Maria do Céu Lamarão Battaglia
*Texto escrito em 2001.
Há algum tempo venho me fazendo perguntas relativas às atitudes e ações do psicoterapeuta que ultrapassam o campo da técnica e só podem ser refletidas no campo da ética.
Nos atendimentos, quer seja em consultório com famílias ou indivíduos, quer seja em trabalhos em grupo, alguns posicionamentos não me parecem claros, lógicos ou evidentes. Sinto-me muitas vezes pisando em falso em busca de norteadores que mesmo não sendo rígidos, possam evidenciar o embasamento de minhas escolhas nas atitudes tomadas.
Percorrendo diferentes autores em busca de uma definição de ética deparei-me com Humberto Maturana. Maturana é biólogo e junto com Francisco F. Varela construiu o conceito de autopoiese tão comentado nos dias de hoje. Este conceito define o ser vivo como um sistema auto-organizado integrado nas interações com o meio.
Esta visão sistêmica do vivo, diferente do modelo tradicional causal de input-output, veio revolucionar não só o campo da biologia mas também o campo da psicologia. No âmbito das Psicoterapias Sistêmicas de Família ocorreu um salto ético significativo, a meu ver. Salto este que permitiu a aproximação deste modelo teórico ao modelo teórico da Abordagem Centrada na Pessoa, que referencia minha prática.
Neste momento Maturana traz-me então uma enorme contribuição no exercício de reflexão ao qual me proponho. Partirei de seu entendimento sobre a ética para dar luz a questões que acredito, nunca terão uma resposta definitiva. Estas dependerão sempre do observador, do observado, de onde, quando, por que, para que, etc.
Sendo assim, procurarei em primeiro lugar descrever o pensamento de Maturana e em seguida refletir sobre diferentes questões com as quais nos deparamos no cotidiano de nossa atividade profissional.
Introdução ao pensamento de Maturana
Maturana salienta o quanto nossa cultura privilegia a formação do indivíduo como um ser que necessita tornar-se competitivo para alcançar o sucesso.
Para constatar isso, nos diz Maturana que, basta observar o dilema atual dos estudantes entre preparar-se para o mercado de trabalho competitivo versus o desejo de mudar uma ordem político-cultural geradora de excessivas desigualdades que trazem pobreza e sofrimento material e espiritual com o qual nos deparamos a todo momento, nas ruas, nas revistas, nos jornais, na TV.
Para termos sucesso, temos que competir. Em sua visão, a competição é um fenômeno cultural-humano e não biológico. E como fenômeno humano, a competição se constitui na negação do outro, sendo portanto, anti-ética. Como exemplo ele cita até mesmo as competições esportivas valorizadas como um bem social, onde não existe na verdade uma convivência sadia já que a vitória de um surge da derrota do outro.
Mas se o campo profissional exige uma preparação, fica então colocada a questão: Para que serve a educação, considerando o conceito de servir como conceito relacional (algo serve para algo em relação a um desejo)?
Nossa educação hoje se encontra ainda voltada ao racional. Entretanto, todo sistema racional tem um fundamento emocional. A grande dificuldade é que vivemos numa cultura que desvaloriza as emoções. E nós, nos vangloriamos de sermos seres racionais!!!
Mas o que seria para Maturana uma definição de emoção?
É importante ressaltar que a emoção para Maturana não é sinônimo de sentimento. Emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Apesar de insistirmos em definir que o que difere nossas condutas das dos animais é o fato de serem elas racionais, todos sabemos que quando estamos sob determinadas emoções existem coisas que podemos fazer e coisas que não podemos ou não aceitaríamos sob outras emoções. Biologicamente, as emoções são dispositivos corporais que determinam ou especificam domínios de ações. Isso fica evidente quando nos damos conta de como reconhecemos as diferentes emoções em nós e nos outros: as reconhecemos observando o domínio de ações ou fazendo uma apreciação sobre o domínio de ações que sua corporalidade conota.
Emoções: “os diferentes domínios de ações possíveis nas pessoas e animais, e as distintas disposições corporais que os constituem ou realizam.” ( MATURANA, 1999, p. 22)
A emoção é um fenômeno próprio do reino animal. O racional já se baseia em premissas fundamentais aceitas a priori, porque queremos. Estas premissas são então o ponto de partida de todo raciocínio racional que vai se seguir. Isto se dá nas questões ideológicas e em qualquer outro domínio, como na matemática, literatura, física, filosofia, etc..
“…A aceitação apriorística das premissas que constituem um domínio racional pertence ao domínio da emoção e não ao domínio da razão, mas nem sempre nos damos conta disto…” ( MATURANA, 1999, p.51)
Por que então conseguimos chegar a um acordo em determinadas divergências e em outras não?
Maturana nos fala de dois tipos básicos de divergências: divergências lógicas e divergências ideológicas. As divergências lógicas ocorrem quando um erro é cometido na aplicação de coerências lógicas. Nunca brigamos quando o desacordo é apenas lógico. Ele será esclarecido e o máximo que pode acontecer é ficarmos sem graça por termos nos “enganado”. No erro lógico, no máximo acusamos o outro de burrice ou cegueira. Já em um desacordo ideológico o conflito se estabelece e é a vivência do desacordo como ameaça existencial que leva à explosão emocional.
“ Desacordos nas premissas fundamentais são situações que ameaçam a vida, já que um nega ao outro os fundamentos de seu pensar e a coerência racional de sua existência. “ (Maturana, 1999, pg. 17)
As divergências ideológicas ocorrem quando o desacordo parte de distintos domínios racionais. Este tipo de desacordo se baseia em conflitos de emoção e não de razão já que suas premissas fundamentais não estão calcadas na razão. Pertencem a diferentes domínios. A colocação de que algum argumento é racional apenas denota que todo argumento sem erro lógico é racional para aquele que aceita as premissas fundamentais em que se baseia. As premissas fundamentais de todo sistema racional são não-racionais. São verdades que aceitamos a priori porque nos agradam.
Nos damos conta então de que o humano se constitui no entrelaçamento do racional com o emocional e não em sua dicotomia.
“O racional se constitui nas coerências operacionais dos sistemas argumentativos que construímos na linguagem, para defender ou justificar nossas ações.” ( MATURANA, 1999, p. 18)
Todos os nossos argumentos racionais e nossas ações tem fundamento emocional. E isto não é uma limitação mas sim sua condição de possibilidade. Como vivemos em uma cultura que valoriza o racional e desqualifica o emocional, tememos que a partir do momento em que nos deixássemos levar pela emoção nos perdêssemos no caos. Contudo o caos ocorre exatamente quando perdemos nossa referência emocional, não sabemos o que queremos fazer e nos encontramos recorrentemente em emoções contraditórias.
Evolução e Competição
Segundo o autor, no âmbito biológico a competição não acontece. Este é um fenômeno cultural humano. Os seres vivos não humanos não competem. Fluem entre si e com outros em congruência recíproca (autopoiese). Participam de um meio que inclui a presença de outros ao invés de negá-los.
No exemplo da caça podemos verificar que o animal caçador se alimenta sem que seja necessário que, para que um se alimente, o outro não se alimente. Não são ações necessariamente excludentes. Não existe um que ganha e um que perde. À medida em que ele se satisfaz o outro pode ou não se satisfazer também. Já entre os humanos, para que um ganhe é necessário que o outro perca. E esta é a diferença que faz diferença.
A evolução é entendida como um modo de vida, uma configuração de relações variáveis entre organismo e meio. A evolução se dá quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva numa sucessão reprodutiva. O fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida, e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância, e não em desacordo com ela. A espécie que estiver em desacordo com o meio, se extingue. A história dos seres vivos não envolve competição e a competição não tem participação na evolução do humano. Organismo e meio vão mudando juntos de maneira congruente ao longo da vida.
“… somos o que somos em congruência com nosso meio e que nosso meio é como é em congruência conosco, e quando esta congruência se perde, não somos mais.” (MATURANA, 1999, p. 63)
Maturana cita o exemplo de um tio que estaria no CTI. Este seria um ambiente adaptado às necessidades do tio. No momento em que o sobrinho leva este tio para a praia, ele não teria mais condição de sobreviver porque nem o ambiente está adaptado às necessidades do tio, nem o tio estaria adaptado às condições do ambiente. Sendo assim, o que faz com que o ser vivo se preserve é sua congruência com o meio e não a questão de vencer ou perder.
Este eterno fluir entre o ser vivo e o meio é observado nas mais diferentes esferas de inter-relação e ocorre todo o tempo.
Educação
A educação é vista por Maturana como um processo pelo qual a criança ou o adulto convive com o outro e ao conviver se transforma de maneira que seu conviver se torna cada vez mais congruente com o outro no espaço da convivência. O educar é portanto reciproco e ocorre todo o tempo. As pessoas então aprendem a viver e conviver da maneira pela qual sua comunidade vive.
“ A educação como “sistema educacional” configura um mundo, e os educandos confirmam em seu viver o mundo que viveram em sua educação. Os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao serem educados no educar.” (MATURANA, 1999, p. 29)
Fazendo uma distinção em relação a cognição ele nos fala sobre a objetividade entre-parênteses e objetividade sem-parênteses.
“…os seres humanos, os seres vivos em geral, não podemos distinguir na experiência entre o que chamamos de ilusão e percepção como afirmações cognitivas sobre a realidade.” (MATURANA, 1999, p.44)
Nós não podemos distinguir na experiência entre ilusão e percepção. Isso só pode ocorrer a posteriori quando desqualificamos uma experiência por outra que é tomada então como válida. Como podemos então definir uma realidade como independente de nós se para podermos afirmar que temos acesso a essa realidade deveremos poder distinguir entre ilusão e percepção?
Partindo desta reflexão, Maturana propõe os termos objetividade entre-parênteses e objetividade sem parênteses.
Na objetividade sem parêntese, o que eu estou dizendo é válido porque é objetivo e racional, não porque sou eu quem está dizendo. Se digo que você está errado, não sou eu quem determina que você está errado mas a realidade. Aqui os caminhos explicativos não ocorrem na aceitação mútua, mas sim na exclusão do que é diferente da verdade. O que não está com a “verdade”, está contra ela. Aqui, sou sempre irresponsável na negação do
outro porque é a realidade que o nega. Neste caso, o corpo surge como um instrumento de expressão e também como limite à sua expressão. Se não damos conta da verdade é porque temos alguma deficiência que necessita ser superada. Aqui a ilusão é a expressão de uma limitação ou falha do observador.
Na objetividade entre-parênteses, posso pretender que eu tenha capacidade de fazer referência a uma realidade independente de mim. Aqui não há verdade relativa mas muitas verdades diferentes. Quando me oponho a um domínio de realidade diferente do meu, me oponho a alguém que transita neste referencial de mundo que não me agrada. Esta seria então uma negação responsável. Uma negação do outro e do mundo que ele traz consigo em seu viver. Aqui o corpo surge como algo que nos constitui e que nos possibilita. A verdade é nossa e faz parte de nosso modo de estar no mundo, como a dos demais. A indistingüibilidade entre ilusão e percepção é uma condição constitutiva do observador.
Amor
O amor é a emoção que fundamenta o social sendo que nem toda convivência é social. Aqui o amor é entendido sem conotação religiosa. É visto como a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a aceitação do outro como legítimo outro na convivência que chamamos de social.
O amor é a emoção que funda o social. Sem a aceitação do outro na convivência não há o social. Somos sobretudo animais dependentes do amor. É um fenômeno biológico cotidiano. É um fenômeno tão básico e cotidiano no humano que o negamos culturalmente para dar lugar a outras emoções. A criação de consciência de guerra pode ser um exemplo disso. Só se dá na negação do amor cedendo lugar à indiferença e ao cultivo da relação de rejeição e ódio que negam a diferença e permitem a destruição. Maturana diz que à medida que isso não se dá, a biologia do amor desfaz o inimigo.
Mas, existem relações que não estão fundadas no amor. Estas não são relações sociais.
Relações sociais e não sociais
As diferentes relações se fundam em diferentes emoções. As diferentes disposições corporais dinâmicas especificam diferentes domínio de ações (emoções). Portanto na medida em que diferentes emoções constituem diferentes domínio de ações, haverá também diferentes tipos de relações humanas dependendo da emoção que esteja subjacente. Basta que observemos as emoções para que possamos distinguir os diferentes tipos de relações humanas.
O medo é uma das emoção que nos retira das relações sociais, principalmente o medo de não termos capacidade para convivência social. Ele nos leva à negação do outro, à desconfiança, ao uso da autoridade. É a perda de nossa confiança na capacidade de convivência democrática e da reflexão, conversação e aceitação do outro como legítimo outro, como modos de convivência.
Confundimos domínios porque agimos como se todas as relações humanas fossem do mesmo tipo. As relações que não se baseiam na aceitação do outro como legitimo outro na convivência não são relações sociais. Em nossas vidas convivemos com relações de diferentes tipos.
Como exemplos de relações não sociais temos:
·Relações de trabalho que se fundam no compromisso de cumprir tarefas.
·Relações hierárquicas que se fundam na negação mútua. Fundam-se na obediência e na concessão do poder (supervalorização de um e desvalorização do outro).
Nós seres humanos não somos o tempo todo sociais, mas a biologia humana sim. Como recurso de convivência surgem então as leis com o objetivo de dar conta das relações não sociais. Surgem como coordenação de conduta entre pessoas que não constituem sistemas sociais.
Ética
Segundo Maturana, o problema da ética e da política lhe diz respeito enquanto parte da vida cotidiana de um cidadão que reflete sobre o social. Ética vista como a preocupação com as conseqüências que nossas ações tem sobre o outro. Tem a ver com a aceitação do outro e portanto pertence ao domínio do amor. A ética não tem um fundamento racional mas sim emocional.
A liberdade social depende da aceitação mútua para a convivência harmônica.
Vivemos numa cultura que estimula a competição e a luta e, em última análise, entendemos democracia como a livre disputa pelo poder. Entretanto este estilo de convivência é incoerente com a extinção da pobreza, do abuso e da opressão como modo legítimo de vida. Em síntese, não existe competição sadia nem disputa fraterna.
Maturana reforça a necessidade de uma democracia como um espaço político para cooperação na criação de um mundo de convivência onde todos estejam incluídos.
“…A democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade, e que o outro é tão legítimo quanto qualquer um. Além disso, tal obra exige a reflexão e a aceitação do outro e, sobretudo, a audácia de aceitar que as diferentes ideologias políticas devem operar como diferentes modos de ver os espaços de convivência, que permitem descobrir diferentes tipos de erros na tarefa comum de criar um mundo de convivência, no qual a pobreza e o abuso são erros que se quer corrigir. Isto é uma coisa diferente da luta pelo poder.” (MATURANA, 1999, p. 76)
Maturana atribui o fracasso das ditaduras e dos sistemas totalitários e estatistas, seja de caráter socialista ou não, ao fato de que qualquer uma delas deposita toda a sabedoria em apenas um grupo humano. Gera-se então uma tirania porque negam-se os outros. No momento presente ele vê isto em nossa entrega à sabedoria dos empresários.
A convivência democrática surge da aceitação mútua, não podendo acontecer de maneira inversa. Só a aceitação mútua pode não permitir que o abuso possa ocorrer na convivência.
Mas se a construção da democracia depende fundamentalmente das emoções, como mudá-las então?
Podemos mudar as emoções apenas através da nossa própria reflexão. Mas temos que acima de tudo querer fazer a reflexão e para querer faze-la, tenho que antes de tudo querer aceitar o outro
Quanto à liberdade, Maturana tem a posição de que as idéias não devem ser perseguidas, só as ações. No caso de um crime, o condenado deve ser aceito como um legítimo outro em que só sua ação é punida e não seu ser.
Em sua visão, não é o medo do castigo que impede o crime. Numa vida social, o crime simplesmente não aparece. O crime surge depois que a convivência social já se rompeu.
Não só o crime mas a maior parte das enfermidades humanas surgem a partir da negação do amor. Adoecemos se nos sentimos rejeitados, se nos negam ou não nos querem, se nos sentimos injustiçados.
Como a ética pertence ao domínio do amor, as preocupações éticas nunca vão além do domínio social em que surgem e tem formas diferentes em diferentes culturas. Por isso, argumentos racionais sobre ética só convencem aos convencidos. O comportamento ético é emocional e é a partir do amor que o outro tem presença.
Se nos baseamos em ideologias para definir conceitos éticos, nunca poderemos entrar em acordo com todos os seres humanos. Mas se partirmos do social, como Maturana o define, poderemos encontrar fundamentos éticos que servirão a toda a humanidade.
As emoções são o fundamento de nossos afazeres, e o que nos cabe é estarmos atentos a elas para que possamos agir responsavelmente. Estarmos conscientes das conseqüências de nossos atos e decidindo se as queremos ou não. A responsabilidade não pertence ao domínio da razão, tendo a ver com a compreensão dos nossos próprios desejos e surgindo na reflexão sobre estes desejos. A liberdade surge de nossa responsabilidade sobre nossos atos.
A prática
A posição de Maturana é sem dúvida um paradoxo na medida em que também é ideológica. Entretanto o que chama atenção é a novidade da inclusão e da legitimação do diferente em oposição à dialética tradicional.
Voltando assim à proposta inicial de pensar a prática à luz dos conceitos de Maturana, partirei de uma visão de ética como algo definitivamente ligado à emoção e à escolha pessoal de “visão de mundo”. Este ponto por si só, já nos esclarece o porque da dificuldade de encontrarmos respostas definitivas e compreensíveis por qualquer um nas atitudes que tomamos por mais que para nós estas estejam fundamentadas totalmente nos mais nobres princípios éticos.
A título de reflexão, descrevo três de algumas situações concretas com as quais me deparei durante minha prática profissional .
Situação I:
Qual seria sua atitude quando, ao atender um cliente de 18 anos, que logo no início de sua primeira consulta lhe pergunta se tudo o que ele lhe diria ficaria entre vocês e durante os atendimentos você percebe o quanto ele esta se envolvendo com drogas e o quanto sua estrutura familiar tem uma forte participação nesta situação? Conta para família que lhe pressiona a todo momento querendo informações sobre o filho ou cumpre o acordo inicial sem o qual o cliente não teria nem sequer iniciado o atendimento? E se ele abandona a terapia em um momento difícil e você não consegue mais nenhum contato com ele? Tenta um contato com a família para alertá-la como um todo?
Situação II:
No caso de um atendimento de casal em que uma das partes vem sozinha em uma sessão e fala ao terapeuta de uma relação extraconjugal da qual o parceiro nem suspeita. O que faz o terapeuta? Prossegue os atendimentos como se não soubesse de nada? Exige que se abra o fato na relação do casal para que a terapia possa prosseguir? Evita atendimentos individuais paralelos para não correr riscos?
Situação III:
Nos casos de segredos familiares como famílias interraciais, com pais ou filhos com doenças crônicas ou contagiosas, com filhos adotivos, com pais ou filhos homossexuais, pais ou filhos presidiários, com pessoas drogadictas, etc.. Como trabalhar com todos presentes e parte do grupo disposto a abrir o segredo e parte não?
Onde e o que fazer , nestes momentos, com o saber do terapeuta? O saber técnico, o saber factual e o saber pessoal?
São situações que muitas vezes exigem um posicionamento imediato do terapeuta não lhe permitindo tempo de reflexão ou discussão com outros para tomada de decisão. Nestes momentos, são os princípios éticos do terapeuta que, no meu ver, deverão prioritariamente servir como norteadores de sua ação. Tomando-se o modelo autopoiético de Maturana, é a estrutura do terapeuta que possibilitará uma ou outra resposta. Estrutura esta que encontra-se inserida em um sistema maior que inclui a família em atendimento, no aqui e agora, com todas as suas limitações e possibilidades próprias. Esta resposta será a alternativa possível a uma perturbação percebida pelo sistema que se constitui como a pessoa do terapeuta estando nela incluídos seus saberes assim como suas emoções no momento em que esta perturbação se dá.
A influencia das emoções no leque de possibilidades de ações como respostas no diálogo de interações de ações, nos esclarece também o porque escolho determinada resposta em um momento e em outro, penso e reflito que poderia ter respondido de maneira diferente. Obviamente isto acontece porque mudou a emoção, mudou a possibilidade de ação.
Cada situação traz consigo particularidades impossíveis de serem repetidas ou retornadas. Apenas nelas podemos agir e, no meu entender, agimos verdadeiramente da melhor maneira possível. Tudo o que pode ser repensado e discutido a posteriori servirá somente como possibilidade de redefinição estrutural presente e/ou futura.
Em nossas alternativas devem estar incluídas também as determinações do código de ética profissional e das leis normativas do país e da cultura onde nos encontramos.
Por esta razão, faço agora alguns recortes da exposição de motivos do Código de Ética Profissional dos psicólogos que acredito estarem diretamente relacionados às minhas inquietações.
“É importante lembrar que o agir ético vai além do pensar bem e honestamente, como uma ressonância de um mundo individual e pessoal, mas exige, ao mesmo tempo, que a consciência, que “é uma síntese ativa em perpétua realização”, se manifeste de modo explícito através de ações claras e visíveis.” (CFP, 2000, p.7)
“Assim, ao mesmo tempo em que um Código de normas explícitas se torna necessário, é bom lembrar que a moralidade se concebe como atitude, qualidade e valores e que a ética não pode proporcionar soluções pré-fabricadas, sem que haja um trabalho interno de cada indivíduo que se propõe agir eticamente. “ A letra mata, é o espirito que dá vida”. (CFP, 2000, p.
Uma análise ética de qualquer situação terá sempre diferentes possibilidades. Dependerá sempre do domínio ideológico que cada um estará partindo. Para proteger a dimensão pública cria-se então o código de ética social ou profissional. Código este que varia de país para país, de tempos em tempos.
Anteriormente a sociedade normatizava as questões. Hoje, cada vez mais o indivíduo o faz. É exatamente esta transformação que nos torna mais e mais responsáveis pela qualidade de nossas ações. Nos obriga a pensar e repensar a ética como um convite a reflexão sobre nossas ações.
Como norteadores especificamente úteis às situações de atendimento terapêutico que trago anteriormente selecionei mais alguns artigos de nosso Código de Ética Profissional:
“III – O Psicólogo, em seu trabalho, procurará sempre desenvolver o sentido de sua responsabilidade profissional através de um constante desenvolvimento pessoal, científico, técnico e ético.” (CFP, 2000, p. 9)
Estar sempre preocupado em cuidar-se e preparar-se auxilia a arriscar ações com maior segurança e maior adequação.
“Art. 1o. – São deveres fundamentais do psicólogo:
a) assumir responsabilidade somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal e tecnicamente;
…
“d) sugerir serviços de outros profissionais, sempre que se impuser a necessidade de atendimento e este, por motivos justificáveis, não puder ser continuado por quem o assumiu inicialmente;
“e) fornecer ao seu substituto, quando solicitado, as informações necessárias à evolução do trabalho;” (CFP, 2000, p.10)
Existem situações de atendimento nas quais não podemos, sabemos ou queremos prosseguir. São situações extremamente difíceis já que nos dão a sensação de fracasso e nos constrangem à exposição. Entretanto nós terapeutas, como seres humanos que somos, temos também nossas dificuldades superáveis sim mas, por vezes não no espaço de tempo necessário a demanda do cliente. Cabe a nós a atitude ética de encaminhar o caso à profissional de nossa confiança.
Existem também situações em que um acompanhamento paralelo pode trazer muito benefício à família ou a seus membros. Situações nas quais este atendimento é indispensável ou situações em que seria desejável. Precisamos estar atentos também a estes casos.
“f) zelar para que o exercício profissional seja efetuado com a máxima dignidade, recusando e denunciando situações em que o indivíduo esteja correndo risco ou o exercício profissional esteja sendo vilipendiado;” (CFP, 2000, p. 10)
“Art. 3o. – São deveres do psicólogo nas suas relações com a pessoa atendida:
…
b) transmitir a quem de direito somente informações que sirvam de subsídios às decisões que envolvam a pessoa atendida;” (CFP, 2000, p. 11)
“Do Sigilo Profissional
…
Art. 26 – O sigilo profissional protegerá o menor impúbere ou interdito, devendo ser comunicado aos responsáveis o estritamente essencial para promover medidas em seu benefício.” (CFP, 2000, p. 16)
Nestes dois artigos encontramos respaldo para o caso do adolescente que se envolve com drogas. Respaldo normativo. Mas será que nos conforta já que como condição prévia ao atendimento do cliente se fez necessário um acordo explícito de sigilo? O que sempre me parece muito importante é a clareza do contrato que fazemos. Quando tudo corre sem intercorrencia , isto não se evidencia. Quando algo “dá errado” é que nos cobramos o quanto poderíamos/ deveríamos ter explicitado o que para nós seria óbvio…
Do Sigilo Profissional
Art. 21 – O sigilo protegerá o atendido em tudo aquilo que o Psicólogo ouve, vê ou de que tem conhecimento como decorrência do exercício da atividade profissional
…
“Art. 23
2o. – O Psicólogo, quando solicitado pelo examinando, está obrigado a fornecer a este as informações que foram encaminhadas ao solicitante e a orienta-lo em função dos resultados obtidos.”. (CFP, 2000, p. 15)
Estes artigos nos obrigam à transparência com os clientes e ao extremo cuidado com a forma das comunicações orais ou escritas que utilizarmos sempre que nos sejam solicitadas.
“Art. 27 – A quebra do sigilo só será admissível, quando se tratar de fato delituoso e a gravidade de suas conseqüências para o próprio atendido ou para terceiros puder criar para o Psicólogo imperativo de consciência de denunciar o fato.” (CFP, 2000, p. 16)
Neste artigos encontramos um posicionamento bastante subjetivo para a tomada de decisão do profissional. Aqui nossos valores morais serão os grandes norteadores da escolhas de procedimentos. Serão eles que nos dirão como lidaremos com determinados segredos, como nos casos das situações exemplo.
Este é um dos momentos em que só a habilidade do terapeuta na escuta de diferentes narrativas permite a criação de nova linguagem, que a todos inclua, para cada situação específica. Linguagem que não tenda a repetir o velho, o conhecido, o preestabelecido. Que possa ser diferente da língua “materna”. Para tanto necessita o terapeuta despojar-se dos valores pessoais e se dirigir ao encontro do múltiplo e do diferente com o mesmo respeito que considera as antigas normas.
Em resposta as três difíceis situações que trago, creio que o mais fundamental é que o terapeuta assuma uma posição responsável, congruente com os preceitos éticos da categoria, da lei e sobretudo de seus valores pessoais em relação a cada situação que se apresenta. Estar confortável perante seu cliente é o mínimo necessário para que um terapeuta possa contribuir positivamente com a dissolução de problemas. Qualquer fato impeditivo ou restritivo à criatividade, à expressão ou ao fluir do terapeuta necessita ser atenciosamente cuidado e resolvido no menor espaço de tempo possível.
A maneira como o terapeuta encara pessoalmente a privacidade numa relação entre pais e filhos, a questão das drogas, da traição, dos segredos, da homossexualidade, da adoção, etc., isto é, os valores do terapeuta influirão sobremaneira em suas ações.
As ações que estiverem coerentes com o sistema (terapeuta-família) como um todo, serão mais construtivas do que as que não estiverem. As ações subsequentes à ação do terapeuta são muito pouco previsíveis. O que podemos prever com nossas ações está mais voltado a uma direção do que a uma ação predeterminada. E o objetivo do terapeuta , no meu entender, deve apenas se situar em busca de facilitar uma direção. Uma direção voltada ao crescimento, ao desenvolvimento, à autonomia, a uma maior responsabilidade, a uma postura ética perante o ser vivo e consequentemente ao universo.
Estar consciente de tudo isso é extremamente importante. Não nos “protege” de ações improdutivas mas nos traz a clareza e a certeza de nossa responsabilidade e da possibilidade de transformação, crescimento e aprendizagens pessoais em nossas condutas. Possibilidade essa que transforma nossa estrutura e nos renova a cada interação. Evidencia também o aprendizado cotidiano do terapeuta na relação com o cliente. Confirma e reafirma a enorme responsabilidade que abraçamos no momento em que optamos em sermos terapeutas. Nesta posição no mundo, mais que em muitas outras, nos “metemos” inevitavelmente em um caminho cheio de aventuras, emoções, riscos, cheiros e sabores. Nem sempre com final feliz mas sempre com a possibilidade de crescimento, aprendizagem e aperfeiçoamento.