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O comprometimento político-ideológico da psicologia e a formação do psicólogo

Walter Andrade Parreira (*)

*Trabalho apresentado no “I Encuentro Latinoamericano de Psicologia Humanista-Existencial”, em Medellín, Colômbia em setembro de 2006,

INTRODUÇÃO

O conhecimento é produzido socialmente, gerado por uma determinada sociedade, em um dado momento histórico, concretamente situado. [Mais...] Essa origem traz marca de um atravessamento ideológico, de um comprometimento político. Isso significa que o conhecimento estará a serviço da manutenção ou da transformação da sociedade e, numa estrutura de classes, a serviço, portanto, da dominação ou da libertação.

O presente trabalho pretende apontar para a importância de se refletir sobre o comprometimento ideológico-político da Psicologia, mais especificamente na área clínica. Procura detectar expressões desse comprometimento nas teorias e práticas psicoterápicas e na formação do psicólogo clínico.

Para tanto, repassa a historia da educação brasileira, área em que análise semelhante já foi realizada, e extrai da mesma um referencial que contribui para a pretendida reflexão.

O trabalho faz, também, uma análise da história da Psicologia em Minas Gerais – a partir do seu surgimento na área educacional – e da Psicologia Industrial, no sentido de encontrar subsídios para a mesma reflexão na área clínica.

A avaliação do comprometimento de classe da Psicologia tem como objetivo contribuir para a discussão, que se faz ao final, sobre a formação do psicólogo clínico.

(*) Universidade Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura) – Belo Horizonte, MG.

walterparreira@gmail.com

Capítulo I

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

I.1 – As políticas educacionais brasileiras e sua articulação com o contexto econômico

“… o processo capitalista de produção reproduz (…) a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho, perpetuando, assim, as condições de exploração do trabalhador. (…) A produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou como processo de reprodução, produz não só mercadoria, não só mais valia; produz e reproduz a relação capitalista; de um lado o capitalista e, do outro, o assalariado.”[1]

Toda sociedade precisa produzir e reproduzir as condições materiais de sua existência, ou seja, os meios de produção e a energia necessária para colocá-los em operação – a força de trabalho. De outro lado, precisa reproduzir as condições sob as quais se dá essa produção material da sua existência; reproduzir, em outras palavras, as relações sociais de produção (de exploração ou de cooperação). Para tanto, a sociedade dispõe de dois mecanismos: os Aparelhos Repressivos de Estado (ARE) e os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), conforme Althusser (1980: 61); ou a sociedade política e a sociedade civil, segundo Gramsci (1979: 10-11) – o uso da força, da coerção, e o uso da persuasão, do consenso.[2]

Na sociedade brasileira, até o Século XIX, os aparelhos ideológicos eram, principalmente, a família e a Igreja. Predominava no país o modelo agro-exportador na economia, que exigia um mínimo de qualificação e diversificação da força de trabalho. O esgotamento desse modelo e o início do processo de industrialização, nas primeiras décadas deste século, no entanto, trouxeram mudanças profundas no cenário econômico, político e social do país. Assistiu-se à crescente urbanização da sociedade brasileira, com o deslocamento de grandes massas do campo para a cidade. O trabalho na indústria nascente, que exigia a qualificação da mão-de-obra, e o novo ambiente cultural da cidade fomentaram a demanda social para a escola.[3] Ela era importante para os interesse da classe dominante, cujo discurso colocava o analfabetismo como o mal da sociedade, como responsável pela pobreza, pela desigualdade social. E atribuía à escola o papel de “redentora da humanidade” – ela iria “redimir o homem de seu duplo pecado histórico: a ignorância, miséria moral, e a opressão, miséria política.[4] À educação competia “transformar os súditos em cidadãos.”[5] E a escola era reivindicada, também, pelas classes populares, que viam nela a possibilidade de ascensão social. Na década de 20 desencadeou-se assim, “o entusiasmo pela educação” e a luta pelo ensino público, universal e gratuito.[6]

A escola que surgiu nessa época no Brasil se caracterizava por uma ênfase na transmissão de conhecimentos, por uma metodologia de ensino que utilizava aulas expositivas e interrogativas ou argüição oral. Seu sistema de avaliação era rigoroso, com provas escritas (dissertação) e orais, observação individual por parte do professor, coerção e castigo. A relação professor-aluno era autoritária e vertical, sendo o professor guia e modelo (Caldeira, Lima, s.d.: 1). Era a chamada Escola Tradicional, cujas práticas pedagógicas se assentavam sobre a concepção Humanista Tradicional de Filosofia da Educação, marcada pela visão essencialista do homem (Saviani, 1980:17). A partir de então, a escola passou a ocupar a função, na nova sociedade brasileira, de contribuir para a reprodução das estruturas de poder, de estrutura de classes.

A escola realiza essa função, segundo Establet, na medida em que “contribui para a formação da força de trabalho e para a inculcação da ideologia burguesa”.[7] Ela opera no sentido de uma repartição dos indivíduos nas duas classes antagônicas da sociedade, concorrendo para divisão social do trabalho, ou seja, para a divisão entre trabalhadores manuais e intelectuais. E, ao qualificar os indivíduos para o trabalho, inculca-lhes, ao mesmo tempo, a ideologia que os leva a aceitar sua condição de classe, a se submeter à dominação.

Mas o processo histórico do país estava em marcha, e a industrialização – o modelo da substituição de importações – veio trazer uma complexidade para as relações sociais até então desconhecida para a sociedade brasileira, com o crescimento do proletariado, o surgimento da pequena burguesia e dos empresários. A escola, apresentada pela classe dominante como meio de ascensão social, de acabar com a miséria, de redimir o homem, não cumpriu o prometido. A justificativa foi, então, a de que o fracasso não se devia à escola como tal, mas ao tipo de escola que existia – era necessário, portanto, reformá-la. Essa transformação era importante, também, porque a Escola Tradicional, com suas características de valorização do conhecimento, de cobrança e avaliação dos conteúdos, vinha sendo fator de formação de uma consciência crítica, contribuindo para a crescente participação política das massas.[8] A escola, implementada para atender aos interesses dos dominantes, passava a atender aos dominados. É a dialética presente nos aparelhos ideológicos, a contradição no seio do processo educativo.

Surgiu, assim, a Escola Nova, com suas características de esvaziamento dos conteúdos, de um planejamento que incluía a participação do aluno, de uma metodologia que valorizava o jogo e a livre iniciativa. Ela se utilizava da auto-avaliação, e a relação professor-aluno era igualitária e horizontal. A concepção Humanista Moderna de Filosofia da Educação fundamentava essa prática pedagógica, assentada em uma visão existencialista do homem. A ênfase se afastou da aquisição de conhecimentos para o desenvolvimento da personalidade do aluno, de suas características psicológicas. Houve um deslocamento do sentido político-social do modelo anterior para a preocupação com os problemas técnico-pedagógicos, internos à escola. O discurso dominante passou a destacar a importância da “qualidade do ensino”; e o “otimismo pedagógico” da Escola Nova veio substituir o “entusiasmo pela educação” da Escola Tradicional.[9]

Quando também a Escola Nova fracassou em sua missão de promover a ascensão social, a ideologia do liberalismo veio legitimar tal fracasso. Com o postulado de que a sociedade oferece oportunidades iguais para todos, mas a natureza dota diferenciadamente os indivíduos, ela permitia atribuir o insucesso escolar às deficiências intelectuais dos alunos (Cunha, 1978:55). Assim, a alocação da maioria como trabalhadores manuais e de uns poucos como trabalhadores intelectuais devia–se ao “fato” de que esses últimos eram bem-dotados pela natureza e os outros não o eram. As diferenças individuais eram, assim, responsáveis pela divisão social do trabalho.

O modelo da substituição de importações perdurou de 1930 até os primeiros anos da década de 60. A industrialização não era mais induzida pelo estrangulamento do setor externo, como quando surgiu. “Ela não tinha, então, apenas a função de substituir as importações, mas já alcançava o nível de um processo auto-propulsor.”[10] Abriram-se as portas ao capital estrangeiro e chegaram as empresas multinacionais ao país – e, com elas, o modelo da internacionalização do mercado. A opção desenvolvimentista dirigiu a economia brasileira para a produção de bens de alto custo, voltada para a camada mais abastada da população e para a exportação.

O discurso da classe dominante passou a ser, naquele momento, o de que era preciso aumentar a produtividade, “fazer crescer o bolo (que, então, não era suficiente para todos) para depois reparti-lo”. A ideologia era a da escassez de bens, de produtos, situação que demandava, pois, um esforço de toda a sociedade para o incremento da produção. A escola foi atrelada a esse projeto, passando a ser entendida como um fator de crescimento econômico. Sucedendo a Escola Nova, surgiu a Tendência Tecnicista. O planejamento educativo, nessa perspectiva, foi entregue a técnicos; a metodologia utilizava a tecnologia de ensino, a instrução programada, os módulos instrucionais. A avaliação era feita em termos de provas objetivas, múltipla escolha e comportamentos observáveis. A relação professor-aluno era impessoal, o primeiro sendo um executor e o aluno um recurso humano em potencial. Tratava-se de uma visão utilitarista e pragmática da educação, em que se privilegiava o ensino técnico, em detrimento da transmissão de conhecimentos e da formação do homem. “O objetivo central da educação é garantir o crescimento da taxa de produtividade (…) e fica evidente que o projeto educacional tem a direção de possibilitar o máximo rendimento dos setores produtivos, beneficiando diretamente as empresas.”[11] A Tendência Tecnicista fundamentava-se na concepção Analítica de Filosofia de Educação, estando em estreita relação com o neo-positivismo.

A história da educação brasileira revela, também, a presença de uma quarta tendência: a Sócio-Política, que se manifesta de forma não-predominante em todos os períodos citados. Sua fundamentação é a concepção Dialética de Filosofia de Educação: a educação deve ser polivalente e é um ato político, cumprindo uma função social. “Interessa-lhe o homem concreto, isto é, o homem como conjunto das relações sociais.”[12] A aprendizagem ocorre através do trabalho e seu objetivo é desenvolver uma consciência política para uma práxis criadora. A avaliação é coletiva e tem o sentido de um trabalho cooperativo para reapropriação crítica do saber. O planejamento é feito por co-gestão, e professor e aluno vivem juntos o processo de produção do saber, numa relação pessoal e concreta. Sua fundamentação é o materialismo histórico e dialético (Caldeira, Lima, s.d.: 2-3).[13]

Segundo Saviani (1981: 11), todas as quatro tendências – a Escola Tradicional, a Escola Nova, a Tendência Tecnicista e a Perspectiva Sócio-Política – encontram-se presentes hoje na educação brasileira, sendo, os períodos referidos, momentos de predomínio de uma ou de outra. Na verdade, “(…) a sucessão de etapas (na política educativa) e a correspondente emergência de concepções (de Filosofia de Educação) constituem mecanismos de recomposição acionados pela classe dominante para garantia de sua hegemonia.”[14]

I.2 Níveis de análise das práticas pedagógicas

“(…) a estrutura econômica da sociedade constitui, em cada caso, o fundamento real a partir do qual é preciso explicar, em última instância, toda a sobre-estrutura das instituições jurídicas e políticas, assim como os tipos de representação religiosa, filosófica e de outra natureza, de cada período histórico.”[15]

Essa afirmativa, uma das maiores contribuições do materialismo histórico e dialético, ilumina a análise da história da educação brasileira. A infra-estrutura, que é a base econômica da sociedade, o momento de produção de suas condições materiais de existência, é que determina, em última instância, a super-estrutura ideológico-jurídico-política, que tem uma autonomia apenas relativa. Na perspectiva histórico-dialética, a forma como os homens se organizam para produzir os bens necessários à sua vida determinará, em grande medida, a maneira como eles pensam, os seus costumes, as suas crenças, a sua cultura, etc.

A reflexão desenvolvida até aqui permite extrair um modelo ou um referencial para a análise das práticas pedagógicas. Ele consta de três níveis. O primeiro, o mais simples, uma vez que se dá diretamente pela observação, é o nível da prática. Refere-se ao “como” o professor age, que instrumentos, recursos , técnicas e metodologia utiliza, como ele avalia, como se relaciona com o aluno, etc. A relação imediata de um observador com esse fazer do professor é suficiente para descrever esse primeiro nível. Na historia da educação brasileira, ele é caracterizado pelas técnicas e práticas – já comentadas – de cada uma das escolas ou tendências.

Há, no entanto, um segundo nível subjacente ao primeiro e que lhe dá fundamento: a concepção de Filosofia de Educação. A metodologia adotada por uma escola, a relação professor-aluno, os recursos didáticos, a forma de avaliação, os conteúdos, etc, são a expressão de uma concepção particular de homem e de mundo, seja explicita ou não, tenha ou não consciência dela o educador. A presente reflexão apresentou a análise nesse segundo nível quando se referiu às concepções Humanista Tradicional, Humanista Moderna, Analítica e Dialética da Educação. Elas são a fundamentação, respectivamente, da Escola Tradicional, da Escola Nova, da Tendência Tecnicista e da Perspectiva Sócio-Política. Esse segundo nível não se dá à observação, não pode ser apreendido apenas pelos sentidos, como o primeiro; demanda um conhecimento teórico, um aprofundamento de análise que ultrapassa a leitura empírica.

Numa perspectiva idealista ou a-histórica, essa análise das práticas pedagógicas poderia parar aqui. O segundo nível seria suficiente para fundamentá-la ou explicá-la – entender-se-iam as concepções como surgindo do pensar e refletir, da capacidade de elaboração e abstração humanas. Mas uma perspectiva histórico-dialética precisa ir além. Como já foi dito, não é o mundo das idéias que “explica” a realidade ou o concreto, não é o pensamento que forja o real; o real, ou o concreto, é a fonte, a base do pensamento. Dessa forma, o pensar tem um chão, uma ancoragem, um assentamento: a maneira como os homens produzem as condições de sua existência. A super-estrutura ideológica é determinada, em grande medida, pela infra-estrutura econômica. Assim, as concepções de homem e de mundo que embasam as ações dos seres humanos não nascem simplesmente das cabeças dos mesmos, mas devem sua origem à instância da produção econômica e material da vida. Ou seja, elas são tributárias do contexto histórico – este é o terceiro nível a partir do qual foi realizada a análise das práticas educativas neste trabalho. Este é um nível mais oculto, mais encoberto, menos desvelado ainda que o anterior. Se uma leitura empírica não pode revelar sequer a existência do segundo nível e, portanto, não alcança as concepções de homem e de mundo, muito mais distante está, então, de iluminar o terceiro – na realidade, o solo de surgimento dos dois primeiros.

De acordo com Kosik (1976:9-18), o que se oferece aos sentidos é o aparente, é o mundo da pseudoconcreticidade, e, para superá-lo e atingir o concreto, é necessária a mediação por um conhecimento, por uma teoria. “O conhecimento da realidade exige que diferenciemos o modo como uma realidade aparece e o modo como é concretamente produzida. (…) O método histórico-dialético deve partir do que é mais abstrato, mais simples ou mais imediato (o que se oferece à observação), percorrer o processo contraditório de sua constituição e atingir o concreto como um sistema de mediações e de relações cada vez mais complexas e que nunca estão dadas à observação.”[16]

Sintetizando os três níveis:

1º) Práticas educativas (teorias e técnicas pedagógicas)

2º) Filosofia da Educação (concepções de homem e de mundo)

3º) Contexto Histórico (modelo econômico)

I- 3 A ideologia nos discursos dominantes

“A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”.[17] [18]

Essa definição permite a análise dos discursos da classe dominante referidos na descrição das etapas das políticas educativas. Assim, o primeiro discurso apresenta a pobreza e a miséria como decorrentes do analfabetismo, caracterizando uma deformação ou uma inversão própria da ideologia, eis que ele distorce a realidade. Não é o analfabetismo que gera a pobreza, mas a pobreza, sim, que é o maior determinante do analfabetismo. A divisão de classes, a propriedade privada dos meios de produção, a condição de exploração a que é submetida a classe trabalhadora, é que impedem o seu acesso à cultura. Mal têm pernas para andar, as crianças da classe dominada já partem para trabalhar (quando não para esmolar ou roubar), obrigadas que são a contribuir para o sustento da família. Aquele era, portanto, um discurso ideológico, ao estabelecer uma explicação fantástica para a pobreza, no interesse do ocultamento da realidade e com o objetivo, também, de que a classe dominada valorizasse a escola, então importante para os interesses dominantes. Ao fazê-lo, a classe dominante garante a sua hegemonia (Gramsci, 1979:11), na medida em que os seus interesses tornam-se, também, os interesses da classe dominada, e em que a sua ideologia se estende ao todo social, ou seja, em que ela obtém o consenso.[19] As idéias da classe dominante devem transformar-se em idéias da sociedade como um todo, de tal forma que os indivíduos da classe dominada se reconheçam nelas. Dessa forma, a classe que domina no plano material (econômico, político, social) domina, também, no plano das idéias.

Os dois outros discursos também revelam uma explicação fantástica das relações dos homens com suas condições de existência: a deficiência intelectual como responsável pela não ascensão social e a “escassez” de bens determinando a carência. A “deficiência” intelectual é, no caso, apenas uma máscara, um encobrimento: na realidade, os instrumentos ou testes psicológicos utilizados que a “revelaram (…) mostraram-se, historicamente, extremamente eficientes para detectar dificuldades sócio-econômicas nos indivíduos a eles submetidos e apresentá-las como dificuldades psicológicas naturais.”[20] (grifo nosso). O discurso da escassez de bens, por seu lado, esconde o fato de que o problema da sociedade brasileira, ou da sociedade capitalista de maneira geral, era – como é, na realidade, o da repartição desigual da riqueza produzida, e não o da própria produção. É óbvio que o desenvolvimento tecnológico, então já alcançado, permitiria que se produzissem alimentos, remédios, vestuário, habitação, aparelhos elétricos e eletrônicos, automóveis, etc, de modo a atender a todos (o que, para ser produzido, abriria inclusive a possibilidade de trabalho para todos, o pleno emprego) Não é, porém, do interesse da classe dominante – e do capitalismo internacional – que haja o pleno emprego. É necessário o “exército industrial de reserva” para controlar o custo da mão-de-obra, assim como não é de seu interesse que essa mesma mão-de-obra adquira condições de acesso aos bens referidos. Em outras palavras, o estágio de desenvolvimento das forças produtivas possibilita a produção de bens para todos, mas as relações sociais de produção – de exploração – não permitem a sua aquisição e utilização por todos (o que configura a não correspondência e a contradição entre as duas instâncias da infra-estrutura).[21] Dessa forma, ambos os discursos promovem o ocultamento da contradição fundamental da sociedade capitalista – a divisão de classes –, responsável, na realidade, pela repartição desigual dos indivíduos pelos lugares sociais e, portanto, pelo fato de que a maioria vive na miséria e uns poucos na opulência.

Nesse processo de ocultação, um papel especial é desempenhado por uma determinada camada social: a dos intelectuais. Eles são os “funcionários da super-estrutura” (Gramsci,1979:10), encarregados de divulgar uma visão de mundo que promova a coesão social, a aceitação e o consenso a respeito da estrutura da sociedade – eles devem cimentar a dominação. Eles são incumbidos de formar as consciências, os valores culturais, éticos e morais. Devem construir os referenciais a partir dos quais as pessoas fazem sua leitura sobre o mundo e conduzem suas ações sobre o mesmo. E, na medida em que veiculam uma visão de mundo fantástica, mistificadora e que oculta a realidade, são considerados “intelectuais orgânicos” da classe dominante, pois estão vinculados a ela e atendem aos seus interesses.[22]

Capitulo II

O COMPROMETIMENTO DE CLASSE DA PSICOLOGIA

II.1 – A Psicologia Educacional – A história da Psicologia em Minas Gerais

A ideologia procura ocultar as contradições da sociedade, encobrir sua fragmentação, sua divisão de classes, pintando um quadro harmonioso da mesma. A história das profissões em Minas Gerais testemunha a Psicologia desempenhando tal função: essa prática social surge nas décadas de 20 e 30 deste século, na área educacional, entrelaçando-se com a própria história da educação brasileira (Campos, 1980:4).

O contexto econômico era o inicio da industrialização do Estado, que demandava o êxodo do campo para a cidade, a fim de formar o proletariado urbano. Um dos motivos para essa migração – já comentado – era a busca de ascensão social via escolarização, prometida pela classe dominante e, obviamente, não concretizada, não passando de um artifício de sedução. As crianças vindas do campo não conheciam o universo cultural e simbólico da cidade e, portanto, não progrediam na escola, como progrediam as crianças da burguesia. Na verdade, não deveriam mesmo fazê-lo, uma vez que não havia – como não há – espaço para todos nos pontos altos da pirâmide que representa os lugares sociais. À burguesia industrial interessava apenas a alfabetização daquelas crianças e não a sua continuidade na escola, uma vez que seu objetivo era a qualificação mínima necessária para o trabalho nas fábricas. Além disso, um operário mais qualificado e com escolarização em níveis mais elevados é mais caro e também mais capaz de uma consciência critica.

Mas era preciso legitimar aquele processo, torná-lo aceito por todos. Como no processo de surgimento da escola, estavam criadas as condições para o aparecimento de uma nova prática social: desta feita, a Psicologia. Ela foi chamada a aferir a condição intelectual daquelas crianças que fracassavam na escola, e o uso de testes e técnicas de avaliação marca o seu nascimento em Minas. Seus instrumentos diagnosticaram, então, uma “excepcionalidade” – ou uma baixa capacidade intelectual – das crianças. Essa “explicação” era o bastante, era o suficiente. Estava legitimada a falta de progresso na escola, a não–ascensão social de todo um contingente populacional que acreditou no poder da escola de proporcioná-la (poder que ela efetivamente não tem, uma vez que a determinação dos lugares sociais é dada de berço, ou seja, pela origem de classe dos indivíduos – e as exceções à regra só a confirmam).

“No entanto, a escola e os testes de desenvolvimento mental são marcados pelo etnocentrismo cultural da classe que os produz, vindo a medir exatamente o grau de apropriação, pelos indivíduos, da ideologia dominante.” [23] As crianças da classe dominada, egressas do campo, não se reconheciam na linguagem e no universo simbólico daquela escola e daqueles testes, construídos para as crianças da cidade, da burguesia. Era a ideologia do ser abstrato e a-histórico – da criança universal – presente na Psicologia e levando-a a não considerar a criança particular, o ser concreto, marcada pelas diferenças de classe.

Dessa forma, a exclusão do progresso na escola de todo um contingente de crianças, na realidade uma expressão da luta de classes naquele momento da sociedade brasileira, foi legitimada em termos da “excepcionalidade” das mesmas. Ao utilizar-se de testes e técnicas que aferiam essa condição, a Psicologia Educacional emprestou um caráter “cientifico” ao pressuposto da ideologia liberal de que a sociedade é democrática e cria oportunidade iguais para todos, mas a natureza dota diferenciadamente os indivíduos (Campos, 1980:61). De acordo com ela, todos têm a liberdade individual de se colocar onde quiserem, mas, como não são igualmente dotados pela natureza, alguns, ou a maioria, ocuparão as funções do “fazer” e os outros as funções de “planejar” e de “controlar”. A ideologia procura fazer crer, portanto, que há lugar para todos no topo da pirâmide social, e quem não o alcança traz algum tipo de “deficiência”. Ela cumpre, assim, a função de legitimar a sociedade como democrática, justa e igualitária. Pode-se perceber aqui o papel social que o psicólogo foi chamado a desempenhar: legitimar as desigualdades sociais, transformando-as em diferenças individuais e atribuindo-as à natureza. A contradição social – de classe – é deslocada para o interior do individuo, para a esfera psíquica, e reduzida a deficiências intelectuais, a problemas psicológicos. E a Psicologia é reduzida a ideologia.

A história da Psicologia em Minas terá seqüência com o uso dos testes de interesse e aptidões nas atividades de seleção e orientação profissional, na década de 50. Estes estarão submetidos à mesma ideologia: “A própria separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual é reproduzida pelos testes: as atividades manuais e as ocupações burocráticas repetitivas serão aconselhadas aos menos dotados, enquanto que para os melhores dotados se reservam as funções intelectuais e os postos de direção.”[24] [25]

II.2 A Psicologia Industrial – O nascimento da prática social da Psicologia

Um próximo passo importante na história da Psicologia em Minas foi a criação dos seus cursos de graduação, nos anos 60 e 70. Uma parte importante dos currículos desses cursos era dedicada à realização de trabalhos e pesquisas em laboratórios, utilizando pequenos animais, a partir do referencial da metodologia experimental. O Behaviorismo era a corrente teórica que melhor servia aos interesses das indústrias e, de maneira geral, à classe dominante, com sua ênfase no controle e manipulação do comportamento humano. Seu pressuposto de que os comportamentos dos animais inferiores e dos seres humanos são regidos pelas mesmas leis permiti-lhe aplicar diretamente ao homem os resultados de suas pesquisas com os animais. Assim, por exemplo, pesquisas nos laboratórios de Psicologia Experimental concluíam que um rato albino pressiona um número infinitamente maior de vezes uma barra – ou seja, trabalha muito mais – numa câmara de condicionamento, quando recebe um reforço após um número sempre variável de respostas, do que se o recebesse após um número fixo delas. São os chamados esquemas de reforçamento. Do laboratório para a indústria foi apenas um passo. O pagamento por tarefa, ou por peça produzida, foi a transposição direta dos resultados dessas pesquisas para sua utilização no controle do comportamento nas fábricas. O esquema é apresentado como forma de o trabalhador ganhar mais, pois, como o pagamento é por peça produzida, quanto mais ele produz, mais recebe. Só que, além de o valor por peça ter sido sempre o mais baixo possível – o que força o operário a um ritmo de trabalho insustentável, e que cedo o exaure –, a razão número de peças/pagamento é sempre aumentada. É óbvio que o resultado desse processo é um fantástico aumento de produtividade, somando-se todos os operários de uma indústria, só que ao preço de uma igualmente fantástica depauperação da força de trabalho.

Outro conceito produzido nos laboratórios de Psicologia Experimental, em pesquisas com ratos albinos, pombos, macacos, etc, foi o de condicionamento ou modelagem através de reforçamento positivo, de imediata e larga aplicação nas relações capital–trabalho e na propaganda e publicidade. Trata-se, em síntese, de conseguir que uma pessoa faça aquilo que se deseja que ela faça, mas de tal forma que ela julgue estar fazendo o que ela própria quer. É um controle sutil e eficaz do comportamento, pois além de funcionar, ainda oculta o agente controlador. Mas que isso, oculta o próprio processo, uma vez que o sujeito não o percebe e acredita, então, na sua liberdade de escolha. A publicidade, peça indispensável para a sociedade de consumo – e, atualmente, para os governos –, com sua tarefa de manipular opiniões, preferências, decisões, votos, ou seja, de controlar o comportamento, encontra nas pesquisas da Análise Experimental do Comportamento toda uma fonte de inspiração.

A questão do controle do comportamento está presente desde o próprio surgimento da Psicologia, como prática social. Conquanto a Psicologia já existisse, rudimentarmente, desde a Filosofia clássica grega, sua prática, como área especifica do conhecimento, veio a florescer somente após a segunda revolução industrial, nas sociedades capitalistas da Europa do final do século XIX (Cataldo, s.d.:1). A divisão do trabalho, em sua etapa de superar a manufatura através da introdução da máquina, parcela, fraciona o processo de trabalho, o que traz inúmeras vantagens para os patrões. Uma tarefa simples é mais rápida de se executar e de se aprender, torna mais fácil a substituição do operário, barateia a mão-de-obra, fraciona e divide o próprio trabalhador, desorganiza e fragiliza a força de trabalho, fortalecendo, assim, a política de dominação. É nesse contexto de avanço do modo capitalista de produção que nasce a Psicologia Cientifica, a Psicologia Experimental, com o laboratório de Wilhem Wundt na Universidade de Leipzig, Alemanha, em 1879. Seu objetivo era exatamente desenvolver instrumentos precisos de medição, predição e controle das possibilidades e limites da percepção humana. Da mesma forma que, como foi visto nos casos de surgimento da escola e da Psicologia em Minas Gerias , a Psicologia e suas técnicas só apareceram quando estavam assentadas as condições históricas para isso – no caso, a necessidade de controle sobre o comportamento humano no interesse do processo de industrialização.

“A Psicologia Industrial se interessa pelas condições sob as quais o trabalhador pode ser induzido melhor a cooperar no esquema de trabalho organizado pela Engenharia Industrial.”[26] O que ela tem em vista e procura solucionar são as dificuldades que o operário cria para a empresa, como o absenteísmo, o não-acompanhamento do ritmo de trabalho imposto, a indiferença, a negligência, o inconformismo, etc. Ou seja, ela se preocupa com o que pode ser interpretado como resistência do trabalhador ao modo capitalista de produção e procura quebrar essa resistência. Ela o faz, por exemplo, tratando psicologicamente as referidas dificuldades como “crises” ou “problemas” do operário, centrando-as no mesmo e deslocando o confronto entre capital e trabalho para o nível de um problema pessoal. Ela o faz ao elaborar conceitos, instrumentos e meios – o desenvolvimento de tecnologias e recursos humanos – que levam o operário a produzir mais e ao buscar formas de promover a adaptação do mesmo a um sistema de violenta e crescente exploração. Busca essa acomodação a condições muitas vezes degradantes de trabalho e se preocupa com as reações e resistências a essa situação e não com a degradação a que é submetido o trabalhador.[27]

O objetivo é a maior produtividade possível, com o menor custo, gerando o lucro máximo. “O lucro das empresas está baseado na alienação perpétua da condição humana. (…) a utilização da Psicologia (…) é a arte de aproveitar ao máximo os trabalhadores e a possibilidade de aliená-los.”[28] “Consciente ou inconscientemente, portanto, os psicólogos estão a serviço da alienação e fazem da Psicologia um instrumento de poder.”[29]

II.3 – A Psicologia Clínica – indícios do seu atravessamento ideológico

Nesta parte, o presente trabalho se limita a dar algumas indicações sobre o possível comprometimento de classe da Psicologia Clínica.

Em primeiro lugar, ela pode ser analisada com relação ao seu objeto, o qual apresenta uma dificuldade de definição que vai se traduzir em sérias conseqüências sociais. O que são os chamados distúrbios psicológicos, problemas psíquicos, desajustes de comportamentos? Apenas derivações semânticas da “doença mental”? Qual é o estatuto da doença mental? É notório que ela se confunde – ou pode ser confundida –, na sua apropriação pela classe dominante, com as “doenças sociais”. E, além do problema da definição, a Psicologia Clínica tem a enfrentar a questão da produção desses distúrbios, problemas, desajustes ou doença mental:

“(…) O adoecer psíquico está intimamente relacionado a doença social e à opressão e exploração.”[30] (…) A esse adoecer dá-se o nome de ‘ sociose’ – doença social que tem sua causa real no desemprego, na fome e na falta de moradia”.[31] (…) Se olharmos as estatísticas de causas de doenças e mortes em nosso país, vamos ver que essas doenças crescem junto com o processo de industrialização a partir de 1930. São as chamadas ‘doenças do desenvolvimento’, as doenças do aparelho cardiovascular, as doenças mentais, o câncer, a violência urbana e no trabalho.” [32]

E fechadas pela classe dominante, as portas para um trabalhar e um viver dignos, muitas vezes o individuo da classe dominada busca a “doença” como forma de sobreviver. É o que revela Sampaio: “… O operário ganha um salário pela sua ‘inscrição’ na categoria de doente na Previdência Social. A doença, que é objeto do saber médico, é a doença orgânica que irá fornecer paradigma para as chamadas doenças mentais (…) A doença social do nosso operário não tem estatuto de doença, não assegura cuidados e benefícios; para a libertação do desespero quotidiano do trabalho e da fome é preciso, única saída pressentida, adoecer com estatuto.”[33] (grifo nosso)

A reflexão sobre a Psicologia Clínica remete também, portanto, a considerar a Psiquiatria como igualmente envolvida, comprometida com o mesmo obscuro objeto das doenças mentais. O presente trabalho deixa clara a inter-relação das histórias da Educação e da Psicologia no Brasil; aponta, agora, para a importância de uma pesquisa mais ampla, que contemple também a história da Medicina, da Psiquiatria, da Assistência Social, numa perspectiva de apresentar a conexão entre elas e articulá-las com o terreno comum da sua produção, ou seja, a infra-estrutura do edifício social.

Pode-se dizer que, quando não busca explicitar as condições sócio-econômico-políticas que produzem a “doença” e, em decorrência, ao não trabalhar para superá-las, atuando apenas ao nível curativo, ou mesmo preventivo, a Psicologia, assim como as demais profissões da saúde, concorre para a sua perpetuação. E, dessa forma, opera no sentido de manter e reproduzir o seu próprio espaço de trabalho. A questão da doença, na sociedade capitalista, está vinculada a interesses de ordem econômica, ideológica e política; e, desde que as referidas profissões não questionam a produção da mesma, atuam de acordo com esses interesses.

Um segundo aspecto em que se pode analisar o comprometimento político da Psicologia Clínica refere-se à população que atende: é notório que a clientela dos consultórios de Psicoterapia e Psicanálise se situa na classe dominante ou muito próximo dela, e isso e mais do que curioso, é sintomático. E, como tal, demanda uma interpretação, uma reflexão, uma análise – tema interessante para uma futura pesquisa.

Pode-se também encontrar o comprometimento da Psicologia Clínica com a dominação, com o status quo, na própria prática da Psicoterapia e da Psicanálise, conquanto seja óbvio a dificuldade de se penetrar na intimidade dos consultórios para conhecer o que ali se passa. O depoimento de um abalizado profissional dessa área, no entanto, abre uma possibilidade para tal análise. David Cooper, comentando seu próprio processo analítico como paciente revela:

“Meu analista levava uma vida familiar burguesa rica, altamente controlada e eminentemente respeitável, enquanto eu, tendo renunciado a uma clínica lucrativa, embora até certo ponto esclarecedora e emocionalmente compensadora, em Harley Street , Londres, dormia no chão, em quartos compartilhados, em varias comunidades dessa cidade. Era evidente que o analista não conseguia aceitar a minha maneira de viver e mal conseguia disfarçar sua repugnância, porquanto ela constituía uma critica implícita à vida dele. Consequentemente, as suas interpretações exprimiam, por exemplo, a opinião evasiva de que o meu pênis estava sempre no lugar errado, na pessoa errada, no momento errado. (…) Na minha segunda análise, com um analista altamente politizado, as coisas foram inteiramente diferentes. “[34]

Um depoimento como esse coloca a Psicoterapia e a Psicanálise diante de questões fundamentais: o psicoterapeuta ou analista tem clareza do seu próprio comprometimento de classe, da origem de classe dos seus valores? Tem consciência do possível atravessamento ideológico da sua prática? Em que medida a teoria com que se identifica e, portanto, a técnica, suas intervenções e interpretações estão comprometidas politicamente? Ou ele considera que as teorias e técnicas psicoterápicas são neutras?

A Psicoterapia e a Psicanálise cuidam do homem, enquanto ser individual, e de seus problemas gerados principalmente a partir da instituição “família”. Consideram também o homem como ser social, conjunto das relações sociais, atravessado por instituições e aparelhos que compõem uma determinada formação social? As teorias consideram as implicações de classe na formação da personalidade?[35]

Esses questionamentos conduzem ao que é determinante para o posicionamento do psicólogo diante dos mesmos: a sua formação, discutida a seguir.

Capitulo III

A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO CLÍNICO

“Se podemos contar a história do psicólogo do ponto de vista da sua colaboração à reprodução da dominação de classe – e com enorme riqueza de exemplos –, é de se supor que também é possível reconstituir a história da Contra-Psicologia, com mais dificuldade, é certo, pela falta de registro do tipo de iniciativa que buscamos. É possível porque, como toda instituição que se estabelece sobre o terreno social da contradição de classe, também a prática do psicólogo será necessariamente atravessada por aquela contradição, que reaparecerá como realidade, ora negada, ora denunciada, em seu trabalho.”[36]

Em outras palavras, da mesma forma que uma concepção dialética sempre esteve presente em todos os períodos da história da Educação brasileira, ela esteve também sempre presente na história da Psicologia.

É a própria dialética que ilumina o fato de que a contradição é inerente a todas as manifestações da vida: ela está nos fenômenos da natureza, na arte, no pensamento, no conhecimento, nas práticas sociais, etc. (Politzer, s.d.: 70). E também, portanto, na Psicologia. Isso significa que, se de um lado a Psicologia tem servido à dominação, de outro traz todo um potencial crítico e libertador. É um desafio para os psicólogos trabalhar esse potencial e construir as condições para sua expressão e realização.

A formação do psicólogo é o lugar onde é possível começar a escrever essa nova história da Psicologia. Na linguagem e na perspectiva gramsciana, a ocupação dos lugares na sociedade civil por intelectuais que podem vir a ser “dirigentes” é condição para essa transformação:

“O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro – e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho eleva-se a técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não se chega a ‘dirigente’ (especialista mais político).”[37]

O presente trabalho traz dois pontos para serem considerados na discussão sobre a formação do psicólogo clínico: um, com referência à prática (os estágios acadêmicos) e, outro, à teoria. Com relação ao primeiro, trata-se de um aprender com a própria história da Psicologia (quem não aprende com a sua história está propenso a repeti-la): que é sempre possível estar fazendo o jogo da dominação sem o perceber. A introdução dos testes na avaliação das crianças que fracassaram na escola – relatada no capítulo I.2 – foi considerada um grande avanço da Psicologia, e os profissionais da época, sem dúvida, estavam certos de realizar um trabalho inovador e de importância para aqueles alunos. Mas a ideologia é uma presença sutil e trai qualquer intenção, por melhor que ela seja. A utilização daquele instrumental técnico, como foi visto, estava politicamente comprometida. Lidou-se com a criança, um ser universal e, portanto, abstrato, e não se considerou a criança concreta, da realidade brasileira, mineira, da classe dominada, egressa do campo, de um mundo diferente do mundo da cidade. Essa foi a condição para o uso político da Psicologia na legitimação da dominação de classe. Conhecer a realidade – o homem – com o qual se vai trabalhar, fazê-lo ou torná-lo “concreto”, é uma condição essencial para não se prestar novamente a esse uso. Dousi fala de como é esse trabalho com o homem concreto:

“A equipe de psicólogos não vai à cabana (bairro da periferia de Belo Horizonte onde foi realizado o referido trabalho) com o intuito de transformar a população, tendo como referencial sua própria condição sócio-econômica de classe média, mas, pelo contrário, seu objetivo e modo de proceder é de escuta, de estar junto, de descoberta dos valores, de conscientização a partir da realidade da Cabana. Dentro dessa constatação da realidade, vai descobrir junto caminhos, pistas, que levam a um maior conhecimento de si, de seus desejos e possibilidades.”[38]

As práticas ou os estágios durante o curso de Psicologia podem se orientar no sentido de formar, no aluno, esse respeito ao homem concreto, ou seja, ao homem entendido como “conjunto das relações sociais, síntese de múltiplas determinações”.[39] É preciso conhecê-lo, para não se impor a ele uma compreensão que lhe seja estranha, que não lhe pertença; para que não se incorra no velho erro de tentar encaixar a realidade numa teoria pré-formulada. Para evitar essa violentação, é preciso pesquisar e conhecer a realidade em que se vai atuar – no caso, a realidade brasileira. É a condição para se conduzir uma Psicologia que faça sentido para o homem brasileiro, que faça jus à sua identidade, que o distinga em sua especificidade, que respeite as suas diferenças de classe, de credo, de cor, a sua formação, a sua história. É a possibilidade de se construir uma Psicologia concreta.

O segundo ponto diz respeito às teorias com as quais o futuro psicólogo clínico poderá vir a trabalhar. A possibilidade da superação do mero preparo técnico, ainda muito presente na sua formação, passa pelo aprofundamento da capacidade de se analisar as técnicas e as teorias que as sustentam. Aqui, a reflexão sobre a história da educação brasileira traz uma contribuição importante: ela permitiu formular uma maneira de analisar as práticas pedagógicas que pode contribuir também para a análise das práticas psicoterápicas. Trata-se dos três níveis ou referenciais discutidos no capitulo I.2, e que representam uma gradação ou um contínuo em direção ao aprofundamento da reflexão sobre as técnicas e as teorias:

1º) Teorias e técnicas psicoterápicas (Psicologia).

2º) Concepções de homem e de mundo (Filosofia e Epistemologia).

3º) Contexto histórico (História e Sociologia).

Assim é que, no primeiro nível, como no caso das práticas pedagógicas, encontra-se o que é mais visível no trabalho do psicoterapeuta: as técnicas que utiliza. E, como na história da Educação brasileira, a história da Psicologia Clínica em Minas apresenta uma sucessão de etapas, uma alternância de predomínio, no caso, entre “o Behaviorismo, as Psicoterapias Humanistas/ Existenciais e a Psicanálise”.[40]

Subjacente à teoria e à técnica adotados pela psicoterapeuta, há a concepção de homem e do mundo, que constitui o segundo nível de análise. Este é, como foi visto no caso das práticas pedagógicas, mais oculto, inacessível à apreensão apenas pela observação. Aqui se inicia um caminho possível – e necessário – para superar a formação tecnicista: fornecer ao aluno condições para o estudo e explicitação da fundamentação filosófica das teorias e técnicas psicoterápicas. O homem é o conjunto de comportamentos observáveis do Behaviorismo? É o sujeito da subjetividade das terapias Humanistas, o ser-no-mundo da Análise-Existencial, a consciência aberta para o mundo e a intencionalidade da Fenomenologia? Ou é o ser contraditório, dividido pelas pulsões de vida e de morte, fragmentado pela ruptura consciente/inconsciente da Psicanálise? Como articular essas diferenças? (Parreira, 1990:4-6). Essas são questões absolutamente fundamentais para o psicólogo clínico e que demandam o apoio da Filosofia e da Epistemologia. Os cursos de Psicologia reservam ao estudo da Filosofia um espaço pequeno, situando-o ainda num momento inadequado do currículo. Geralmente ele é oferecido nos primeiros períodos, quando o aluno, no mais das vezes, não tem ainda maturidade suficiente para avaliar a importância desse conhecimento. E, enquanto a Filosofia é posicionada nos períodos iniciais, as Teorias e Técnicas Psicoterápicas o são nos últimos, o que estabelece entre elas uma grande e indesejável distância. Quando o aluno recebe a teoria e a técnica em Clínica, é-lhe, muitas vezes, difícil resgatar o embasamento filosófico, que então está muito distante, e que deveria sustentar essa formação.

Foi visto que, na história da educação, a sucessão de Escolas, de políticas e de concepções de filosofia significou um mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante. Na Psicologia, o que significaria a sucessão de Escolas, de técnicas, de concepções? Se os cursos de Psicologia não têm fornecido um embasamento suficiente para permitir uma análise ao segundo nível, o tem ainda menos para uma reflexão sobre o terceiro, eis que mais oculto, mais distante à apreensão.

E aqui, então, esse terceiro nível de análise das práticas psicoterápicas: as teorias e as técnicas, assim como as concepções de homem e de mundo subjacentes a elas, são produzidas socialmente, surgem num momento histórica e concretamente situado. É o nível mais encoberto dos três e se refere ao atravessamento ideológico e ao comprometimento político do conhecimento.

Se a sociedade concreta, datada, incide na determinação do ser humano, considerado, então, como ser concreto e histórico, ela incide também sobre o pensamento, sobre a cultura, sobre as teorias e, portanto, no presente caso, sobre as teorias e técnicas psicoterápicas, assim como sobre as concepções de homem e de mundo. Dessa forma, tanto as teorias e técnicas psicoterápicas quanto as concepções de homem e de mundo são expressão e criação de seres históricos e de uma sociedade concreta (é claro que os homens as criam ou as adotam como expressão também da relativa liberdade que detêm). E, da mesma maneira, a formação do psicólogo (assim como dos demais profissionais), vem de “algum lugar”, tem um solo de produção e guarda uma determinação e penetração ideológicas. Vale dizer, não há uma neutralidade nessa formação, na elaboração e definição dos currículos e dos conteúdos das disciplinas, na escolha das metodologias de ensino, do sistema de avaliação e da relação que o professor estabelece com os alunos, nas práticas, estágios, etc. Assim como não haverá neutralidade, igualmente, na atuação dos profissionais que receberem essa (ou outra) formação.

Da mesma forma que, não é demais apontar e destacar, não há uma neutralidade no trabalho do pensador ou do pesquisador que cria uma teoria, como, é óbvio, na produção de um trabalho ou de um texto – este presente texto, por exemplo, tem um registro, uma ancoragem, ele “vem de algum lugar”, marcado: ele pretende uma elaboração e uma articulação a partir do referencial histórico/dialético. Há, inelutavelmente, um comprometimento político-ideológico subjacente a todo o pensamento, a todas as teorias e práticas, profissionais ou não, e esse comprometimento deve e precisa ser conhecido, assumido e explicitado. Postular uma neutralidade, pressupor que é possível falar de nenhum lugar significa desconhecer que esse nenhum lugar é também algum lugar. Pretender que não se tem uma posição política é adotar uma posição política – resta assumir isso ou não, resta tomar consciência disso ou não.

Quando o profissional escolhe uma teoria e uma técnica psicoterápicas para sua prática, elege, junto com ela, uma dada concepção de homem e de mundo a fundamentar o seu trabalho e assume também, sem dúvida, uma determinada concepção sobre a sociedade, a qual está inextricavelmente ligada e subjacente a ambas. Ainda que ele não o saiba, ainda que ele próprio não se dê conta disso. Da mesma forma que concepções de homem e de mundo estão inelutavelmente associadas e fundamentem as teorias e técnicas psicoterápicas, também uma concepção de sociedade está presente e subjacente a uma teoria e a uma técnica psicoterápicas e a uma concepção de homem e de mundo.

Essas colocações podem ser formuladas de outra maneira: é como se cada um desses níveis trouxesse, subjacente a ele, uma proposição ou uma pergunta.

A interrogação proposta pelo primeiro nível (Teorias e Técnicas Psicoterápicas) seria assim formulada: qual é a técnica que um dado psicoterapeuta ou uma dada abordagem adota? E quais as teorias (de desenvolvimento, de personalidade, de psicopatologia e da prática psicoterápica) que dão sustentação à mesma?

A pergunta que faria o nível 2 (Concepções de homem e de mundo): qual é a concepção de homem e de mundo subjacente ao trabalho de um dado psicoterapeuta, à(s) técnica(s) psicoterápica(s) que adota e à teoria que dá suporte e fundamenta a sua prática?

E a pergunta do nível 3 (Contexto histórico): qual é a concepção de sociedade presente, embutida e subjacente a essa teoria e técnica psicoterápicas e a essa concepção de homem e de mundo? “Walden II”[41] é a explicitação ou a arquitetura da sociedade planejada por Skinner, do mundo implícito no ideário behaviorista. É importante se conhecer melhor a sociedade subentendida na obra de Freud, o mundo que ele idealizaria ou que projetaria, em consonância com a Psicanálise que criou. Qual é a idéia de sociedade implícita nas proposições de Maslow, de Rogers, qual o mundo idealizado pelos humanistas e pelos existencialistas? Por seu turno, o pensamento histórico/dialético, que não tem dificuldades em dar os necessários contornos à proposição de mundo que apresenta e pelo qual trabalha e luta, precisa também ser conhecido.

Com relação à formação do psicólogo clínico, é imperioso que se ofereça, portanto, ao aluno, a par do estudo histórico/crítico das teorias – indispensável para a formulação de uma Psicologia concreta –, conhecimentos e condições para que ele possa fazer a articulação desses três níveis:

1- as teorias e técnicas psicoterápicas (Psicologia).

2- as concepções de homem e de mundo que as fundamentam (Filosofia e Epistemologia).

3- o contexto histórico em que as duas primeiras são produzidas e/ou implementadas (História e Sociologia).

CONCLUSÃO

A análise da história da educação brasileira explicita o comprometimento político das práticas pedagógicas sucessivamente adotadas no país, desvelando-as como mecanismos de recomposição da hegemonia da classe dominante.

A história da Psicologia em Minas Gerais também revela o atravessamento ideológico desse saber e dessa prática social, a começar pelo seu surgimento, na década de 30 deste século, na área Educacional.

Na área Industrial, os serviços q0ue a Psicologia presta à classe dominante, como foi apontado, atestam e evidenciam o seu atrelamento à mesma.

A Psicologia Clínica não está isenta de tal comprometimento, e foram levantados indícios significativos desse envolvimento (para futuras pesquisas) ao nível da definição do seu objeto, da população que atende, da sua prática – da construção das suas interpretações, das suas intervenções – e da sua fundamentação teórica.

Dessa forma, a avaliação que se faz é que a Psicologia, historicamente, tem revelado um profundo atravessamento ideológico e comprometimento político nas suas três áreas tradicionais da atuação.

Se a determinação desse comprometimento é, em última instância, infra-estrutural, sabe-se que a super-estrutura ideológico-jurídico-política do edifício social tem uma autonomia relativa, e que a ocupação dos lugares da sociedade civil é uma condição importante para a transformação da sociedade. E, se de um lado, a Psicologia tem colaborado com a reprodução da dominação de classe, de outro, pela própria contradição inerente às práticas sócias, tem todo um potencial critico e libertador.

Essas considerações levam à conclusão, portanto, de que é fundamental dedicar toda a importância à reflexão sobre a formação do psicólogo. É necessário repensar a sua formação com referencia à prática – os estágios acadêmicos – e à teoria.

No que se refere à prática, a Psicologia tem trabalhado com o homem universal, vale dizer, abstrato, e esse tem sido um dos fatores da sua apropriação pela classe dominante. É preciso, pois, valorizar e estimular a pesquisa e a produção do conhecimento sobre o homem concreto.

Com relação à teoria, ainda no que se refere à formação do psicólogo clínico, o presente trabalho aponta para a necessidade de um aprofundamento na reflexão sobre os fundamentos filosóficos das psicoterapias. A teoria psicoterápica e a técnica que lhe é decorrente compõem o nível privilegiado de ensino dos cursos de Psicologia. É preciso aprofundar essa formação para alcançar um segundo nível, o da concepção de homem e de mundo, que dá sustentação à teoria e à técnica. Os cursos de Psicologia podem valorizar mais o estudo da Filosofia e da Epistemologia e situá-los melhor nos seus currículos. E há um terceiro nível ainda a ser alcançado: o da origem da produção dos dois primeiros níveis – a compreensão de que eles surgem num determinado momento histórico, em uma sociedade concreta. Aqui, a importância do estudo crítico da história da Psicologia, da história da produção do seu conhecimento. A formação do psicólogo clínico – bem como do psicólogo organizacional, educacional e de outras áreas – deve receber uma atenção maior dos cursos no que se refere ao estudo dos fundamentos do saber da Psicologia e da história da produção do mesmo.

Essas considerações a respeito da prática – dos estágios – e da teoria podem se constituir em contribuições para a formação de profissionais mais conscientes da sua função social e mais capazes de uma atuação crítica e transformadora sobre a sociedade.

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[1] Karl MARX, O capital, v.1, p. 672-3.

[2] Para discussão sobre os conceitos dos dois autores, ver, por exemplo, Stuart HALL et.. aliii In: Center for Contemporany Cultural Studies, Univ. de Birminghan, Da ideologia.

[3] A escola existia desde o Brasil-Colônia, mas com uma função apenas de reprodução da ideologia política e religiosa, sendo destinada, basicamente, à formação das elites dirigentes do país.

[4] Dermeval SAVIANI In: Walter Esteves GARCIA, Inovação educacional no Brasil, p.15.

[5] L.J. ZANOTTI Apud Dermeval SAVIANI, op. cit., p. 22.

[6] Carlos Roberto Jamil CURY, Ideal educativo e realidade brasileira, p.8.

[7] Roger ESTABLET, A escola. Tempo Brasileiro, v. 35: 113.

[8] Não é por acaso que a escola é considerada, por muitos autores, como a AIE mais importante das sociedades capitalistas modernas. Ver, por exemplo, Althusser (1980:71) e o comentário de FREITAG (1980: 35) sobre o controle do sistema educacional como um momento decisivo na luta de classes na perspectiva gramsciana.

[9] Carlos Roberto Jamil CURY, op. cit.,p.8.

[10] Lucília Regina de Souza MACHADO, Escola técnica e divisão social do trabalho, p.3.

[11] Neidson RODRIGUES, Estado e educação no Brasil, p.12.

[12] Dermeval SAVIANI, op. cit., p.20.

[13] Para uma análise das diversas concepções em educação que busca recuperar as contribuições de cada uma numa perspectiva integradora, ver Jesus PALACIOS. Tendências contemporâneas para uma escola diferente, Cadernos de Pedagogia, n.51.

[14] Dermeval SAVIANI, op. Cit., p.25.

[15] Friedrich ENGELS, Anti-Dühring, p.12.

[16] Marilena de Souza CHAUÍ. O que é ideologia, p.48

[17] Louis ALTHUSSER, Posições II, 1980, p. 79.

[18] Para discussão do significado de “imaginária”, ver José Augusto Guilhon ALBUQUERQUE In: Louis ALTHUSSER, Aparelhos ideológicos de estado, p. 39-42.

[19] Para discussão sobre o conceito de “hegemonia”, ver Hugues PORTELLI, Gramsci e o bloco histórico, p.61.

[20] Regina Helena de Freitas CAMPOS, Notas a propósito da função social do psicólogo, p.9.

[21] Marta HARNECKER, Os conceitos elementais do materialismo histórico, p. 73.

[22] Antonio GRAMSCI, Os intelectuais e a organização da cultura, p. 5.

[23] Regina Helena de Freitas CAMPOS, Psicologia e ideologia, p.72

[24] A análise da Psicologia Educacional realizada neste capitulo e da Psicologia Industrial e Clínica nos capítulos II.2 e II.3 limita-se a um dos lados da contradição inerente a essas práticas sociais – o da sua participação na reprodução da dominação da classe. Sua possibilidade de concorrer para a transformação social será comentada no capitulo III.

[25] Regina Helena de Freitas CAMPOS. op. cit., p. 72-73.

[26] Harry BRAVERMAN, Trabalho e capital monopolista, p. 125

[27] Merece destaque o subtítulo “A degradação do trabalho no século XX”, do livro supracitado.

[28] Alberto MERANI, Psicologia e alienação, p. 28.

[29] Id., Ibid., p.32.

[30] Willian César Castilho PEREIRA. O adoecer psíquico do subproletariado, p. 201.

[31] Raquel Maria RIGOTTO In: Willian César Castilho PEREIRA, op. cit., p. 149-150.

[32] Willian César Castilho PEREIRA, op.

O atendimento à criança: Uma proposta humanista relacional.

Juliana dos Santos Lopes[1]

INTRODUÇÃO:

Ao iniciar minha prática profissional de atendimento psicoterápico à criança deparei-me com alguns desafios. [Mais...] Desde o princípio pretendia atendê-las baseada nas concepções da Psicologia Humanista, acerca de relação terapêutica. Embora não deixasse de considerar as contribuições da psicanálise para compreensão do processo de desenvolvimento e constituição da identidade, em minha atuação queria seguir os ensinamentos de Carl Rogers. Considerar a pessoa e não o problema, o vivido no aqui-e-agora, na relação única que se estabelecesse entre a pessoa da criança e a pessoa do terapeuta. Assim, o primeiro desafio envolvia uma mudança de postura: Era necessário sair “de trás” da mesa, ou seja, sair do lugar investigativo e avaliativo proposto pela prática diagnóstica. Tratava-se de iniciar um processo psicoterápico com a criança, centrado na pessoa dela e no que ela estaria vivenciando de significativo no encontro comigo. Era então um lento caminhar em direção a um encontro profundo com a pessoa da criança e com a minha própria pessoa, ou mesmo minha própria criança.

Tal postura implicava em fazer o que Husserl chamou de “suspensão fenomenológica”. Colocar entre parênteses, hipóteses, conceitos, pré-conceitos, sintomas, queixas e rótulos acerca daquela criança, para então me deparar com a “pessoa” que ali se encontrava. Abrir mão, aos poucos, da “pseudo-segurança” obtida através das técnicas, métodos, testes, mesa, cadeira, tudo que pudesse ser interposto entre o terapeuta e o cliente, ofuscando o que, para mim, é o essencial: a relação terapêutica. Rogers (1977) nos ensina que, é a partir de uma relação humana dotada de certas condições favoráveis a aceitação de si e ao pleno desenvolvimento que um processo de mudança interna, visceral pode se instaurar. Isso caracteriza uma psicoterapia. Nesse tipo de relação, deve acontecer um encontro profundo onde me aproximo o mais possível do fluxo experiencial daquela pessoa que ali está, a fim de oferecer-lhe uma compreensão empática desse vivido. Assim, é preciso confiar na sabedoria advinda desse encontro. Foi um processo lento, mas constante. Os resultados dessa postura vêm ratificando cada vez mais as minhas concepções sobre um processo terapêutico humanista e relacional no trabalho com crianças.

Para se falar em atendimento psicoterapeutico de crianças é preciso adotar também uma determinada concepção do que é criança. Parto do pressuposto que: A criança é uma pessoa em desenvolvimento. Possui em si todos os instrumentos que a possibilita evoluir e desenvolver-se e uma tendência a utilizar tais instrumentos, desde que lhe sejam dadas condições favoráveis para tanto. Estrutura sua identidade na relação afetiva com os adultos de referência. Nos primeiros anos de vida, sua principal via de relação com o outro e experimentação do mundo é basicamente o corpo e a comunicação não-verbal. Diferencia-se do adulto não em status, mas em experiência e consciência de vida, percepção de si mesmo e do mundo. Assim, a mesma consideração e respeito que precisa existir na relação com o adulto para que essa se torne terapêutica é necessária quando se trata de uma criança. Essa proposição parece óbvia, mas quando observamos determinadas atitudes adotadas na prática clínica com crianças, verificamos o quanto podemos nos surpreender com a concepção do profissional e seu efeito na prática.

Além disso, a criança está numa fase especial de constituição de sua identidade, fase essa que demanda determinas formas de relação, que favoreçam a sua evolução. Por exemplo, a necessidade de afirmação de uma criança de três anos, aparece geralmente como uma crise de oposição ao poder do adulto sobre ela. É preciso no atendimento identificar tal necessidade e favorecer-lhe o exercer de seu próprio poder, de escolha. Ainda que ela decida por não brincar de nada naquele dia. Ressaltando-se que esse momento em seu processo evolutivo, não necessariamente equivale ao desenvolvimento cronológico.

A PROPOSTA HUMANISTA E RELACIONAL

Rogers (1977) nos esclarece, que para que um processo terapêutico seja desencadeado são necessárias algumas condições:

1. Que duas pessoas estejam em contato

2. Que a primeira pessoa, que designaremos o cliente, se encontre num estado de desacordo interno, de vulnerabilidade ou de angústia.

3. Que a segunda pessoa, que designaremos como terapeuta, se encontre num estado de acordo interno – pelo menos durante o decorrer da entrevista e no que se relaciona ao objeto de sua relação com o cliente;

4. Que o terapeuta experimente sentimentos de aceitação positiva incondicional a respeito do cliente.

5. Que o terapeuta experimente uma compreensão empática do ponto de referência interno do cliente

6. Que o cliente perceba –mesmo que numa proporção mínima – a presença de 4 e de 5 isto é, da consideração positiva incondicional e da compreensão empática que o terapeuta lhe testemunha.

Pois bem, durante o atendimento a criança, por muitas vezes me esbarrava no estabelecimento dessa primeira condição: o contato. Com adultos, priorizamos basicamente para estabelecer um contato, a comunicação verbal. A palavra torna-se tanto o meio de acesso, (a escuta) quanto o instrumento de intervenção no processo terapêutico. Mas ao atender crianças fui percebendo que essa não era a principal via de acesso a elas. Já sabia que se comunicavam através do brincar, do desenho, mas também percebia que se comunicavam de inúmeras outras formas. Foi nesse momento que se deu meu contato com uma outra forma de comunicação e intervenção a comunicação não-verbal e a proposta relacional.

Bem acho importante contar uma breve história desse encontro com a psicomotricidade relacional. Quando iniciei minha prática clínica com crianças em uma creche, atendi uma menina com seus 6, 7 anos, que praticamente não utilizava da comunicação verbal, quando a utilizava parecia-me desconectada da realidade. Joana[1] parecia não estar ali. Minhas intervenções compreensivas pareciam não acessa-la. Era como se ela estivesse num outro nível de comunicação pré-verbal! Através de sua postura corporal, da forma como usava os objetos, ela mostrava quem e como ela era. Comecei a usar, de forma um pouco intuitiva, meu corpo, os gestos, o olhar o brincar para me comunicar com ela. Certo dia, ela veio pra sessão extremamente agitada. Eu tinha a impressão de que ela estava espalhada na sala, movimentava-se sem parar e sem objetivo, com um tom de angústia crescente. Meio intuitivamente, peguei uma caixa de lego e espalhei pelo chão… ela parou estática olhando para aquilo. Sentei no chão e aos poucos fui juntando cada peça em meu colo, com cuidado… Ela sentou-se entre minhas pernas e também foi juntando… foi se juntando e quietando… Apoiou-se em mim e se conteve. Quietou-se. Foi um momento de encontro profundo com aquela menina espalhada, angustiada… Ela foi compreendida empaticamente ali, de forma não-verbal. Logo em seguida, saiu do colo e foi brincar, dessa vez mais organizada começava a brincar comigo, como se fosse um prolongamento meu. Foi por meio dessa modalidade de comunicação que tive acesso a ela, que consegui estabelecer um contato, um encontro verdadeiro, significativo.

Quase que paralelo a essa experiência, conheci por meio de uma profissional mais experiente no atendimento às crianças[1], um grupo de evolução pessoal vindo da Itália que fazia uma formação em Psicomotricidade Relacional. Fui conhecer e achei incrível e estranho ao mesmo tempo. Uma semana de vivência (Sensibilização), onde a proposta era brincar com alguns objetos não estruturados e uma das poucas regras explícitas era, durante o brincar, não se usa a palavra. A princípio, parecia tudo muito solto, mas ao mesmo tempo via uma seriedade, uma coerência lógica nas intervenções. Saí dessa semana, com a certeza de que havia encontrado uma forma de compreender aquela via de contato com a criança. A comunicação não-verbal. Essa é a proposta da Psicomotricidade relacional. Ou seja, a escolha da forma de trabalho, partiu do vivido do experienciado pra só depois ser elaborado teoricamente.

Não pretendo entrar muito na elaboração teórica da proposta relacional, uma vez que não é esse o objetivo do texto. Basta que se tenha em mente de onde vem a psicomotricidade relaciona e para onde vai essa proposta:

PSICOMOTRICIDADE TRADICIONAL: Baseada na concepção que desenvolvimento motor e psíquico estão intimamente ligados, visa favorecer a experimentação corporal através de jogos, exercícios, técnicas de organização do esquema corporal, para percepção de si no espaço, no tempo e no mundo.

PSICOMOTRICIDADE RELACIONAL (André Lapierre – Ed. Física):

· Descoberta de fenômenos relacionais vivenciados pelas crianças durante a execução de exercícios psicomotores;

· Contato com as idéias de Rogers sobre grupos de Encontro. (noção de livre experienciar e não-diretividade)

· Mudança na forma de propor os grupo de psicomotricidade. (jogo espontâneo, material não estruturado, livre experienciar);

· Intervenções priorizando a relação adulto/criança (autoridade, sexualidade, afetividade, agressividade)

Busca de compreensão dos fenômenos surgidos por meio da psicanálise.

Psicólogos de orientação mais psicanalítica. (Esteban Levin, Suzana Cabral, outros).

· Principalmente a Psicanálise Lacaniana

· Enfatizam a interpretação dos fenômenos;

· Uso da palavra como principal via de intervenção;

· Compreensão basicamente psicanalítica do processo.

· Desenvolvimento psicossexual;

· Estruturas psíquicas;

Jogo espontâneo; Propiciar a associação livre via corpo.

Psicólogos de orientação mais humanista (Mauro Verchiatto, Marta Gonzalez)

· Enfatiza a relação estabelecida e compreensão empática do vivido.

· Uso da comunicação não verbal e da relação como via de intervenção a partir do que está sendo vivido e experienciado;

· Intervenção corporal associada a posterior análise verbal do vivido.

· Compreensão de processo de desenvolvimento humano enquanto um Eu-Existencial, que se põe no mundo e se constitui a partir da relação com o outro. (Merleau Ponty)

· Contribuições da psicanálise neo-freudiana. Noção de desenvolvimento psicoafetivo. (Margareth Malher) de espaço e objeto transicional (Winnicott)

Jogo espontâneo, livre experienciar do objeto, do outro. Coloca uma estrutura no trabalho de Lapierre, acrescenta uma concepção de processo de desenvolvimento e projeto de intervenção.

Em Belo Horizonte, a proposta da psicomotricidade relacional de orientação humanista, foi desenvolvida em seu aspecto educativo por Maria Dinah Meirelles[1], com seus trabalhos em creches e escolas infantil e de Nilda Maria Ribeiro, que em seu viés clínico propõe o termo Psicoterapia Relacional à sua forma de trabalho, para falar de um processo efetivamente psicoterapeutico via relação, corpo e jogo espontâneo, desvinculando-se das antigas definições da psicomotricidade tradicional e relacional.

MAS, COMO É ISSO TUDO NA PRÁTICA?

Voltando à definição de Carl Rogers (1977) a primeira condição colocada para que ocorra um Processo Psicoterapêutico, é de que se estabeleça um contato entre duas pessoas. Um contato é um encontro verdadeiro, é uma conexão e uma compreensão da forma de comunicar daquela pessoa.

Tenho compreendido que os primeiros momentos de atendimento à criança envolvem a busca por esse “contato”. Estabelecer contato, comunicar-se, é bem diferente de fazer um rapport, “deixar a criança à vontade”. Trata-se de buscar uma comunicação com a pessoa que está por traz do sintoma, das defesas. Há naquela criança que esperneia no colo da mãe, para não entrar na sala do terapeuta, uma pessoa. Que talvez, tenha medo de entrar, que talvez conheça apenas essa forma de se comunicar, ser vista, que talvez precise da birra para sair da relação fusionada, ou para manter-se nela. Mas, enfim, uma pessoa, que se põe no mundo daquela forma. Assim, no caso da criança esse contato precisa passar pela sua modalidade específica de comunicação, que é basicamente a comunicação não-verbal. A criança utiliza-se do corpo para se comunicar, para se colocar no mundo. De acordo com Ponty (1984) “O corpo é o ser no mundo do homem”. Para esse autor, o corpo é a primeira via por meio da qual a criança entra em relação com os outros é essa a primeira via de comunicação, anterior a linguagem verbal. Trata-se da interação através do corpo, das posturas corporais, do diálogo tônico conforme nos ensina Wallon (1962). Essa é a chamada comunicação não-verbal. É através desse tipo de comunicação que se inicia o processo.

Portanto, ao atender uma criança, se faz necessário que sejam estabelecidas Condições Facilitadoras dessa modalidade de comunicação. Essas condições podem ser entendidas, tanto do ponto de Vista Externo: estrutural, quanto do Ponto de vista interno: relacional. Quando falo de um ponto de vista estrutural, estou me referindo a uma estrutura física que ofereça ao terapeuta condições seguras de trabalho. Oferecer à criança um ambiente seguro, um espaço físico de atendimento adequado à uma criança, à sua forma peculiar de comunicação e expressão. Esse ambiente possui algumas peculiaridades. Tenho observado que móveis em excesso, peças de decoração e outros materiais desnecessários, muitas vezes se interpõem a relação terapeuta criança. Fazem com que este precise se ocupar mais com os limites relacionados ao ambiente, (pode isso, não pode aquilo, cuidado com isso etc), do que se voltar para o que haveria de essencial no início de um processo terapêutico, ou seja, a qualidade da relação estabelecida com a pessoa da criança. Rogers (1977) coloca que é necessário que se estabeleçam condições favoráveis para que o organismo possa liberar-se e permitir a plena realização da tendência a atualização. Penso que, estas condições também precisam ser favoráveis para o terapeuta. Ele precisa estar seguro quanto ao ambiente não precisando se ocupar diretamente com outros objetos durante a vivência.

Do ponto de vista relacional, falo da disponibilidade pessoal para receber uma criança. Da aberturam para estar com ela. Como já disse meu objetivo não é avalia-la, investigar ou observar seus sintomas, diagnosticá-la, mas sim, encontrá-la, conhecer a pessoa que está ali sua forma de comunicar-se. Assim, nas primeiras sessões, procuro voltar toda minha atenção para a pessoa em sua unicidade, o que a caracteriza, o que a diferencia dos demais. E também em sua universalidade, aquilo que é característico do processo de desenvolvimento humano de qualquer pessoa. Assim, minha ênfase é na relação.

1. Conhecendo a pessoa/criança.

Num primeiro momento, buscarei conhecer como ela se coloca no mundo. Para isso utilizo-me não só da escuta através da fala. Mas da escuta possível através de meus olhos, escuto seu posicionamento através do corpo. Da escuta que faço de meu próprio ser em relação com aquele outro ser. Escuto as sensações, emoções que vêm surgem ao estar com ela. Assim busco compreender e conhecer: Como ela lida com o espaço? Se é expansiva, “espalhada”, contida. Como ela temporaliza? Vive um tempo próprio, se perde no tempo, adapta-se ao tempo da realidade, transgride, submete-se a ele em excesso. Como se relaciona comigo? Um parceiro de jogos e brincadeiras? Uma autoridade a obedecer ou a enfrentar? Fica à espera de comandos? Submete-se a meu desejo, ou assume logo o comando das brincadeiras, coloca e inventa as próprias regras? Busca o contato mais afetivo, corporal mais regressivo, ou mais afirmativo? Ou é mais distante, foge do contato? Como se relaciona com os objetos?­ Que uso faz deles, como meio de comunicação, como objeto transicional, como objeto simbólico. Enfim, como é sua existência, como se coloca no mundo.

Paradoxalmente, para compreender todas essas coisas é necessário desligar-me dessas coisas e centrar na relação. É na relação que a pessoa da criança se manifesta. Assim, é necessário deixá-la livre. No sentido de permitir-lhe experienciar aquele espaço, aquele encontro, da forma dela. Acompanhando-a num primeiro momento, adaptando-se a seu ritmo pessoal, até chegar a compreensão de suas necessidades psicoafetivas, ela dá a guia, ela apresenta o ritmo do processo. Assim, se uma criança chega, se relacionando basicamente no nível intelectual, desconectada do nível emocional, utilizando-se de jogos estruturados, no caso da psicomotricidade, próximo á atividade de educação física, é preciso buscar estabelecer o contato com ela a partir daí, para gradativamente ir propondo formas de brincar, mais próximas do lúdico e do experienciar corporal. Por outro lado, se ela chega em silêncio, à espera de ordens e comandos, é preciso talvez oferecer-lhe algumas guias, mostrando-lhe possibilidades de uso do material, sem no entanto determinar o que deve ou como deve fazer.

O primeiro momento é um momento de conhecê-la, sem ocupar-se do que virá depois. À medida que se estabelece esta comunicação autêntica. Nesse momento procuro comunicar conforme é proposto por Rogers, mas por meio de posturas e atitudes relacionais: a) que a recebo como ela é e a aceito como ela é. Estou disponível para ela; b) que ela tem um valor enquanto Ser único .c) que a sua forma de ser Pessoa, tem um valor. Paralelamente e, sempre na medida do necessário. Buscarei dar-lhe a segurança do que é jogo e do que é real. Oferecendo-lhe limites basicamente para a integridade física e emocional das pessoas envolvidas: criança e terapeuta. (horários, momento de brincar, momento de parar a brincadeira, etc).

Após esse primeiro contato, faz-se necessário facilitar a sua comunicação, que entendo se dá no brincar. Nesse sentido, concordo plenamente com Winnicott quando afirma que:

“A Psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar, para um estado em que o é”.(Winnicott, 1975. p59).

2. Facilitando a comunicação através do brincar

Esse ambiente facilitador vai sendo percebido aos poucos pela criança, gradativamente ela mostra sua forma, sua existência. Penso que: O segundo objetivo do terapeuta então deverá ser o de facilitar “o brincar”. É no brincar que a criança se mostra verdadeiramente como ela é, vivencia e elabora suas emoções e conflitos. É preciso ajudá-la a colocar cor na brincadeira, dar vida ao seu brincar, encontrar-se ou reencontrar-se com seu espaço ‘potencial’. Ou mesmo ajudá-la a descobrir o brincar “de verdade”.

Mas como posso saber se a criança está “brincando e verdade” ?

Quando está inteira no que está fazendo. Desligada do mundo externo, mas ao mesmo tempo ligada, presente e viva ali na brincadeira. Quando surge um colorido emocional na sua brincadeira, alegria, medo, excitação, desejo. Quando experimenta prazer, é divertido. Quando acrescenta conteúdos ao brincar. Quando utiliza o terapeuta como um parceiro “simbólico” na brincadeira. Brinca com ele e não pra ele.

Para facilitar o brincar, é preciso que o terapeuta reencontre seu “espaço potencial” conforme nos ensina Winnicott, o seu jeito de brincar, seu lado lúdico, pré-verbal. Encontre o prazer de se relacionar com aquela pessoa que está ali, através da brincadeira. Abra mão temporariamente de sua forma de relação formal, de sua comunicação racional, convencional e busque uma comunicação no nível da criança. Brincar “de verdade” precisa ser “gostoso” para ambas as partes.

2.1. E quais são as dimensões desse brincar?

Quando brinca “de verdade”, a criança traz o seu “Eu” através do corpo. A forma como se coloca no mundo. O mundo, no espaço terapêutico, é um mundo analógico. Seria a sala, os objetos, os limites concretos de tempo e espaço. Ela irá trazer o seu “Eu” em relação com esse mundo mostrando ali: os espaços que ocupa, ou não; os objetos que escolhe e a forma como escolhe utilizá-los; seus limites corporais; os limites que estabelece, ou não na relação com o outro. .

Ao brincar com o terapeuta, a criança apresenta-se como ela é em relação o adulto, figura de autoridade e fonte de afeto (de tudo aquilo que possa afeta-la, negativa ou positivamente). O tipo de relação que estabelece, a forma como lida com esse adulto e com sua disponibilidade, sua autoridade, seus limites. Tudo isso só aparece quando a criança sente-se livre para brincar com ele.

3. Uma concepção de desenvolvimento humano

Após esses primeiros momentos do processo, que podem durar algumas sessões, começarmos a ter uma noção sobre como se deu o seu processo de desenvolvimento psicoafetivo. Ou seja, como sua identidade foi se configurando, à partir das relações com o outro e com o mundo. Podemos afirmar que é a partir das relações afetivas que a criança vai estabelecendo com as pessoas significativas, com os objetos e com o mundo que ela vai constituindo sua forma de existência atual que, conseqüentemente lhe dirá da sua existência quando adulta. Segundo Margareth Mahler (1977), o desenvolvimento psicológico da criança, é o que vai fazer com que ela saia gradativamente de seu mundo interior, de uma relação de dependência e simbiose, para uma relação de autonomia e individuação em direção ao mundo exterior.

Compreendo que esse desenvolvimento ocorre em fases de organização e constituição de um sentido de identidade. Ribeiro (2003) sugere que o processo de formação da identidade da criança segue um percurso que vai gradativamente, do sentido de identidade humana até a integração de uma identidade espiritual que pode ser resumido da seguinte forma:

Identidade Humana – Sentido de existência: Desenvolvido nas primeiras relações mãe/bebê. Vínculo, chamada pra vida. Vivência de fusão e contenção, prazer de existir.

Identidade Filial: Senso de merecimento. Sentir-se cuidado. Ser alguém significativo para outros seres humanos. Sentir-se digno de fazer parte.

Identidade Pessoal: Afirmação de si como uma pessoa diferente daquela que cuida dela. Ser só e poder estar só. Como uma pessoa tem um certo poder sobre sua vida, confronto com o querer do outro e com a realidade. “Sou alguém que pode”. Vivência de limites pessoais.

Identidade Sexual: Identificações com figuras parentais, relaciona-se com iguais e diferentes e percebe-se menino ou menina. O que é típico do masculino, o que é típico do feminino. Ser em relação com o sexo oposto, intimidade, entrega.Vivência edípica.

Identidade Social: Descobre até onde ir com o outro e no mundo.Diversificação de papéis. Sentir-se alguém na sociedade.

Identidade Espiritual: Busca da transcendência. Sentido da existência, comunhão com o espiritual. Integração com o universo.

Para Ribeiro (2007) “todos os aspectos da realidade humana estão intrinsecamente ligados e são co-existentes durante todo o desenvolvimento”. Ribeiro postula que o desenvolvimento dessa última identidade, a espiritual, está apoiado em nossa história de vida e na forma como desenvolvemos nossos potenciais em cada etapa desse processo de desenvolvimento.

CONCLUÍNDO

A partir dessa compreensão buscaremos elaborar um projeto de Intervenção, que visa facilitar a retomada do pleno desenvolvimento dessa criança, facilitar a vivência de seu processo pessoal através de vivências de afirmação e regressão. Experimentando a própria agressividade, afetividade, relação com a autoridade, sexualidade, afetividade. Retorna etapas de seu desenvolvimento para melhor elabora-las numa nova relação com o adulto, disponível a atender suas necessidades psicoafetivas e relacionais.

O percurso que se segue a esse primeiro momento, no entanto, é ilimitado. Pois é a criança que mostrará o caminho. É a especificidade de cada criança como ser único, inserida em uma determinada relação família e contexto social, que nos mostrará os caminhos a seguir. No entanto, vale ressaltar, que precisamos ter em mente o objetivo do trabalho, a fim de não nos perdermos nessa caminhada. Ou seja, como nos afirma Rogers, o objetivo de uma psicoterapia deve ser em última análise. Favorecer e facilitar o pleno desenvolvimento da pessoa humana.

Referências Bibliográficas:

ROGERS, Carl. R. & KINGET, G. Marian. Psicoterapia e Relações Humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva.2a. ed. Belo Horizonte, Interlivros, 1977.

PONTY, Merleau. As relações com o outro na criança. Belo Horizonte. SEGCP/Imprensa oficial, 1984.

WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WINNICOTT. D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1971.

MAHLER, Margaret S. O nascimento psicológico da criança. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977.

RIBEIRO, Nilda Maria. A evolução da comunicação na criança. Apostilas do curso de formação em psicoterapia relacional, Belo Horizonte, 2007.

Mediação: Metodologia de facilitação de resolução de conflitos *

Maria do Céu Lamarão Battaglia

* Palestra UGF 29/08/01.

A mediação é uma metodologia de resolução de conflito aplicável aos mais diferentes campos de atuação. [Mais...] A mediação transformativa e o modelo circular narrativo são as formas escolhidas por mim por serem os estilos que possuem características que mais se aproximam da Abordagem Centrada na Pessoa.

O ponto de conexão ocorre na maneira de considerar as idéias das partes envolvidas. Na verdade, as soluções são criadas e encontradas pelas partes e não pelo mediador. O mediador tem somente o papel de facilitador das relações e da profusão de idéias criativas e exeqüíveis.

A mediação é um instrumento de resolução de conflitos bastante utilizado em diversos países como Estados Unidos, Canadá, China, França, Inglaterra, Noruega, Espanha, Argentina, Brasil y México. Em alguns deles, por mais de 30 anos.

Creio que a mediação, como técnica, vem suprir um espaço anteriormente ocupado pelas pessoas mais velhas da comunidade ou da família. Com as transformações na modernidade das organizações sociais, este espaço se tornou vazio. Além desse fato, algumas transformações também ocorreram tanto em relação a causa dos conflitos, como em relação as habilidades necessárias para solucioná-lo.

Em relação a causa dos conflitos, podemos constatar que inicialmente eles se davam pela impossibilidade de consenso, enquanto atualmente ocorrem pela dificuldade de se lidar com a diferença.

Quanto as habilidades do mediador, se deslocam do antigo lugar de terceiro de bom senso que aconselha as partes ou valida uma ou outra, para a de facilitador que cria condições para o diálogo sempre que as partes envolvidas não consigam concretiza-lo sozinhas.

A mediação então torna-se um recurso confidencial, importante para a resolução de conflitos nas situações que envolvam diferentes interesses assim como a necessidade de negociá-los. Embora, em alguns países ocorra uma intimação judicial as partes para que recorram a mediação, utilizo-a em minha prática como um processo necessariamente voluntário no qual a responsabilidade pela construção das decisões cabe as partes envolvidas. É exatamente neste ponto que a mediação se diferencia da resolução judicial onde a decisão é transferida a um terceiro, o juiz.

Alguns dos grandes benefícios deste recurso são: rapidez e efetividade de resultados; redução de desgaste emocional e de custo financeiro; garantia de privacidade e sigilo; alternativa a arbitragem e processo judicial; redução de duração e reincidência dos litígios; facilitação da comunicação e promoção de ambientes cooperativos; transformação e melhoria das relações.

Outro aspecto extremamente importante na mediação é o fato de que suas estratégias objetivam, além da resolução de conflito propriamente dito, a prevenção e a aprendizagem de novas maneiras de resolução de conflito promovendo um ambiente propício a colaboração, possibilitando que relações continuadas perdurem de forma positiva.

Estas habilidades podem ser treinadas e utilizadas por qualquer pessoa que participe de contexto de conflito. Contudo, como Terapeutas da Abordagem Centrada na Pessoa e Facilitadores de Grupos, encontramos certamente uma maior facilidade na maneira de manejar o processo de mediação transformativa quer seja nos âmbitos sociais, políticos, transculturais, educacionais, empresariais ou jurídicos.

A aplicabilidade da mediação abrange todo e qualquer contexto de convivência capaz de produzir conflitos. Podem se beneficiar deste recurso impasses políticos e étnicos (nacionais e internacionais), questões trabalhistas e comerciais (locais ou de mercados comuns), empresas, escolas, famílias, comunidades e instituições.

Os benefícios possíveis para os participantes de uma mediação serão a incorporação de novas maneiras de resolução de conflitos, onde ambos constróem suas próprias soluções e passam a funcionar com mais esta alternativa em suas vidas próprias, através de uma meta-aprendizagem.

Para o mediador, o principal beneficio é promover a reflexão e a reformulação de sua maneira de atuar nas resoluções de conflito. Tornam-se mais claramente delimitados os limites e as possibilidades na relação entre mediador e mediado. Possibilitar maior autonomia, expressão pessoal e co-responsabilidade das partes na construção de suas alternativas e decisões, passa a ser cada vez mais seu foco de ação.

No estudo da mediação, abrangemos temas como definição de conflito e classificações, diferentes estilos de manejo de conflitos como Mediação para Acordos com suas técnicas de negociação (princípios de Harvard), Mediação Transformativa com o privilegio do conflitante em lugar de conflito, de Bush & Folger, que se utiliza do modelo circular narrativo agregando o pensamento sistêmico, com sua proposta de circularidade ou processo reflexivo, e a teoria das narrativas de Sara Cobb.

Tratamos da ética no processo de mediação e a influência dos novos paradigmas sistêmicos que atuam diretamente na mediação transformativa como nos demonstra Acland (1993).

Trabalhamos também o tema da comunicação diretamente relacionado ao manejo das situações de conflito e o tema relato das historias como instrumento que pode possibilitar a reformulação de compreensão e escuta das partes.

Como norteadores, detalhamos as etapas do processo com suas distintas características e especificidades, passando pela abertura, o relato das historias, a construção, ampliação e negociação de alternativas até o fechamento com a redação final do acordo quer seja formal ou informal.

Tudo isso, lembrando sempre que é a construção e a escolha das alternativas pelas partes, que aumenta enormemente a possibilidade de efetividade de resultados visto que as decisões e escolhas pessoais são as que com mais profundidade nos comprometem.

BIBLIOGRAFIA

ACLAND, A. (1993). Como utilizar la mediación para resolver conflitos

en las organizaciones. Buenos Aires: Paidós.

BUSH, R. & FOLGER, J. (1994). The Promise of mediation: responding

to conflict through empowerment and recognition.San Francisco:

Jossey Bass.

GIRARD, K. & KOCH, S (1997). Resolución de conflitos en las escuelas.

Buenos Aires/ Barcelona: Garnica

LITTLEJOHN, S. (1996). Material do curso de formação básica e

treinamento em mediação. Buenos Aires: Fundación Interfas.

PEARCE, B.(1994). “Nuevos modelos y metáforas comunicacionales: el

pasaje de la teoria a la praxis, del objetivismo al construccionismo

social, y de la representación a la reflexividad”. In: SCHNITMAN, F

comp). Nuevos paradigmas, cultura y subjetividad. Buenos Aires:

Paidós.

SUARES, M. (1966). Mediación: conducción de disputas, comunicación

y técnicas. Buenos Aires: Paidós.

Mediação Escolar : Uma metodologia de aprendizado em administração de conflito.

Maria do Céu Lamarão Battaglia

* Texto escrito em 2003.

A mediação é um processo não adversarial de resolução de conflitos. [Mais...] Em decorrência do aumento crescente de litigiosidade, que dia a dia vem sobrecarregando a justiça e da grande demora por parte da mesma em solucionar os casos, a mediação como alternativa aos processos judiciais, vem ganhando terreno como um recurso alternativo a resolução de disputas.

Devido a este mesmo fato, com um objetivo profilático, amplia-se o campo de atuação da mediação para a educação. Considerando a escola como instituição que objetiva a educação cultural e social do homem, a mediação escolar se coloca como um convite à aprendizagem e ao aperfeiçoamento da habilidade de cada um na negociação e resolução de conflito, baseada no modelo “ganha-ganha”, onde todas as partes envolvidas na questão saem vitoriosas e são contempladas nas resoluções tomadas.

Por que os métodos utilizados anteriormente não satisfazem mais na atualidade?

Algumas mudanças importantes ocorreram nas relações interpessoais e hierárquicas nos últimos 30 anos. Por um longo período de tempo, as relações se deram no sentido da força, submissão, medo e obediência. Os conflitos eram administrados tomando-se como referência pessoas critério que possuíam o comando ou o poder de decisão graças à sua posição hierárquica. Os fatos eram apresentados a elas para que fossem julgados e uma decisão determinada. Este lugar poderia ser ocupado por um chefe de família, uma pessoa mais velha, um professor ou assim por diante. Devido à maior rigidez moral e à clara dicotomia entre o bem e o mal, os norteadores evidenciavam o certo e o errado de tal forma que dificilmente podiam ser contestados. Desta forma, viemos de uma cultura de litígio, onde em qualquer disputa existia um ganhador e um perdedor. A tarefa do encarregado de “julgar” a causa era apenas a de, por meio do bom senso, da moral e dos bons costumes, determinar quem estaria com a razão.

O cenário que se apresenta hoje em relação ao conflito sofreu fortes alterações. A verticalidade das hierarquias se estreitou. Os conceitos de certo e errado se relativizaram. A tendência ao individualismo e a ilusão da autonomia levaram o homem às disputas que objetivam defender apenas os próprios interesses. Se faz necessário hoje então a utilização de uma metodologia de resolução de conflito que convide cada parte envolvida a participar e a tomar para si sua cota de responsabilidade na decisão selada. Diferente da posição anterior, atualmente a busca remete ao consenso.

O primeiro passo a ser dado diz respeito à redefinição de conflito. Tomando como exemplo a cultura oriental, podemos observar que o oriental não bloqueia a energia do outro, como ocorre em um julgamento onde cada um defende sua posição. Ele aproveita a energia do outro para conseguir o que quer. É exatamente esta inclusão do outro no projeto, esta consideração do outro, levando em conta suas necessidades para satisfazer as próprias, que denota a diferença primordial de postura frente à nossa cultura. Enquanto os orientais submergem na experiência para compreender e vivem o processo, nós nos distanciamos para melhor observar de fora. Para o oriental, passar do sim ao não, não representa nenhum problema. Para nós, significa retratação, contradição, fraqueza e insegurança. Talvez seja este o maior impasse que o mediador possa se defrontar no papel de facilitador do processo.

Desta forma, ressaltamos que redefinir a noção de conflito implica no reconhecimento do mesmo como uma parte da vida que pode ser utilizada como oportunidade de aprendizagem e crescimento pessoal. Considerando-se que o conflito é inevitável, a aprendizagem da habilidade em resolvê-los torna-se tão educativa e essencial quanto a aprendizagem da matemática, história, geografia, etc., sendo que, na maioria das ocasiões, as próprias crianças podem resolver seus conflitos de maneira tão adequada quanto com o auxílio dos adultos.

Isso nos direciona a construir um programa dirigido à área da educação que objetive implementar habilidades em gerenciamento de conflito. Estes programas tem por objetivo desenvolver alguns pontos chaves:

a)Desenvolver uma comunidade na qual os alunos desejem e sejam capazes de uma comunicação aberta.

b)Ajudar os alunos a desenvolverem uma compreensão melhor da natureza dos sentimentos, capacidades e possibilidades humanas.

c)Ajudar os alunos a compartilharem seus sentimentos e serem conscientes de suas próprias qualidades e dificuldades.

d)Ajudar cada aluno a desenvolver autoconfiança em suas próprias habilidades.

e)Ajudar o aluno a pensar criativamente sobre os problemas e começar a prevenir e solucionar conflitos.

Desta forma, o currículo voltado para resolução de conflito, já bastante utilizado em diferentes países, tem como objetivo, por um lado oferecer aos alunos uma compreensão teórica sobre conflito e sobre os procedimentos para resolvê-lo e por outro, a experiência prática necessária para converterem-se em adultos flexíveis, práticos e efetivos. Sobretudo, criar um clima escolar de não violência em sua totalidade cujo marco seja o ensino e o favorecimento de meios pacíficos na resolução de conflitos.

Não podemos esquecer que um mau gerenciamento de conflito pode levar à incompreensão, ao ódio, à perda da amizade, à agressão e à violência.

Currículo

No currículo dedicado à capacitação em mediação são trabalhadas através de jogos de papéis e conflitos simulados, algumas habilidades como: reconhecimento, expressão e respeito às emoções, controle da impulsividade, manejo da raiva, escuta ativa, comunicação eficaz e técnicas de resolução de problemas.

Durante as aulas curriculares exercita-se:

- Cooperação (confiar, ajudar e compartilhar com os demais em trabalhos conjuntos)

- Comunicação (observar cuidadosamente, comunicar-se com precisão e escutar sensivelmente)

- Apreço pela diversidade (apreciar e respeitar as diferenças, entender o preconceito e como ele funciona)

- Expressão positiva das emoções (expressar sentimentos de raiva e frustração de forma não agressiva e não destrutiva, autocontrole)

- Resolução de conflitos (aprimorar a habilidade em responder criativamente aos conflitos no contexto de uma comunidade humanitária e de apoio)

Numa situação cotidiana de sala de aula, que tenha como objetivo o aprendizado em gerenciamento de conflito, torna-se importante que a maioria das situações de aprendizagem se estruturem de forma cooperativa, onde os estudantes trabalhem em pequenos grupos, nos quais tenham a responsabilidade de aprender a matéria especificada. Além disso, compete a eles que o resto dos membros do grupo também aprenda.

Os professores podem utilizar os conflitos nas lições acadêmicas para promover a motivação e um nível maior de racionalidade que conduza a melhores resultados acadêmicos. Esta experiência leva os estudantes a experimentarem as conseqüências positivas do conflito e aumentarem a atitude positiva em relação ao mesmo. As controvérsias se resolvem discutindo-se as vantagens e desvantagens de cada posição. O objetivo das discussões é o de sintetizar uma solução nova através do processo criativo de resolução de problemas.

Desta forma e de muitas outras, podemos exercitar as habilidades necessárias à competência em solucionar conflitos de maneira produtiva e construtiva nos mais diferentes momentos da vida escolar. Esta abordagem fundamenta-se em um marco teórico Compreensivo Humanista Integrativo (CHI) que nos leva a formular questões como: “Por que ocorrem estas condutas?”, “Qual a lógica da aparição destas atitudes?”, “Seriam as fontes do conflito endógenas ou exógenas?”, “Que faz a escola com estes fatores potencializadores de conflito?”…

Hipóteses a serem exploradas

Diversos fatores podem estar contribuindo para a existência do conflito, isoladamente ou de forma combinada. Examinaremos agora alguns dos fatores que ocorrem com maior freqüência.

1- Sinais de mal estar:

Pode estar ocorrendo alguma forma de mal estar que afete diretamente o aluno. Sua origem pode se localizar no âmbito social, socioeconômico, cultural, familiar ou mesmo na própria escola. Além disso estes diferentes fatores podem potencializar-se entre si.

2- Multicausalidade:

As causas do conflito se subdividem entre fatores exógenos, que se localizam fora da escola, ou fatores endógenos, que se localizam dentro da escola.

Exógenos:

a- ambiente socioeconômico

b- necessidade básica insatisfeita

c- ambiente sociocultural

d- família

e- baixa autoestima

Endógenos:

a- clima institucional

b- atitudes dominantes nas autoridades

c- grupo de colegas

3- Grupo de colegas:

Neste caso, a observação e o cuidado se voltam ao grau e à qualidade da vinculação.

Num grupo pouco saudável, ocorre a presença de situações de discriminação, chantagem afetiva, elitismo, autoritarismo, agressão e competição. Já num grupo saudável, encontraremos uma maior facilidade de comunicação, maior aceitação entre as partes, reconhecimento mútuo e estímulo ao crescimento de seus membros. Atitudes estas que previnem situações de conflito ou oferecem uma maior fluidez na resolução dos mesmos.

Conclusão

Os avanços da atualidade trazem algumas conseqüências diretas em nossas vidas. Umas boas outras não tão benéficas. Entretanto é indubitável o fato de que não podemos parar o tempo nem o desenvolvimento da ciência. Devemos sim, construir em paralelo novas maneiras de lidar melhor com as situações inusitadas que se apresentam. Juntos certamente descobriremos e construiremos ferramentas mais completas e apropriadas, principalmente porque juntos poderemos exercitar o que há de mais essencial ao bem estar humano em nossas relações: as atitudes de empatia, congruência e aceitação positiva incondicional.

Para cada nova descoberta científica, nova invenção tecnológica, nova transformação cultural, inventaremos uma nova maneira também de superação e aprimoramento pessoal.

Desta forma, acreditamos que, a mediação é na verdade uma nova maneira de recriar um espaço de aprendizagem de antigos valores. Valores essenciais ao bem estar, felicidade e harmonia do Homem.

Mediação de Casal e Família: Uma intervenção no momento de crise

Maria do Céu Lamarão Battaglia

* Palestra Trabalho apresentado no IX Forum Internacional da ACP Mar del Plata/Argentina em março de 2004.

Resumen

El presente trabajo sugiere la utilización de las técnicas de mediación transformativa, como una alternativa eficaz en la facilitación de las relaciones familiares en situaciones de crisis y conflicto. [Mais...] Empieza con un breve panorama respecto a la mediación como técnica estructurada y situa su posición en comparación a las demás alternativas de resolución de conflicto. En seguida, enumera los beneficios de la utilización de la mediación en la atención a las familias. Prosigue citando las diferentes etapas del proceso de mediación y la fundamental importancia de la calidad del acuerdo para la efectividad del mismo. Comenta brevemente los límites y finaliza demarcando la importancia del recurso en la transformación de las relaciones más alla del nucleo familiar.

Resumo

O presente trabalho sugere a utilização das técnicas de mediação transformativa como uma alternativa eficiente na facilitação das relações familiares em situações de crise e conflito. Inicia com um breve panorama sobre a mediação como técnica estruturada e situa sua posição em comparação às demais alternativas de resolução de conflito. Em seguida, enumera os benefícios da utilização da mediação no atendimento à famílias. Prossegue citando as diferentes etapas do processo de mediação e a fundamental importância da qualidade do acordo para efetivação do mesmo. Comenta brevemente os limites e finaliza demarcando a importância do recurso na transformação das relações para além do núcleo familiar.

Abstract

The present work suggests the use of transformative mediation techniques as an efficient alternative to facilitate the family relations undergoing situations of crisis and conflict.

It begins with a brief panorama about mediation as a structured technique and places its position in comparison to other conflict resolution alternatives. Then, it enumerates the coming benefits from mediation in the helping of families. It goes on citing the different stages of the mediation process and the fundamental importance of the agreement’s quality for its completion. It briefly mentions its limits and closes emphasizing the importance of mediation in the transformation of the relations beyond the family nucleus.

Introdução

Embora o termo “mediação” seja popularmente empregado em diferentes situações do dia a dia, a mediação como recurso técnico na resolução de conflito é um instrumento muito utilizado hoje em países como USA, Canadá, China, França, México, Inglaterra, Noruega, Espanha e Argentina. Em alguns destes países há mais de 30 anos, sendo por vezes obrigatória nos processos judiciais.

A mediação aplica-se em qualquer contexto de convivência seja no âmbito social, político, transcultural, educacional, empresarial ou jurídico com excelentes resultados.

Apresenta-se como um recurso que vem preencher um lugar que era anteriormente ocupado pelas pessoas mais velhas da comunidade ou da família. Com as transformações da modernidade, os novos modelos familiares e organizações sociais este espaço, que era ocupado por uma pessoa critério, se tornou vazio. Alteraram-se também as causas dos conflitos. Como conseqüência tornam-se necessárias novas habilidades para solucionar os novos desentendimentos. Os conflitos que davam-se anteriormente pela impossibilidade do consenso hoje ocorrem pela dificuldade em lidar com a diferença.

Neste momento, surge a figura do mediador. E no que diz respeito à habilidade do mesmo, ela se desloca do lugar da pessoa de bom senso, que aconselha as partes e valida uma ou outra, para o lugar do facilitador que cria condições para o diálogo sempre que as partes envolvidas não conseguem prosseguir sozinhas.

A mediação vem se constituindo um recurso importante para a resolução de conflitos nas situações que envolvam diferentes interesses aliados à necessidade de negociá-los. Principalmente nos casos de casais e famílias é uma técnica bastante adequada por ser um processo necessariamente confidencial e voluntário, no qual a responsabilidade pela construção das alternativas e das decisões cabe às partes envolvidas. É exatamente neste ponto que a mediação se diferencia radicalmente da decisão judicial, a qual fica a cargo de um terceiro.

A separação dos casais, com ou sem filhos, é uma das causas comuns de stress emocional. Nesta situação, muitas pessoas recorrem ao álcool, ou às drogas como tranqüilizantes com o objetivo de amenizar a dor ou ausentar-se emocionalmente. Os filhos costumam apresentar alguns sintomas como baixa de rendimento escolar, regressão, introversão, aumento ou falta de apetite o que preocupa e torna os pais mais ansiosos ainda. Segundo Rojas Marcos, em seu livro “La pareja rota: Familia crisis y superación”, muitos estudos evidenciam que os casais divorciados tem uma maior predisposição a sofrer enfermidades físicas e mentais como hipertensão, úlcera de estômago, problemas cardiológicos, ansiedade e principalmente depressão.

A mediação então, tem se mostrado bastante produtiva no sentido de prevenir ou ao menos aliviar essas tensões provenientes da separação dos casais, à medida em que possibilita chegar-se a um acordo que inclua as diferentes necessidades de cada membro da família. A mediação auxilia numa comunicação mais fluida que permite manter uma relação posterior mais estável e pacífica, o que contribui enormemente ao exercício conjunto das responsabilidades parentais tão fundamentais ao bem estar de todos.

Existem diferentes enfoques técnicos de mediação. A mediação utilizada por nós denomina-se “mediação transformativa”. Esta se diferencia da “mediação para acordos” que tem seu foco direcionado ao problema enquanto que a primeira, às partes e suas relações. No caso das relações familiares, ou de relações continuadas ela é particularmente interessante já que se ocupa do resgate da comunicação e da redução do custo emocional além do sigilo, que resguarda a privacidade dos membros da família. É conveniente ressaltar que a mediação não é terapia mas é um recurso que produz efeitos extremamente terapêuticos com desdobramentos que interferem direta ou indiretamente em todos os envolvidos.

Diferentes classes de resolução de conflito

Situações de conflito se encontram presentes em todos os tipos de relação. O conflito é inerente à vida. Entretanto, há momentos em que, por diferentes razões, não conseguimos solucioná-los sozinhos.Existem diferentes recursos possíveis que tem como objetivo a resolução de um conflito. Citaremos aqui os cinco recursos principais utilizados em nossa cultura.

1- Negociação:

Quando os acordos são espontâneos e diretos sem o auxílio de um terceiro.

2- Negociação Assistida ou Conciliação:

Quando algum impasse dificulta a negociação e um terceiro (conciliador) auxilia a mantê-la ou restabelecê-la, reduzindo tensão e animosidade, opinando e sugerindo alternativas, facilitando a negociação.

3- Mediação:

Quando um impasse dificulta ou bloqueia a negociação, e um terceiro imparcial (mediador) auxilia, através de um processo estruturado, a restabelecê-la, para que as partes sejam autoras das decisões. Atuando na construção de um contexto colaborativo e na desconstrução dos impasses, possibilita que um diálogo sobre as questões se estabeleça e decisões consensuais possam ocorrer.

4- Arbitragem:

Quando um terceiro, escolhido pelas partes (árbitro), decide, segundo critério de merecimento ou não, sobre as questões do litígio.

5- Litígio com Resolução Judicial:

Quando um terceiro, não escolhido pelas partes (juiz), determina, segundo critério legal ou de merecimento, a sentença a ser cumprida.

Como podemos observar, à medida em que caminhamos na utilização dos recursos no sentido da negociação para a resolução judicial, ocorre gradativamente:

Negociação> Conciliação> Mediação> Arbitragem> Resolução Judicial

• Um aumento do custo emocional

• Um aumento do custo financeiro

• Um aumento do tempo do processo

Negociação> Mediação> Conciliação> Arbitragem> Resolução Judicial

• Perda do controle sobre o processo

• Redução do poder decisório

Após evidenciar um pouco mais as vantagens da utilização deste recurso na resolução dos conflitos familiares, partiremos agora para tentar esclarecer melhor qual o papel e quais as tarefas do profissional mediador na realização de sua atividade.

Definição de Mediador

No Brasil, existe um órgão que tem como objetivo cuidar da qualidade do exercício da mediação e arbitragem no país. É uma instituição formada por profissionais eleitos, de diferentes estados do país, que possui um regulamento detalhado das normas de procedimentos e normas éticas além de cuidar do currículo mínimo necessário à boa formação do profissional em mediação e arbitragem.

Esta instituição oferece uma excelente definição de mediador com seguinte texto:

“É um terceiro imparcial, que por meio de uma série de procedimentos, auxilia as partes a identificarem seus conflitos e interesses e a construírem em conjunto, alternativas de solução com o propósito do consenso e a realização do acordo. O mediador deve proceder, no desempenho de suas funções, preservando os princípios éticos.” CONIMA[1] 1997

Benefícios da Mediação

São diversos os benefícios da mediação, principalmente comparada aos demais recursos de resolução de conflito.

· Celeridade

O processo de mediação ocorre em reuniões agendadas previamente. Tanto o horário como a periodicidade destes encontros dependerão da disponibilidade das pessoas que participam quanto da urgência do caso. Em nossa prática estes casos tem se solucionado numa media de 5 a 10 encontros.

· Efetividade de resultados

Segundo dados obtidos em diversas publicações, o índice de cumprimento destes acordos gira em torno de 85%.

· Preservação da autoria

A autoria das partes tanto em relação às sugestões de alternativas quanto em relação à escolha da melhor alternativa é fator decisivo no cumprimento do contrato.

· Redução do custo emocional

A facilitação da comunicação entre as partes possibilita que os casais possam escutar e entender melhor as razões, necessidades e sentimentos de cada um. Isso os auxilia a desfazer nós e mágoas, reconhecer-se e respeitar-se mais mutuamente. A relação com os filhos também fica menos polarizada, visto que o bem estar dos mesmos torna-se o principal motivo de interesse comum.

· Redução do custo financeiro

Quando a mediação se dá em uma instituição privada, geralmente seu custo é calculado pelo número de horas do processo como um todo. Logo no primeiro encontro estipula-se preço, forma de pagamento e quanto caberá a cada uma das partes. Nas organizações públicas ou ONGS, ela costuma ser gratuita.

· Sigilo e privacidade

É vedado ao mediador, prestar depoimento ou servir como testemunha em juízo. Esta é uma das cláusulas do contrato de mediação. Além disso, o próprio processo de mediação exige o sigilo das próprias partes nele envolvidas.

· Igual oportunidade de participação

Durante todo o processo, as partes tem um mesmo tempo de exposição, devendo o mediador estar atento e corrigir qualquer desbalance que ocorra.

· Transformação das relações

À medida que o processo transcorre, o casal tende a aumentar a fluidez em sua comunicação e mudar a postura inicial da posição litigante para uma posição mais colaborativa.

· Deuteraprendizagem

A aprendizagem sobre o como negociar passa a abranger outras situações da vida de cada um.

· Prevenção na formação de conflitos

A experimentação das novas habilidades em solucionar conflitos possibilita a aquisição de ferramentas extremamente úteis nas situações futuras que contribuem para identificação e solução de impasses logo em seu início. Isso auxilia sobremaneira a diminuição das situações de stress familiar e suas conseqüências.

· Prevenção na reincidência de conflitos

Visto que os conflitos são identificados logo de início e solucionados em suas raízes, fica minimizada a reincidência dos mesmos.

· Fluidez na comunicação

À medida em que os casais adquirem uma escuta menos defensiva, e sentem-se mais confiantes em relação a si próprios, aumenta a fluidez na comunicação tornando-se mais freqüentes as respostas oriundas de um processo reflexivo do que de uma reação impulsiva.

· Melhoria no relacionamento interpessoal

O relacionamento entre todos os membros da família torna-se mais positivo, cooperativo e construtivo.

· Melhoria no relacionamento intergrupal

O papel de cuidado intrafamiliar é restaurado. No caso dos pais separados que já constituíram novas famílias, melhoram também as relações entre os diferentes núcleos familiares.

· Atendimento aos interesses mútuos

Principalmente nos casais com filhos, não só os pais e os filhos mas todas as pessoas que direta ou indiretamente estão envolvidas com os cuidados destes são convidados a participar do processo de mediação. Esta participação ampliada nas soluções dos conflitos faz com que todos os envolvidos sintam-se considerados e com isso responsáveis, se empenhando mais diretamente nos resultados buscados.

· Responsabilidade nas decisões co-construídas

A escuta e o envolvimento de todos na construção de alternativas, assim como a autonomia do casal em relação à construção das cláusulas do contrato, favorece o empenho na efetivação do contrato.

Todos estes benefícios são evidentemente úteis nas resoluções familiares, principalmente nos casos em que crianças estão envolvidas. Alguns conflitos se arrastam através de anos em casos que presenciamos nas Varas de Família do poder público. Muitos casos demoram tanto a ser encerrados que chegam a perder todo o sentido já que os danos psicológicos intrafamiliares dificilmente serão recuperados após tantos anos de litígio e insegurança. Tornam-se conclusões absolutamente burocráticas e formais.

Vejamos agora como se dá o processo de mediação em sua estrutura e procedimento.

As 5 Etapas e a Planificação do Processo de Mediação

A técnica de mediação possui uma estrutura cuidadosa que serve como norteadora do processo como um todo. Dividida de maneiras diferentes por autores diferentes, a mediação realizada por nós transcorre em cinco etapas: Pré-mediação e Discurso de Abertura; Relato das Histórias; Construção, Ampliação e Negociação de Alternativas; Encerramento do Processo de Mediação; Acompanhamento. Descreveremos resumidamente cada uma destas etapas.

I- Pré-mediação e Discurso de Abertura:

Nesta etapa ocorre a apresentação do processo e a troca de informações com ramificação ou não da mediação como recurso. Serão consideradas a necessidade de voluntariedade, a confidencialidade, a possibilidade de cooperação e cordialidade para prosseguimento ou não do recurso com as famílias ou casais.

II- Relato das Histórias:

Momento da escuta ativa por parte do mediador. Nesta etapa são amplamente utilizadas as técnicas de comunicação.

III- Construção, Ampliação e Negociação de Alternativas:

Momento da elaboração da agenda e das opções. Aqui serão escolhidas as opções que melhor atendam às necessidades e interesses dos envolvidos e que sejam concretamente realizáveis. É a etapa mais dedicada às técnicas de negociação.

IV- Encerramento do Processo de Mediação:

Nesta fase ocorre a redação detalhada das conclusões e acordos finais. São feitos os ajustes e encaminhamentos necessários.

V- Acompanhamento:

Na maioria das vezes solicitamos o acompanhamento para que sejam feitas as readaptações, adequações necessárias à realização efetiva dos acordos com periodicidade sempre adequada a cada caso.

A importância da qualidade do Acordo como produto do processo de mediação

O acordo de mediação é o produto final que vai registrar detalhadamente tudo o que foi refletido, pensado e estabelecido como a melhor solução encontrada naquele momento dada a situação. Deve estabelecer os aspectos econômicos, a distribuição patrimonial assim como a divisão dos bens comuns com prazos e formas de acordo. No caso da existência de filhos, o acordo deverá abordar responsabilidades parentais como: onde viverá a criança; qual será o esquema de visitação, férias e feriados; como contribuir com as necessidades econômicas de seus filhos e pensão alimentícia. Como o material deve ser redigido de forma clara e em linguagem acessível, no caso da necessidade de formalização judicial, deverá ser entregue a um advogado que dará redação nos termos da lei e encaminhará ao juiz para homologação.

Para que este acordo seja efetivo ele necessita de cuidados muito especiais sob diversos ângulos:

1- O Acordo deve…

· Ser co-construído

· Ser integrativo e criativo

· Contemplar questões, interesses e necessidades das partes

· Satisfazer a todos os envolvidos

2- O Acordo necessita…

· Ser realista e efetivo

· Amplamente trabalhado e compreendido

· Compartilhar e dividir responsabilidades

· Ponderar custos e benefícios

· Ser analisado em termos de viabilidade de execução das cláusulas

3- A implementação de um acordo deve compreender…

· Prazo para cumprimento

· Período de validade

· Recursos a serem utilizados em caso de não cumprimento

· Mediação como possibilidade futura

Objetiva-se então um acordo que seja voluntário com linguagem imparcial, positiva e clara. Este acordo deve ser explícito e conter com quem, o que, quando, onde e como vai funcionar devendo ser equilibrado responsabilizando as partes igualmente. É importante que considere também a resolução de questões futuras e inclua um plano de ação e de acompanhamento das alterações.

Indicações e contra-indicações

Infelizmente, a mediação não é um recurso que possa dar conta de todo e qualquer conflito. Por motivos diversos, um processo de mediação pode ser interrompido ou mesmo nem começar.

· Vontade das partes

O primeiro caso em que este recurso se torna impossível é o caso em que apenas uma das partes se encontra disponível e desejosa de encontrar uma solução compartilhada ou mais aberta ao diálogo.

· Questões éticas

Outro motivo pode se referir a questões éticas por qualquer uma das partes, inclusive o próprio mediador, conforme estipulado no regulamento do CONIMA.

· Desequilíbrio de poder e autonomia

Nos casos em que um dos membros do casal ou mesmo seus filhos sejam vítimas de violência a mediação não se adequa pelo fato de que esta pessoa poderá sofrer algum tipo de pressão. O mesmo ocorre quando uma das partes não tem controle sobre sua vontade, por alguma deficiência crônica ou passageira.

· Cronicidade do conflito

Não raro, encontramos situações em que o conflito já se estabeleceu há tantos anos que inexiste a possibilidade de escuta entre as partes. Este relacionamento que solidificou-se de forma estereotipada bloqueia e inviabiliza o surgimento de uma nova maneira de encarar os fatos e de co-construir soluções criativas.

· Função do conflito

Finalizando, também existem casos de conflitos muito estruturados em que ambos os cônjuges tem uma profunda necessidade emocional de uma convivência litigante, a qual brinda de significado suas vidas e que em realidade não desejam solucionar.

Conclusão

A prática da mediação tem se mostrado extremamente eficaz em países que a utilizam nas mais diversas áreas. Entretanto, a disseminação desta prática exige uma reformulação substancial da maneira de atuarmos no nosso dia a dia, isto é, na nossa cultura no sentido de como constituiremos nossas relações, nas nossas casas, com nossos filhos e familiares, com nossos amigos, no nosso trabalho, na nossa vizinhança. É uma cultura que propõe a substituição da relação competitiva pela relação de cooperação e compartilhamento. Que busca o respeito, a consideração e a inclusão do diferente. Que descarta a força do poder hierárquico e coloca em seu lugar a força do poder pessoal enquanto valor em si mesmo.

Insistimos, baseados em dados estatísticos, que a reação dos filhos ante à separação dos pais está diretamente relacionada à maneira como esta separação se dá. Os filhos podem superar a situação de maneira menos traumática sempre que os pais resguardam seus papeis e responsabilidade parentais.

Desta forma, a mediação familiar demostra ser um recurso extremamente adequado e útil, já que tem como fim facilitar a retomada do lugar de pais cuidadores dos filhos e de si próprios, em um momento extremamente doloroso e difícil em que ambos desviam, ao menos momentaneamente, o foco da manutenção de relacionamentos construtivos e perdem-se na desarticulação.

O mesmo ocorre na mediação de casal, onde também corriqueiramente nos deparamos com casais litigantes que buscam não a defesa de seus interesses e necessidades mas o bloqueio dos interesses do outro. Nestes casos, sempre que a mediação é possível, temos como resultado pessoas mais satisfeitas e reconhecidas. Além do mais, com um forte sentimento de justiça perante si mesmo e o outro já que ambos interesses e necessidades foram defendidos e esclarecidos, resultando num acordo mútuo de própria autoria.

No Brasil, encontra-se em estudo no judiciário a inclusão da mediação nos processos judiciais, sendo que, nas varas de família além de um advogado mediador, deverá existir um co-mediador que terá obrigatoriamente como profissão de origem psicologia, psiquiatria ou serviço social.

Em sendo aprovada a lei, torna-se então obrigatório o oferecimento da mediação como um primeiro recurso à resolução de conflitos de qualquer natureza. Mesmo que esta obrigatoriedade de oferta não possibilite que efetivamente a mediação possa ocorrer em todos os casos, tendo em vista a obrigatoriedade da voluntariedade das partes, esta decisão será extremamente benéfica no sentido de divulgar para a população a existência deste recurso. Assim como de obrigar que mais e mais pessoas estudem e se especializem no instrumento da mediação como técnica complexa e extremamente delicada que é.

Acreditamos, mais que isso, confiamos que, à medida em que os próprios profissionais da área de direito tomem contato com esta técnica e seus resultados, possam também repensar a tradicional postura litigante e substituí-la por uma atuação que busque mais vezes a composição entre as partes do que os ganhos de causas, certos de que todos sairão ganhando.

Esta é uma área de atuação da mediação extremamente profícua visto que interfere exatamente na família, célula mater de todas as relações humanas.

Grupo de Encontro: Qual o programa?

Esther Gomes de Lima Carrenho

*Texto escrito em 2002.

A maioria das pessoas quando se inscrevem pela primeira vez num Grupo de Encontro perguntam: “Qual é o programa do fim de semana?” [Mais...]

Confesso que gasto muito mais tempo para responder e tentar explicar que não há um programa do que se simplesmente apresentasse um esquema com horários e atividades especificas.

O programa do Grupo de Encontro é feito pelo próprio grupo. Não numa reunião em volta de uma mesa com caneta e papel na mão. Não numa troca de idéias considerando a melhor forma de gastar o tempo, mas numa tentativa de experimentar olhar profundo para dentro de si mesmo, no contato consigo e com o outro. Diante disto talvez podemos dizer que não há programa mas há um caminho a percorrer e este caminho é o próprio grupo que determina. Mas a determinação na verdade é apenas a de ir pelo que surge, com medo, sem saber o que vem pela frente. É um salto no novo e no desconhecido. Nem sempre o que acontece é o melhor, mas com certeza não será nem o errado e nem o certo. É o que é. E fará parte do processo de crescer e o próprio grupo encontrará a melhor forma para as mudanças, se houver necessidades delas. Rogers usa um fato que ilustra bem esta verdade:

“Um grupo, para mim, é semelhante a um organismo, possuindo o sentido da própria direção, ainda que não possa definir intelectualmente esta direção. Isto me recorda um filme médico que há tempos, me causou profunda impressão. Era um foto-microfilme que mostrava os glóbulos brancos do sangue movendo-se inteiramente ao acaso na corrente sanguínea, até que apareceu uma bactéria patogênica. Então de uma maneira que só podia ser descrita como propositada, dirigiram-se para ela. Rodearam-na e gradualmente, cercaram-na e destruíram-na. Depois voltaram para o seu caminho…De igual modo segundo me parece, o grupo reconhece no seu processo os elementos não saudáveis, centra-se neles, filtra-os ou elimina-os, e continua, tornando-se num grupo mais saudável.”(Rogers, Carl R. – Grupos de Encontro, pag. 52).

É assim também para os psicoterapeutas. Quando vamos para um Grupo levamos na bagagem toda a nossa vivencia como pessoa, toda nossa experiência como facilitadores de grupos, todo nosso conhecimento e toda nossa disposição para dar o melhor de nós mesmos, mas principalmente vamos cheios de expectativas pela surpresa de qual caminho vamos trilhar e do que vai acontecer.

Qual então a função do psicoterapeuta?

A função do profissional aqui é:

·Em primeiro lugar proporcionar um ambiente, onde haja uma facilitação para o contato da pessoa consigo mesma.

·Em segundo lugar é caminhar junto no caminho escolhido pelo grupo. Como psicoterapeuta até é possível indicar um procedimento ou uma conduta sempre dando liberdade para que o grupo concorde ou não, mas os resultados e como aproveitar o que foi proposto é sempre com os participantes do mesmo.

·Em terceiro oferecer ferramentas que possam ajudar não só o grupo, mas cada participante do grupo, neste caminhar para se encontrar da forma mais profunda e verdadeira possível.

Como terapeutas não fazemos o programa, não escolhemos o caminho mas vamos juntos como participantes, não ignorando nossos próprios sentimentos; como facilitadores criando um clima que transmita segurança e oferecendo suporte e encorajamento para aqueles que quiserem correr o risco de mergulhar no até então desconhecido e conhecer mais da sua própria realidade. Entendo que quando a pessoa encontra um ambiente onde o que for dito será respeitado e aceito como uma expressão da sua verdade, ela terá mais liberdade para se expor , desnudando-se e percebendo se a realidade ali exposta faz parte da sua essência ou eram apenas situações internalizadas que não fazem sentido no seu viver. Pior ainda, além de não fazerem sentidos, são dinâmicas adquiridas ou impostas que trazem aprisionamento e sofrimento. Na exposição à pessoa tem a oportunidade de fazer contato consigo mesmo e no acolhimento ela pode experimentar a aceitação de si mesma se fortalecendo para se tornar cada vez mais autêntica e integrada em todos seus relacionamentos, inclusive consigo mesma.

Permitir que o grupo encontre seu melhor caminho significa acreditar que esta é a melhor forma de tratarmos com o que é mais emergente e importante para o grupo e para cada um dos seus participantes. Não estou invalidando as dinâmicas e vivências preparadas por antecipação. Apenas, entendo que quando o programa é planejado apenas pelos profissionais que estão na função de psicoterapeutas a possibilidade do participante entrar e sair sem um contato profundo com a sua real necessidade é maior. Não esquematizar um programa também não significa que o psicoterapeuta é omisso e desprovido da capacidade de usar qualquer técnica quando for necessário e de forma espontânea. Todo o grupo pode participar de uma forma terapêutica mas cabe ao facilitador promover os recursos disponíveis para um movimento terapêutico do grupo. Isto significa que qualquer conduta usada de forma espontânea e democrática, respeitando o caminho que o grupo escolheu é proveitosa.

Desta forma, o programa do Grupo de Encontro pode ser você. Desde que você queira experimentar!