São Paulo – 2004
Feldman, Clara – Encontro – Uma abordagem humanista. Editora Crescer. Belo Horizonte -2004
Fromm, Erich – A arte de amar. Martins Fontes. São Paulo 2000
Moustakas, Clark E. – Descobrindo eu e o outro. Editora Crescer. Belo Horizonte – 1995
Nouwen, Henri J. M. – Crescer – Os três movimentos da vida Espiritual
Renem, Rachel Naomi – Histórias que curam – Conversas sábias ao pé do fogão. Editora Agora Ltda – São Paulo – 1998
Rogers, Carl R. – Grupos de Encontro. Martins Fontes. São Paulo 2002
Idem, Antonio Monteiro dos Santos e Maria Constança Villas-Boas Bowen – Quando Fala o coração – Vetor Editora. São Paulo 2004
Safra, Gilberto – Curando com histórias. Edições Sobornost. São Paulo – 2005
[1] Rogers, Carl R. – Quando Fala o Coração, pág. 88/89
[2] idem, idem
[3] Moustakas, E. Clark – Descobrindo o eu e o outro págs 82/90
[4] Rogers, Carl R. – Grupos de Encontro página 21
[5] Livro bíblico de Provérbios capitulo 27, versículo 17
[6] Safra, Gilberto – Palestra proferida no encontro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos em junho 2006
[7] Rogers, Carl R. – Quando fala o coração pág. 89
[8] Carrenho, Esther – Ressurreição Interior, pág. 37
[9] Nouwen, Henri J. M. – Crescer- Os tres movimentos da vida cristã pág. 65
[10] Feldman, Clara – Encontro – Uma abordagem Humanista pág. 87
[11] Nouwen, Henri J. M. – Crescer – Os tres movimentos da vida cristã pág. 29
[12] Amplidão – Composição de Chico César – Do álbum “Páginas da Vida”.