Entrevista Raquel Wrona
Entrevista concedida por Raquel Wrona em 1996 ao Jornal da Abordagem Centrada na Pessoa (Informativo da Associação Rogeriana de Psicologia).
Discutindo a Abordagem Centrada na Pessoa.
Jornal ACP- Raquel, antas de entrarmos no assunto do Fórum Brasileiro, gostaria de saber como você entrou na Abordagem Centrada na Pessoa, só para nos situarmos melhor.
Raquel- A primeira vez que ouvi falar em Rogers foi através do Professor Efraim Boccalandro, no 4o ano de Psicologia da PUC/SP. Nessa época, e ainda por um bom tempo depois, eu participava de grupos de estudo de Psicologia Analítica de Jung e todo o encaminhamento de minha vida profissional ia nessa direção .
Em 1974 assisti ao filme “três Abordagens em Psicoterapia: Perls, Ellis e Rogers”. Quem organizava o evento, apresentado no auditório da FAAP, era Eduardo Bandeira, que acabava de chegar de La Jolla. Fiquei impressionadíssima e contagiada por seu depoimento. Fui então atrás de quem entendesse de Rogers em São Paulo : encontrei Rachel Rosenberg. Soube que ela coordenaria (junto com Henriette P. Morato e Melanie Koppitz) o I curso de Especialização em Aconselhamento Psicológico na USP. A partir daí, somando-se à experiência deste curso, à amizade vital com Rachel, à freqüência ao grupo de Psicologia Humanista de São Paulo, foi crescendo meu envolvimento com a ACP.
Jornal ACP- Desde então você tem orientado seus trabalhos a partir da Abordagem?
Raquel- Minha experiência tem se diversificado: implantação do curso/serviço “Plantão Psicológico” no Centro de Desenvolvimento da Pessoa, supervisão de estágio na Clínica Psicológica da Faculdade São Marcos, participação no curso de Estudos Avançados, uma séria de experiências em facilitação de grupos, como um dos organizadores do livro “Abordagem Centrada na Pessoa” sob a coordenação de John Wood, como coordenadora do I curso de Especialização em ACP no Instituto Sedes Sapientiae e também em consultório particular (desde 1973). Atualmente trabalho como coordenadora do Serviço de Projetos da Clínica, ainda no Sedes, implementando programas de Desenvolvimento Humano com grupos de profissionais (psi) de diferentes abordagens.
Tenho um interesse especial pelo estudo dos grandes e pequenos grupos, por encontrar aí um enorme potencial como recurso para transformações sociais.
Jornal ACP- Você, que tem participado de vários eventos nacionais e internacionais, poderia fazer uma comparação entre eles, iniciando pelos internacionais?
Raquel- Participei de vários eventos regionais no Rio de Janeiro e São Paulo; dos Encontros Latinos de Sapucaí-Mirim/ MG, 1986, La Pedrera/ Uruguai 1988, Mar Del Plata/ Argentina 1990 e Maragogi/AL 1994; dos Fóruns Internacionais, no Brasil 1989 e na Grécia 1995 e agora do Fórum Brasileiro.
Analisando estes dois eventos internacionais, diria que o Fórum Internacional em 1989 no Brasil foi, de fato, uma boa aprendizagem de comunidade: o próprio grupo estruturou o encontro. Esta me parece ser a condição essencial para o que chamo de formação bem sucedida: um movimento de envolvimento cada vez maior dos participantes na identificação e resolução de suas questões enquanto grupo, na consecução de seus objetivos; movimento este que se desenvolve através das manifestações das sensibilidades individuais, com a consideração aberta das diferenças e similaridades e que vai construindo o consenso, apesar de e graças às diferenças. O processo assim desenvolvido permite a cada participante o reconhecimento da responsabilidade por si mesmo e pelo grupo como um todo. Não é preciso mais que isso para desencadear em mim um estado meio alterado de consciência. Com maior precisão, eu diria “encadear”, porque se trata de uma decorrência, uma cadeia das experiências em curso. A sensação é simultaneamente de “onipotência” e humildade, ser todo e partícula fundamental e insubstituível. Quando faço parte de um grupo que atinge esse nível de integração, parece acordar em mim uma lembrança remota de participação com a divindade na criação e no cuidado com a criação .
Já o da Grécia, apesar de estarmos bem pertinho do Monte Olimpo, teve problemas que reputo importantes quanto à organização: foi pré-estruturado. Ao chegarmos ao encontro, a Comissão Organizadora já tinha preparado todas as apresentações e até mesmo as pessoas que não estavam lá, mas enviaram trabalhos, tinham um horário e local determinado para sua exposição. Festas marcadas todas as noites, excursões de dia inteiro bem no meio da semana do Fórum, danças folclóricas, churrasco, abertura solene com autoridades de Estado que vieram também depois discursar durante um jantar no hotel.
O grupo tendeu a se manter nesta organização quase turística, misturando a todos os outros turistas do hotel, e não teve movimentos de auto-estruturação ou quebra do pré-estabelecido.
Hoje me pergunto se essa sensação frustrante de “inadequação à nossa proposta”não se deve a uma dose de inflexibilidade minha diante de grupos de um contexto cultural diferente: o conceito grego de hospitalidade, personificado no casal-mor de organizadores, sedutor e bem intencionado, o apelo do verão grego num Fórum, onde os participantes eram predominantemente europeus, para os quais céu, sol e mar não são tão disponíveis como para nós latinos, poderia determinar um desenvolvimento diferente?
Quem quis oportunidades de discussão em grupos de interesse, as teve; para quem queria aprender mais sobre formação de comunidade, não houve espaço suficiente.
Jornal ACP- E quanto à sua experiência nos Encontros Latinos Americanos da ACP?
Raquel- Quanto aos Encontros Latinos, todos eles atenderam melhor ao meu referencial de formação de comunidade, mas Maragogi (VII Encontro), me deixou intrigada. Lá , as discussões teóricas foram bem contempladas, grupos de interesse e também os painéis mostraram inúmeros trabalhos de aplicação da ACP no enfrentamento de problemas brasileiros cruciais como, por exemplo, a exploração da prostituição infantil, o descuido com a terceira idade, a construção da cidadania. E não só os trabalhos brasileiros foram interessantes. Neste aspecto, achei muito produtivo. Já nos grupões , alguma coisa parecia perturbar a intimidade: aplausos e fotografias me sugeriam uma atitude espectadora, um distanciamento, um menor envolvimento. O que me chamou a atenção em Maragogi foi a realização de um grupo vivencial permanente, quero dizer,diário, simultâneo aos grupos de interesse. Na ocasião eu me perguntava se isto não esvaziaria as possibilidades de formação de comunidade, uma vez que as emoções teriam oportunidade de serem compartilhadas neste pequeno grupo (nem tão pequeno assim), e se o grupão perderia com isto a condição potencial de se tornar um lugar para acolhimento e partilha, tão importantes para o estabelecimento da atmosfera de confiança que é pilar da comunidade. Não sei como entender o que houve lá; alguma coisa “não deu liga”. Gostaria de ter oportunidade de ouvir mais dos participantes da Maragogi. Vamos esperar que Márcia Tassinari e Jaime Doxsey ajudem a esclarecer quando concluírem o trabalho iniciado sobre aquele encontro.
Jornal ACP- E o que levou você a enviar aos participantes, imediatamente após o Fórum Brasileiro, uma carta de avaliação? É uma pesquisa?
Raquel- O que me motivou, quando tive o impulso de escrever aquela carta (e o atendi imediatamente) não foi, inicialmente, fazer uma pesquisa com a conotação literal do termo. Foi uma maneira prosaica de perguntar:- “E aí, o que é que vocês acharam?”Portanto, uma consulta para procurar entender o que se passava comigo, e que poderia descrever como “insatisfação”.
Quando comecei a escrever é que me dei conta que poderia sair dali alguma coisa útil para todos nós. Se eu tivesse sido menos afoita e esperasse um pouco, talvez pudesse aprimora-la de forma que fosse mais abrangente e facilitasse a síntese e compreensão.
Mesmo que hoje, fim de julho, eu ainda não tenha tido a oportunidade de ler de uma maneira mais sistematizada as 43 cartas, a primeira leitura feita à medida da chegada das respostas confirmou a validade da iniciativa, pelo menos num primeiro aspecto: a experiência tende a ser mais refletida e organizada, quando colocada por escrito, comentário de muitas cartas.
Quanto à minha insatisfação pessoal, primeiro chequei minhas expectativas. Se eu as tinha? Claro que sim: além de “fazer amigos e influenciar pessoas”, o que sempre me parece bom motivo para ir aos encontros, fantasiava uma oportunidade de tratar do que se passa com o grupo da ACP em São Paulo. Por que estaria tão pouco ativo, por exemplo? Imagino que outras regiões tenham dificuldades também e gostaria de discutir isso, queria a facilitação de outros olharas. Acontece que a maioria de meus colegas de São Paulo não foi ao Fórum e esta expectativa perdeu o sentido para mim. Outra coisa em que fui pensando foi abordar algumas questões referentes à Comissão Organizadora : como proceder com a divulgação das cartas e sugestões trocadas pré- encontro entre a comissão e os potenciais participantes? A maneira como isto é tratado não “modula”uma atmosfera para o encontro propriamente dito?
Questões como: devemos ter patrocínio, convidados especiais (com despesas pagas), devem ficar a critério exclusivo da Comissão ou serem abertas, discutidas ao fim de cada encontro para preparar o próximo? Quais as atribuições de uma Comissão Organizadora? Como proceder para evitar as distorções dos “resumos”das correspondências que são publicadas nos boletins, que provocam desagradáveis mal entendidos? Será que a idéia de uma Ciranda aqui também não seria interessante? ( Viva Lula e Márcia! )
Como entender aquele editorial que, batizando o Encontro de Fórum, falava em Agora, sem mencionar que havia sido uma sugestão de John Wood, da qual poucos tomaram conhecimento?
O que aconteceu é que a satisfação de estarmos lá, o reconhecimento pelo esforço da Comissão deixou que essas questões ficassem com pouco ou nenhum peso em mim. Acho que devem ser mencionadas aqui como sugestões para a próxima comissão.
Jornal ACP- Após dois meses do término do Fórum, você recebeu 43 respostas, o que representa mais de 40% do total dos participantes. Você pode nos adiantar algumas conclusões?
Raquel- Uma notável diferença em relação a todos os outros eventos foi a resolução de fazer as discussões teóricas em grupão, grupão permanente, não separação. Como principio, no que isto promete em termos de integração, me pareceu interessante, mas fiquei com a sensação muito forte de que não conseguimos desenvolver aquilo que a proposta potencialmente prometia: vimos que apesar de ter sido, aparentemente uma decisão coletiva, não foi completamente assumida; muitas pessoas não compareciam às sessões do grupão ( comentário de algumas cartas). E lá, ouvi comentários do seguinte teor: “não achei muito bom porque quem não quer ir, fica sem alternativa. Quiseram não sobrepor as pessoas”… “virou um grupão dissimulado”.
Em nenhum momento a decisão foi questionada ou retomada para modificação no grupão. Para algumas pessoas que responderam à carta, ficou faltando oportunidade de discussão teórica e, tenho quase certeza ( a ser confirmada na releitura e sistematização ) de que esta queixa veio de membros com maior tempo de atuação na ACP; já os mais novos valorizaram principalmente o fato de o Fórum ter sido predominantemente vivencial. Embora sejamos todos “dinossauros”, considero importante que comecemos a avaliar as diferentes expectativas dos “Dinos”( mais antigos ) e “Babies” (participantes mais recentes) . concordo com Dinah Meirelles/MG, quando comenta, ao me escrever, que não exploramos bem esta questão Dinos/Babies no grupo.
Um outro aspecto que me chamou a atenção, foi uma ansiedade de alguns participantes de apresentar currículo e habilidades, comentada também nas cartas, como necessidade de “apresentar serviço “, “excesso de intelectualismo”, etc. Uso o termo ansiedade, porque chegou a apresentar a forma de “aproveitar a deixa”das palavras de um depoimento sentido de alguém, para introduzir um relato formal de atividades profissionais até ligadas ao tema em questão, mas esvaziando o conteúdo emocional em beneficio de uma forma mais descritiva. Isto teria acontecido em função do tempo que poderia parecer curto, diante da dimensão da proposta? Lula usa uma imagem muito interessante, quando compara a “uma escola de samba com muita gente e pouco tempo para o desfile final… aquela correria com medo de perder ponto”.
Jornal ACP- Como você se sente por estar sendo entrevistada para o Jornal da ACP, nessa edição especial sobre o Fórum Brasileiro?
Raquel- Sinto-me muito lisonjeada e ao mesmo tempo um pouco preocupada. O que pode ser lido como crítica, deve ser entendido como o fato de que cada encontro tem características que lhe são peculiares e me propõem dúvidas e questões, que podem ser férteis a longo prazo; vivo com muita dificuldade e sofrimento o processo de avaliar uma experiência como a nossa, o que inclusive requereria o transcurso de um tempo maior do que tive até agora. Por tudo isso, espero que meus comentários possam ser entendidos com alguma complacência, “problematizados”e úteis.
Jornal ACP- Para finalizar, como pretende encaminhar esse seu trabalho?
Raquel- As cartas de avaliação do Fórum Brasileiro serão fotocopiadas e enviadas aos que as solicitaram. Agradeço de coração a todos os que me responderam e a quem quiser ainda me escrever.
Como o sino, que inicialmente foi trazido ao grupo como incômodo e se transformou no maravilhoso anúncio de todas as vozes, espero que o eventual incômodo que esses comentários possam provocar seja convertido na sinfonia das vozes, através das diferentes sonoridades, dos contrapontos e da harmonia, numa proveitosa discussão. O Fórum não terminou. O sino nos chama para o II Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa, no Sul.