Entrevista Barry Stevens
Entrevista concedida por Barry Stevens, em junho de 1977 a Paulo de Barros e gentilmente cedida pela Summus Editorial.
Um Papo com Barry
Por: Paulo Barros.
P: Barry, Conte-me algo sobre o titulo do seu livro,”Don’t Push the River”- “Não Apresse o Rio”; eu estou procurando uma boa expressão brasileira para a tradução. O que isso significa para você?
B: É uma citação zen, “Não Apresse o Rio, ele corre sozinho”.Para mim, significa deixar-se ir junto com a vida, sem tentar faze-la ir para algum lugar, sem tentar fazer com que algo aconteça, mas simplesmente ir, como o rio; e, sabe, o rio, quando chega nas pedras, simplesmente se desvia, dá a volta; quando chega a um lugar plano, ele se espalha e fica tranqüilo, simplesmente vai se movendo junto com a situação em torno, qualquer que seja ela. Ficou claro para você o que isso significa para mim? (P: sim ) E eu acho interessante que há muitas viagens por rio aqui nas redondezas – não sei se você sabe – há o Rio Colorado e o Rio Verde, e o Dolores, e há muita gente que ganha a vida e passa a maior parte dela no rio, e para essa gente o título tem muito significado porque precisam acompanhar o rio, ou então se metem em apuros. Se o rio os leva desta maneira em águas agitadas, não adianta tentar escapar daquela maneira – eles precisam ir junto, e por isso o título significa tanto.
P: No seu livro, você conta muita coisa boa sobre o povo do Havaí e a sua forma de vida, e também sobre a comunidade de Cowichan. O que você diria para pessoas que gostariam de começar uma comunidade Gestalt?
B: Veja, esta é uma coisa que eu gostaria de ter, uma comunidade Gestalt, mas não tenho. Se realmente as pessoas têm algum propósito de se clarificar, de abandonar parte do seu ego pessoal (coisas que neste país são extremamente fortes, não sei como são em outros lugares); coloca-se tanta ênfase sobre aquilo que eu quero, eu preciso conseguir isto, eu preciso ter isto, para mim é importante ter este tipo de trabalho, eu preciso fazer aquilo e você não deve me atrapalhar; e , a menos que as pessoas estejam dispostas a ceder, não vejo qualquer possibilidade de existir uma comunidade. (P: Você não vê…?) Digo, a menos que as pessoas estejam dispostas. Se elas tiverem algum interesse real e disposição para entender e abandonar parte de seus laços com o ego, e realmente trabalhar para se clarificar, então vejo possibilidade.
P: Tenho pensado nisso – em formar algum tipo de comunidade, e me pergunto se seria necessário ter alguém com experiência neste tipo de vida – por exemplo, com um pouco mais de experiência , que já tenha vivido desta maneira, ou um grupo de caras mais jovens que pudessem fazer isso.
B: Para mim, gente jovem pode fazê-lo, se tiver se firmado no propósito e possuir dentro de si o que for necessário. O que tem acontecido – tivemos muitas comunidades neste país – eram chamadas de comunas – e baseavam-se em idéias, e a maioria delas fracassou porque tinham um ideal e tentaram viver o ideal, e não deu certo. Os ideais nunca dão certo porque deixam tanta coisa de fora – a realidade é diferente. Existem algumas que sobreviveram – há uma no sul que sobreviveu. Nesse caso, o homem encarregado dela é jovem, mas ele tem muita coisa firme dentro de si. Eu diria que seria mais fácil para os chilenos do que para os americanos, e não sei como seria para os brasileiros.
P: Temos algumas coisas em comum com os chilenos, que de certa forma são diferentes de vocês aqui.
B: Veja, enquanto eu estiver olhando para os meus próprios interesses e outra pessoa estiver olhando para os seus próprios interesses, e estes nunca se encontrarem, então haverá conflito; porém, se eu enxergar a cena maior… bem, por exemplo, quando recentemente voltei da Califórnia – eu estava vivendo na casa da Varanda, e ia sair de lá para que outras pessoas pudessem ocupá-la. Eu ia ficar aqui (na casa de Susan) parte do tempo, e Susan tinha me dito que dormiria fora e que eu poderia usar o dormitório dela e ter toda a liberdade na casa, pegar coisas para comer e ir de um lugar a outro, e eu preciso disso. Mas quando voltei, o que sucedeu foi que todas as crianças ficavam lá a maior parte do tempo e aquele é um lugar natural para as crianças, porque a casa tem crianças dentro dela. Bem se eu insistisse naquele quarto, como me tinha sido prometido, haveria conflito. Do jeito que as coisas são, quando vejo que a ordem natural é as crianças ficarem lá, então eu me re-organizo e vejo como posso conseguir o mesmo tipo de coisa para mim mesma, de modo que não fique fisicamente abatida, como no ano passado, e arranjo algum outro jeito para mim. Mas se eu insisto no que foi combinado, a coisa fica toda bloqueada. Alguém tem que ser capaz de enxergar qual é a organização natural, e deixá-la acontecer, e ajeitar sua própria situação em termos de suas necessidades. Mas se eu brigo com alguém para conseguir o que necessito, tudo cai por terra. Uma das coisas que aconteceram nas comunas foi que as pessoas tinham o ideal de deixar vir todo mundo que quisesse, e havia um enorme número de pessoas que vinham e não trabalhavam, só comiam, e isso, é claro, não deu certo, e foi um dos grandes problemas. Outro grande problema nas comunas foi o sexo. As pessoas que vinham ainda estavam sob seu próprio condicionamento em termos de sexo, e assim, apareciam todos os ciúmes e essas coisas podres. Para mim, é importante começar com pouca gente, pessoas que estejam realmente juntas e trabalhando neste sentido, e não deixar entrar muitas pessoas de uma só vez. Em Cowichan havia gente nova todo mês, e algumas pessoas mais antigas ficavam e toda vez que entrava gente nova, era claro que traziam consigo tudo que estavam fazendo e como se comportavam no mundo exterior; quando entra muita gente, a situação no lugar muda. Eu vi isto acontecer algumas vezes no Havaí, onde havia uma vida extraordinariamente pacífica – era muito lindo e existia muita felicidade. Naquela época era difícil chegar até as ilhas – não havia aviões, era preciso passar muito tempo num navio, e não havia muita gente chegando; e aqueles que chegavam, ou gostavam do modo de vida e se modificavam segundo ele, ou não agüentavam e iam embora. Assim, nas ilhas havia uma sensação de homogeneidade, era lindo, quase todo mundo apreciando as mesmas coisas e vivendo muito bem em conjunto. Mas então, no ano anterior a Pear Harbour o exército trouxe 52.000 funcionários da defesa, eles chegaram do continente com seu ímpeto usual e assim por diante, e aí ocorreu a transformação das ilhas. Eu vi havaianos e orientais empurrando-se para entrar nos ônibus, pois esta era a única maneira de poder continuar. Antes, todo mundo simplesmente esperava sua vez. E isso começou a transformar o povo nas ilhas, percebe, quando vem muita gente assim – foi insuportável.
P: Você diz que a comunidade… você não diria que ela tem que ser fechada – mas de certa forma tomar cuidado para não deixar gente demais…
B: É isso mesmo. E se há um núcleo, percebe, como havia no Havaí,então este núcleo trabalha junto, e se você não deixa muita gente entrar de uma só vez, então me parece que a auto-seleção é que tem lugar. E não é o caso excluir pessoas, mas elas podem vir e aquelas que se identificam, irão gostar, e as outras desejarão mudar. Porém, se o núcleo é forte o bastante em relação ao número de pessoas que entram, os outros não podem mudar o núcleo, e então, ou mudam com ele, ou caem fora.
P: Você diria que um dos pontos pode ser algo diferente – que não é importante ter alguém com experiência neste tipo de comunidade, um líder, mas que o importante é construir um modo de vida, um núcleo suficientemente forte para criar e deixar as coisas acontecerem de maneira nova.
B: Sim, e não ter um plano antes de começar. Juntar-se e viver com aquilo que é, pegar as coisas de fora e colocar tudo dentro, e ver o que dá mais certo na situação. Porque se eu tenho plano inicial, venho para a situação e tento impor o plano, e então muita coisa não combina com o plano, e então eu forço mais para fazer o plano funcionar, e você mencionou os índios e a ecologia, e isso porque eles viviam na consciência de seu meio ambiente – é por isso que podiam entender, percebe. Ninguém pode saber tudo a respeito do lugar onde vive. Apenas se pode aprender vivendo nele e então, se eu me movo com as coisas e observo o que acontece, a coisa dá certo; mas aqui tanta gente tem sua idéia própria, até mesmo de uma comunidade, tanto que quando estávamos aqui no primeiro verão, a casa da Varanda era chamada de “casa da comunidade”, porque todo mundo podia ir para lá, e muita gente veio com sua idéia própria de comunidade, sua própria fantasia, tentando nos impor, e certo dia eu me reuni com elas e disse: “Eu não vou mais usar a palavra ‘comunidade’”, e mudei o nome para casa da Varanda, porque ela tem uma varanda, percebe. Então, se as pessoas chegam com suas fantasias do que irão fazer e como as coisas vão funcionar, então existe conflito o tempo todo. Mas se você entra dentro para ver o que se consegue com esta abordagem certamente é possível. Foi realmente engraçado, porque quando eu lhes disse que não iria mais usar a palavra “comunidade”, muita gente fez careta: “Bem, e o que é que você vai usar?”eu respondi ; “nada”.
P: Você de certa forma acabou com as fantasias deles.
B: Certo. E da mesma forma, nos anúncios que temos enviado deste lugar, temos dado uma descrição – algumas coisas que possam ser diretamente entendidas, mas Steve botou “lindo” quando eu só escrevi “vale deserto e isolado”; eu disse: “Não, cada pessoa tem sua própria idéia do que é um vale lindo, e elas virão para cá e ficarão desapontadas porque não correspondemos às suas expectativas”; ele entendeu e concordou, e tirou a palavra “lindo”. E às vezes eu peço às pessoas que venham para cá sem expectativas, e se elas não conseguem, peço que olhem para as expectativas e vejam quão pouca informação existe nelas – o resto é tudo fantasia. Duas moças de Washington pensavam que tinham vindo para cá totalmente sem expectativas, e chegaram a Salt Lake City, e ficaram desapontadas porque esperavam acampar à beira do lago com árvores e relva verde, e não existe nada disso em torno do Grande Lago Salgado. Então eu acho que é necessário, e as pessoas variam muito na compreensão disto, mas eu acho muito necessário abandonar as expectativas e simplesmente vir para cá – não estivemos aqui antes, não sabemos nada sobre este lugar, há muita coisa que não sabemos, e temos que descobrir enquanto avançamos. Isso eu acho que pode funcionar, mas é tão freqüente as pessoas terem suas próprias idéias e, então, naturalmente, esperam que as coisas sucedam de uma maneira determinada , e acabam ficando muito aborrecidas quando isso não acontece. Mesmo que a expectativa não tivesse qualquer validade. É isso que acontece – é uma das dificuldades. De certa forma, é como os pioneiros – os pioneiros americanos – eles não sabiam nada a respeito da terra em que estavam entrando, e entraram e descobriram. Mas se soubessem, teriam passado muito mal.
P: Eu estava pensando em duas coisas – essas coisas que você disse sobre não ter expectativas e ter consciência… isso parece simplesmente estar disposto a descobrir algo novo que pode ocorrer uma vez que se está junto… (B: sim) porque o que eu estava pensando é, de certa forma, que muita gente gruda suas energias a expectativas – sempre procurando um ideal ou uma vida nova com expectativas, e eu estava me perguntando se não se pode ter esta mesma energia para tirar as pessoas de seus trilhos e tentar algo novo sem expectativas, sem algumas fantasias.
B: Sim. Explorar outro caminho. Esta é a diferença. Quando exploro, não sei o que existe, e olho em volta para ver e descobrir, e se entro em alguma coisa com esta abordagem, isso é muito diferente do que quando sei o que vou encontrar, ou penso que sei e acabo não encontrando, me aborreço e todo mundo está fazendo tudo errado . E eu gosto de abordar tudo desta maneira. Quando fui ao Chile (cerca de cinco anos atrás) , não quis aprender nada sobre o Chile, não quis que me contassem, mas quis ir para lá e ver com os meus próprios olhos e com o meu próprio ser, sem expectativas. Não importa quais eram as minhas expectativas; elas não teriam sido reais.
P: Eu lhe pergunto isto agora, porque estou seguro de estar começando a ver e aprender coisas aqui, estando aqui com vocês, mas outro dia e hoje de manhã a fantasia era que eu teria que passar mais tempo – não sei quanto – apenas para absorver realmente algumas coisas, e deixar que elas se tornem mais profundas e mais naturais, sabe, antes de ir para um lugar onde eu possa ter um núcleo para começar algo sem estar atado a vocês. E daí eu perguntar: Como é que uma comunidade Gestalt seria diferente destas outras amarras que eu não quero?
B: O difícil desta resposta é que com a Gestalt eu não sei o que irei estar fazendo – na minha própria vida e na comunidade – não sei o que a comunidade estará fazendo, e então é difícil dizer, percebe. Se você tem um plano, você pode dizer que acontecerá isto e aquilo. (P: Certo.) Mas estando aberta a tudo que me cerca, gente, lugar e tudo mais, e movendo-me junto, não sei onde irei parar, e não posso dizer nada sobre isso.
P: Barry, estou ouvindo – e isso me fez recordar, sabe – estou escutando o que você tem em comum com a abordagem rogeriana…
B: Oh, sim ! Os rogerianos – e Fritz, me parece – partem do mesmo ponto, e uma vez eu pensei: “Oh, não seria maravilhoso reunir Fritz e Carl simplesmente para encontrar seus pontos de concordância”, porque esta é a verdadeira base da coisa, percebe, mas Carl declinou o convite, e eu nem perguntei ao Fritz porque eram precisos os dois (P: O que aconteceu?) Carl declinou – ele não quis. Naquela época (não creio que seja verdade atualmente) acho que ele pensava que eu queria forçá-lo para a Gestalt, mas eu não queria. É simplesmente que os dois partem do princípio de que temos tudo dentro de nós, e podemos resolver nossos próprios problemas. E Carl enfatiza a aceitação, mas também sabia frustrar (você viu o filme “Glória – os três Terapeutas”?) (P: sim.) Quando vejo o filme , quase não consigo ficar sentada com a frustração de Gloria, por Carl não lhe dizer o que fazer. E estando com Carl, conheci essa frustração e conheço a frustração da esposa dele com isso – quando ele não diz a ela. Então havia muito de frustração, e junto vinha um bocado de aceitação.
P: Outro dia você estava me dizendo que o que Fritz lhe acrescentou foi que você pôde ver mais claramente o que estava fazendo.
B: Sim. Na época em que terminei o livro “Person to Person” (De Pessoa para Pessoa) pensei, ótimo – eu já sei, e como é que vivo isso? E com a percepção que tive através da maneira de Fritz abordar a coisa, no início trabalhei com ele, mas depois aprendi e fui capaz de fazer sozinha, de modo que pude ver mais, todo o tempo. E me clarificar mais todo o tempo. E ainda faço isso. E descubro coisas ridículas – que durante anos trabalhei para não ser a mãe de Steve – para deixá-lo livre – e que não tenho nenhuma sensação de que ele é meu filho. Às vezes eu digo, ele é meu filho, mas é como mencionar que eu escrevo livros ou algo assim, não quer dizer nada, sabe. Mas o que fiz com isso – ele não é meu filho, é uma pessoa separada e eu estou com ele como com outra pessoa, mas tive dificuldades o tempo inteiro – oh, durante tanto tempo – cerca de 15 anos, porque não me sentir especialmente atraída pelas mulheres que ele ama. As mulheres de quem ele gosta, com elas me sinto bem – estamos de acordo, etc., mas as mulheres que ele ama, não tenho sido receptiva a elas, e descobri em algum ponto do caminho que eu estava me punindo por causa disso, por não ser receptiva às mulheres que ele ama ( agora estou pensando em quatro delas ). Só recentemente, pouco antes de ir à Califórnia, trabalhei com a fantasia da roseira e as minhas folhas tinham espinhos, espinhos pequenos, e as folhas estavam viradas de modo que os espinhos as estavam espetando; e quando trabalhei com isso, descobri que eu ainda estava me espetando por causa disso, e de onde é que isso vinha? Vinha do tempo em que ele ainda nem tinha se casado, quando eu fiz a mim mesma a promessa de gostar da mulher que ele escolhesse, qualquer que fosse, de modo que ainda estava comigo a sogra, mesmo tendo abandonado a mãe. E isso é tão absurdo. Então me sinto muito mais a vontade por ter descoberto. Era a promessa que fiz a mim mesma. Eu acho que é muito importante olhar para as promessas que fazemos a nós mesmos, porque elas são feitas com informações insuficientes, como qualquer coisa que diga respeito ao futuro. Eu nunca tenho inspiração bastante para o futuro – eu posso ter agora o suficiente. Mas o absurdo de me apegar à imagem de sogra e a minha promessa a mim mesma, quando já tinha deixado de ser a mãe do meu filho. Estar disposta a olhar para as raízes de algo que esteja me causando dificuldades. Para mim, todos os meus problemas, todos, estão dentro de mim, não estão lá fora com ninguém. Estão todos comigo, quando estou disposta a olhar para dentro de mim e descobrir a raiz da minha dificuldade, e numa comunidade, obviamente, isso é importante.
P: Volto ao que você disse ter recebido da Gestalt, que é neste seu exemplo, “Uma forma de resolver suas dificuldades sozinha”, como na fantasia da roseira – você percebeu algo sobre sua relação com Steve e as mulheres que ele ama. Desenvolveu uma maneira de trabalhar consigo mesma.
B: E há outras maneiras – a Gestalt oferece muitas maneiras e eu seleciono aquela que me parece certa no momento. Às vezes mantenho um diálogo e, com a segunda mulher de Steve, eu constantemente entrava numa de estar sendo sugada por ela e sentir pena dela etc.; havia algo de errado nisso e eu não conseguia ver o que era – havia coisas que ela dizia, como que se explicando, “Bem, entende, eu nunca ouvi minha mãe dizer uma palavra áspera”, e eu começava a pensar nisso, sabe, “ah, sim, é difícil ouvir palavras ásperas se você nunca ouviu sua mãe dizer nenhuma”. E depois, eu pensava, “Eu nunca ouvia minha mãe dizer uma palavra áspera”. E aí está uma explicação que não gruda, entende. E havia mil coisas como essa acontecendo, até que um dia eu a coloquei na cadeira vazia e comecei a conversar com ela e, em pouco tempo, era a minha mãe que ali estava, e eu podia ouvi-la com tanta clareza (ela está morta há mais ou menos trinta anos), mas ali estava ela, tal como eu a tinha visto. A minha mãe sempre me enfraquecia dizendo que não agüentava essas coisas – que não era suficientemente forte – ela fazia isso com o meu pai quando eu o enfrentava, e lhe dizia: “Oh, eu não agüento isso, eu não agüento isso, vou desmaiar”, sabe, coisas assim, e eu fui sendo mimada, e estava entrando numa coisa parecida. Então, quando a minha mãe apareceu e eu conversei com ela e tudo ficou esclarecido, que eu não sou mais criança, e ficou claro que aqui não tem relação, e então não fui mais sugada por Danelle, e eu acho, é claro, que ela não gostou disso, mas aí o problema é dela – do meu eu cuidei, e não estava fazendo nada contra ela. Eu nunca fiz nada contra nenhuma das mulheres dele – nunca fiz nada contra elas, mas por causa da minha própria confusão, entende, eu estava sempre ordenando a mim mesma que deveria gostar delas. O gostar é ou não é - não se pode obrigar a si mesmo a gostar de alguém. Se eu me obrigo a gostar de alguém, isso é falso, porque ou é ou não é. Neste momento, é ou não é. Aí está outra coisa com relação às comunidades – tudo que sei é que elas se baseavam em que todo mundo devia amar todo mundo, e a vida não é assim, amar o tempo todo. Certa vez eu estava numa escola comunitária com um homem preto, e a escola era dirigida pelos pais dos alunos, e eles estavam tentando fazer com que todo mundo amasse todo mundo.Passei um dia com eles, e na manhã seguinte eles me disseram que o homem (o preto) não tinha entendido, e depois ele entrou e num intervalo eu conversei com ele. Ele me disse: “Eu não entendo essa gente – eles querem que todo mundo ame todo mundo o tempo todo, e as coisas não são assim”. Ele disse: “Você sabe como é – um dia um sujeito vem e lhe dá um grande abraço, e no dia seguinte ele passa reto. E é assim que as coisas são.” Mas, conversando comigo, ele pôde ver tudo mais claro dentro de si, e disse isso aos pais. Eles não entenderam nada. Tentar forçar algo, entende, forçar sempre é errado. E isso é forçar e pressionar – fazer com que todo mundo ame todo mundo, e que eu tenha que amar todo mundo o tempo todo. Ao passo que, quando vivo à vontade com… desta vez, estamos tendo momentos ótimos juntos, e da outra não estaremos. E quando há circulação e fluxo… A família – a família americana é supostamente sagrada neste país. E este mito é gigantesco. É terrível – o que se passa nas famílias!
P: As famílias brasileiras são ainda mais sagradas (ambos riem). Há muito mais pressões nesse sentido. Eu estava tentando voltar a algo sobre Rogers e Perls. Certa vez, lendo um livro sobre Gestalt e refletindo sobre algo que se passou comigo, o que eu entendi foi que a Gestalt às vezes é mais centrada na pessoa, isto é, se ela está se falseando, se não está centrada no que está realmente acontecendo, dentro de si, em seu organismo, pede-se que ela exagere esta farsa ou entre em contato com algo mais organísmico. Desta maneira, tenta-se respeitar o que está se passando, o que a própria pessoa não faz, ao ser falsa. Como você colocaria isso, Barry… uma ponte?
B: Primeiro deixe-me dizer que não tenho estado com Carl Rogers há algum tempo, e ouvi dizer que ele está muito mais Gestalt do que costumava ser. Não tenho estado com ele, e não posso dizer por mim. Mas é sempre preciso lembrar que pessoas que dão início a coisas deste tipo, elas próprias estão se movendo e modificando, e realmente não posso dizer nada sobre o que Carl Rogers pensa atualmente em termos de terapia centrada no cliente. Eu não sei. Eu não sei onde o Fritz estaria se ainda estivesse vivo, porque ele também estaria se modificando.(P: certo.) Mas me parece que Carl proporciona o clima e conversando sobre o passado, ele proporciona um clima no qual a pessoa não tem mais probabilidade de chegar ao real e descobrir como se falseia. E, com o Fritz, ele mostra neste instante – a ter consciência neste instante. E vai mais rápido – esta é uma das coisas boas da Gestalt para mim – ela parece ser decididamente mais rápida, simplesmente fazendo com que as pessoas presentifiquem este instante. Se alguém tem um momento de tristeza e começa a rir – sabe – mostrar o que ela fez e fazê-la entrar em contato com isso nesse instante – ela está sabendo que foi isso que ela fez. E isso vai muito mais rápido do que se, durante um período de tempo, a pessoa percebe “sim, é isso que eu faço”.
P: Isso é algo que eu tenho estado meio… eu sei que Rogers também está, entre outras coisas, trabalhando muito mais na congruência do terapeuta do que na aceitação ou empatia total, e todas essas coisas. (B: sim.) Mas o que eu vi foi – Rogers saiu de Freud; Freud foi para o passado, formulou toda a teoria; e então Carl disse: “Eu não vou colocar esta pessoa nesta teoria”. Então, não vou procurar a criança e o que está enterrado, etc.,e então passou a escutar – e as pessoas conversavam com ele, não sobre o passado, mas sobre a situação presente, e os dois ou três próximos anos. E então ele lida com a pessoa neste período. Ele começou a escutar coisas atuais porque não estava procurando outras coisas. (B: sim.) E Fritz fica ressaltado – o que é real, o que é presente agora. O que está acontecendo agora, e é aí que ele é radical. E se há algo do passado, vá para lá ou o que é a mesma coisa, traga para cá, agora!
B: Sim. E Perls e Rogers têm… a psicanálise volta a tudo que aconteceu, vezes e vezes seguidas, e tudo, e se envolve nisso mais e mais. Ao passo que com Carl e Fritz nós passamos por muitas coisas traumáticas e as elaboramos dentro de nós, e outras, não. E entre essas que não elaboramos, algumas estão ativamente provocando dificuldades agora, e essas são as únicas que precisam ser lidadas. Eles também têm essa base. Reviver experiências passadas, o que acontece com muita freqüência na Gestalt, e tenho certeza que também acontece na terapia centrada no cliente – reviver algo do passado é sempre muito esclarecedor, porque a memória de algo que está distorcido é muito diferente do que realmente sucedeu, então eu revivo algo ( eu sei que isso acontece freqüentemente em Gestalt ) … Outra coisa que gosto na Gestalt é que Fritz pegou coisas ( ele mesmo disse isso ), ele pegou o feedback de Carl, só que de maneira distinta, e pegou de Moreno, o psicodrama, sem ninguém mais tomar parte da coisa ( contracenar ) de modo que lá está toda a pessoa, e não sofre a interferência de outros. E a couraça muscular de Reich, e há ainda outro que não estou me lembrando. Mas, em todo caso, ele pegou essas coisas e as modificou um pouco, e juntou tudo. Então a Gestalt tem muito mais facetas do que vi na terapia rogeriana. E eu também gosto disso.
P: Caminhando nesta direção – antes de Rogers, no Brasil, havia quase que só psicanálises, ele representou um grande avanço – uma abertura para muitas coisas. ( B: sim. ) E no Brasil as pessoas estão muito interessadas em Rogers, que é uma coisa bem mais antiga, e ali a Gestalt está apenas no começo. Há muita gente interessada nela, lendo livros como “Gestalt-terapia Explicada “e “Tornar-se Presente”, e o livro da Fagan, e algumas vieram para cá para workshops em Gestalt e realmente experimentarem, e de certo modo tentam, Barry, … bem, de fato, temos um pequeno grupo que se reuni uma vez por semana, e chamamos alguns gestalt-terapeutas daqui para nos darem workshops intensivos, e estamos pensando, talvez, na fundação de um Instituto Gestalt. O que você poderia dizer de útil para essas pessoas que estão tentando entrar na Gestalt lá, sem muitas oportunidades de ter experiências?
B: Eu gostei muito da abordagem das outras pessoas (não eram muitas) na Austrália que estavam interessadas em Gestalt. A maneira deles era muito interessante. Eu levei filmes para lá e conversei com eles, tive alguns grupos e, por exemplo (vi outros fazerem coisas desse tipo)… duas mulheres, uma era assistente social e outra era psiquiatra num hospital, e a Austrália é tão rígida e retrógrada, que essas duas mulheres, quando foram ao primeiro psicodrama, vestiam calças, mas em casa tinham que mantê-las escondidas, porque não podiam usar calças. O que elas fizeram foi – assistiram os filmes, realmente ouviram o que se passava, obtiveram outras informações, etc., e quando viam algo que podiam tentar, tentavam entre si para ver como funcionava, o que sucedia, e então começaram a usar com enfermeiras e quando se deparavam com uma coisa nova, tentavam; e esta é uma maneira bastante gestáltica de agir, entende. Não tentar agarrar tudo, e sim pegar uma coisa e usar consigo mesmo, e depois com as enfermeiras, entende. Havia uma mulher, outra assistente social, que me contou que tinha um filho de sete anos que não falava. Ela foi com ele a um terapeuta e a criança continuou sem falar, sem dizer nada, e então ela sugeriu à criança que falasse consigo mesma e a criança continuou sem fazer nada. Então a mulher reconheceu o conflito em si própria, e teve um diálogo com a cadeira vazia, com a criança presente – e aconteceu que ela realmente pensava que seria útil à criança fazer isso, mas não queria forçá-la. Então teve o diálogo consigo mesma, com a criança presente, e a criança começou a conversar com a cadeira vazia. Você percebe, descobrir algo que pode ser usado, estar consciente de si mesmo, e aprender à medida que avança. Isso faz sentido para mim. Mas neste país, o que geralmente acontece com Gestalt é que as pessoas escolhem algumas técnicas e as utilizam ( elas não as utilizam consigo mesmas ), elas as utilizam com os outros, não sabem do que se trata – às vezes acontecem coisas boas, às vezes não. Mas a coisa não se mexe, não cresce, só fica parada onde está.
P: Isso quer dizer que uma das maneiras é começar fazendo conosco mesmo nesse pequeno grupo?
B: Sim. E…
P: E então, tomar consciência… (B: Certo) Isso que você contou sobre a criança, é realmente incrível.
B: Sim. Foi maravilhoso. Ela notou o que se passava dentro de si própria, e então fez com a criança presente, e a criança começou a fazer. Você percebe, o que passou para a criança foi algo tão diferente de qualquer coisa que a mulher pudesse dizer – eu quero que você faça isso, porém ao mesmo tempo, isto, e assim por diante… Mas quando ela teve um diálogo consigo mesma, sobre o que se passava dentro dela, a criança pôde se relacionar com isso. Foi maravilhoso.
P: Provavelmente ela foi muito mais clara – para si mesma, e para a criança.
B: Certo. E por outro lado, quando as pessoas pegam os truques e fazem algo – essas são as pessoas que estudam, e estudam e não estão dispostas a fazer nada enquanto não estiver perfeito. Sempre se esquivando, em vez de fazer o que eu sei e aprender com isso, e depois fixar-se em outra coisa, e mover-se. Da minha parte, eu não vejo conflitos entre rogerianos e Gestalt – eu passo facilmente de um para outro. Carl nunca fez psicanálise e para ele isso foi uma benção. Nunca fez. Ele fez outras coisas antes – ele foi seminarista. Deixou o seminário porque não podia acreditar naquelas coisas a vida inteira, quando suas crenças já tinham mudado tanto, e então saiu. Mas ele sabia qual era a situação, e que não seria respeitado por não fazer psicanálise, mas ele seguiu seu próprio caminho e foi muito xingado e, mesmo depois, foi chamado de místico e desprezado. Mas ele se manteve firme, e aí está. Fritz passou por toda a psicanálise, e às vezes parte dela interferia porque você sabe que quando se fica muito tempo numa coisa, às vezes o psicanalítico aparecia. Mas, tudo bem, eu posso reconhecer que é o resíduo psicanalítico dele, a não preciso trazê-lo para mim.
P: Isso me traz uma pergunta. Você, Barry, você usa os conceitos que Fritz tirou da psicanálise? Por exemplo, ele fala de projeção, introjeção, retroflexão, dessensibilização (um ponto morto em alguma parte do corpo ou numa experiência). Como é que você utiliza estes conceitos, se é que os utiliza?
B: Fritz sempre falava dos buracos na personalidade. Essa não é uma coisa com que eu tenha facilidade, de modo que nunca cheguei a utilizar esse conceito. Para ele, ele contava o extremo prazer que sentia quando alguém descobria os buracos em sua própria personalidade. Mas, em termos de mim mesma, é muito mais – como é que eu me bloqueio? e como é que eu posso superar esse bloqueio? E é assim que eu penso. E não faço uso de conceitos elaborados. E tento me livrar ao máximo de conceitos.
P: Estou novamente ouvindo Rogers.
B: Ah, sim. E certa vez Susan comentou: “Você faz Gestalt à maneira rogeriana”. Essa é minha abordagem. E eu, de maneira nenhuma, sinto que todo mundo deva fazê-lo dessa forma, porque há muitos terapeutas bons que não o fazem, mas ela me atrai. E no começo Rogers me atraiu, entende. Na época eu não sabia nada sobre Gestalt. Quando escrevi “Person to Person”, eu ainda não tinha lido nada sobre Gestalt . E no entanto, há Gestalt nesse livro. E eu gosto muito disso – que a Gestalt, em si, não é uma invenção, mas qualquer um de nós pode tomar consciência dela a qualquer hora, e as coisas que temos inventado para nos ajudar a tomar contato são partes – apenas algumas ferramentas que podem ser usadas com bastante utilidade, ou podem ser mal-empregadas como quaisquer outras ferramentas. Eu, por mim, não encontrei conflito nenhum entre Rogers e Gestalt. Sim, existem coisas como os resíduos psicanalíticos do Fritz, que não significam nada para mim, e eu os deixo de lado. Mas sou capaz de reconhecer que se penso que você está pensando algo, e esse pensamento é meu – não é seu – eu não estou em contato com o seu pensamento. Não sei o que está se passando dentro de você. E não preciso saber. Este é um fato simples que sou capaz de reconhecer . Sei reconhecer que se penso que alguém está se sentindo deprimido, posso verificar em mim mesma para ver se eu estou deprimida, e jogando a depressão sobre outra pessoa. Essas coisas eu não sei verificar sozinha, e elas realmente não têm nada a ver com teorias. Talvez haja uma teoria que se aplique a elas, mas isso não importa.
P: “Projeção” é apenas uma palavra? (B: Sim ) Ela não faz você ter contato?
B: Eu não emprego a palavra projeção. Mas, na realidade, eu a verifico em mim.Se eu estou projetando,posso perceber. Mas este é apenas um processo de tomada de consciência, e eu não uso o rótulo. Quando estive doente, uma das coisas que fiz… Entende, eu fiquei de cama quase o tempo inteiro, durante vários anos, vivendo sozinha, e não podia fazer nada. Não podia ler, não podia escrever, e assim por diante, e uma das coisas que fiz foi olhar para muitos fatos da minha vida e notar coisas que se passavam em mim. Como por exemplo, uma coisa que eu sabia era que por muitos anos não gostei de cor-de-rosa e observei isso, e achei muito ridículo porque gosto do rosa do céu, e na melancia, e mesmo assim, ficava o tempo todo dizendo que não gostava de cor-de-rosa. Então me deitei e fiquei com isso na cabeça, e então ouvi uma voz dizendo: “Não gosto de cor-de-rosa, não gosto de cor-de-rosa, não gosto de cor-de-rosa” e, no início, parecia uma pessoa falando, e depois a voz se dividiu na minha tia Alice, na minha mãe e na minha irmã Alice. Parece que a minha tia que era uma pessoa dominadora, dizia que não gostava de cor-de-rosa, e a minha mãe e minha irmã pegaram isso dela. Agora a minha tia… muitas coisas dela não tinham nada a ver, como essa – era só deixá-las de fora, não deixar que entrassem. Mas com a minha mãe e a minha irmã, era diferente, e deixei entrar, entende. E tudo isso simplesmente acontece, e fica claro que fiquei com toda essa informação dentro de mim, e quando me abri para ela… Descobri que gosto de muitas coisas cor-de-rosa e não gosto de outras tantas.
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Barry já passou dos setenta. E vive em sua cabana de madeira a uns cem metros das outras casas deste sítio, num vale do estado de Horta, perto de um rio com corredeiras e remansos. Tem seu isolamento quando quer. E conheci poucas, raríssimas pessoas com tanta disponibilidade para o contato. Tem um interesse ativo, alerta, e muito perceptivo pelas pessoas. Passamos três manhãs inteiras conversando e das três vezes me surpreendi quando percebi como o tempo passava rápido. E por várias vezes as suas gargalhadas desataram as minhas. Ao me aproximar de sua cabana, um pouco antes das oito, o martelar ativo de sua máquina de escrever passava célere pela porta entreaberta.
Paulo Barros
FONTE: Não Apresse o Rio (Ele Corre Sozinho).
Barry Stevens
Summus Editorial
Páginas 343 à 356