Entrevista Irmão Henrique Justo
Entrevista concedida por Irmão Henrique Justo em 1995 ao Jornal da Abordagem Centrada na Pessoa (Informativo da Associação Rogeriana de Psicologia).
Discutindo a Abordagem Centrada na Pessoa.
O Irmão Henrique Justo é doutor em Educação e Livre Docente em Psicologia pela PUCRS. Seguiu, com bolsa, cursos de aperfeiçoamento em Barcelona (Psicologia Escolar e do Trabalho), Paris (Psicologia Clínica, com ênfase na Abordagem Centrada na Pessoa) e La Jolla (USA, com Carl Rogers e equipe). Escreveu duas dezenas de livros e opúsculos, além de numerosos artigos, nas áreas de psicologia, educação e religião (também é diplomado em Teologia). Porém frisa: quando faz psicologia, faz psicologia, não a misturando com religião ou alguma forma de misticismo, embora esteja atento aos aspectos psicológicos de ambas as manifestações de espiritualidade. O entrevistado foi durante quarenta anos professor na Faculdade de Educação e no Instituto de Psicologia da PUCRS, ocupando , ali, também os cargos de chefe de departamento em ambas as unidades, de vice-diretor da Faculdade de Educação e de diretor do Instituto de Psicologia. Em fins de 94 pediu desligamento da PUCRS, concentrando suas atividades docentes nas Faculdades La Salle, de Canoas, onde iniciou, com outro psicólogo, curso de especialização na Abordagem Centrada na Pessoa.
Jornal da ACP: Como conheceu a ACP?
Irmão Justo: Formado na linha psicanalítica, sentia desconforto na camisa de força da visão determinista, materialista, mecanicista, reducionista… Tive, na busca de outra linha, contato pessoal, em Viena, com Igor Caruso, que havia dado um curso na PUCRS, simpatizando com sua “análise psíquica e síntese existencial”. Em Belo Horizonte havia (creio que ainda exista) um núcleo carusiano. Em contraste com Freud, a perspectiva dele me pareceu demasiado espiritualista. Continuando, bandeirante insatisfeito, à cata de pedra preciosa capaz de me satisfazer, topei com um livrinho de Roberto Zavalloni, italiano, com estágio junto a Rogers, desdobrando, em grandes traços, a visão desse autor, totalmente aberto à realidade como ele se apresenta, sem faze-la passar pela peneira de uma teoria interpretativa. Fiz vir livros de Rogers dos USA, li, estudei… “convertendo-me”a seu modo de ver.
Jornal da ACP: Como foi seu primeiro contato com Rogers?
Irmão Justo: O primeiro contato foi por tabela, com seguidores dele, no ano acadêmico de 1966-67, como bolsista da CAPES, em Paris. Éramos vinte pessoas, de sete países diferentes. Eu o único brasileiro. Tínhamos aulas expositivas, supervisão de estágio e grupo de encontro com três facilitadores. Esse grupo funcionava uma noite por semana durante três ou quatro horas. Tanto na parte teórica como na prática impressionou-me André de Peretti, que tem vários livros publicados, o mais “rogeriano” dos rogerianos que me cheguei a conhecer. François Marchand, jovem psicólogo, também era notável…
Jornal da ACP: O que mais lhe marcou nessa experiência?
Irmão Justo: Depoimentos dos professores Hameline e Joelle Dardelin sobre “a liberdade de aprender” foram, marcantes para minha vida. Em 1967, publicaram um livro com esse título. O número de alunos aprovados nos exames finais do segundo grau, em provas organizadas pelo governo, demonstrou a superioridade da aprendizagem centrada no aluno. Ao retornar à PUCRS em 1968, somente utilizei este método, tanto no Instituto de Psicologia (graduação e pós graduação) quando na Faculdade de Educação ( mestrado e, mais tarde, doutorado). Categorizei os depoimentos de centenas de estudantes de ambas as unidades universitárias sobre esta modalidade de ensino-aprendizagem, publicando longo artigo na revista “Educação” da PUCRS. Encontrei, nas avaliações, uma quinzena de variáveis novas nessa forma de ser professor e estudante.
Jornal da ACP: Quando e como foram os contatos diretos com Rogers?
Irmão Justo: Os contatos diretos com Rogers ocorreram nos EUA, na Califórnia, onde funciona o Centro de Estudos da Pessoa e, no ano seguinte, no Brasil. Realizou-se um curso, não nesse Centro, em La Jolla (San Diego), pois não dispunha de espaço para alojamento, mas na Universidade, situada ali perto, mas fora da cidade. Esta, com as costas do Pacífico alcantiladas, oferece panoramas magníficos. Rogers mesmo deu somente parcela de curso, pois já estava com 74 anos de idade. O meu inglês não era suficiente para conversa mais longa com ele. Aliás, eu não tinha ainda algo específico para tratar com ele, já que me julgava noviço no campo da psicologia humanista. Eu sempre estava grudado nas pessoas que com ele falavam, sorvendo avidamente seu pensamento. Pôs-nos à disposição rico material, inclusive os originais datilografados do que veio a ser o livro “Sobre o Poder Pessoal”. Exigências do editor obrigaram-no a omitir vários capítulos que, porém, apareceram em outras publicações.
Os quatro brasileiros presentes em La Jolla conseguimos, depois de muitas trocas de idéias, trazer Rogers e quatro outros psicólogos ao Brasil no ano seguinte, isto é, 1977. Entre esses, Maria Constança, baiana, casada com psicólogo americano. Beleza de pessoa. Infelizmente, há pouco a morte o arrebatou. O encontro durou três semanas, em Arcozelo, a uns 5 km da cidadezinha mais próxima: Pati de Alferes, antiga fazenda transformada em local de teatro para grupos universitários (com teatro grego ao ar livre) e cursos. Na época, devido ao regime militar, encontrava-se em estado de abandono. Na primeira semana, uns quinze brasileiros, com maior ou menor conhecimento da teoria rogeriana (devíamos atuar como co-facilitadores nas duas semanas seguintes, com 100 pessoas- de fato, foram 200) e a equipe americana tivemos horas e horas de “grupo de encontro”. Até chegaram a rolar lágrimas. Em outros momentos, ajudávamos a preparar o ambiente físico. No começo não gostei muito desta tarefa. Depois me encantei. Na hora da chegada do grupão, o próprio Rogers dava indicações, fazendo o papel de recepcionista. Quase ninguém dos recém-vindos sabia quem era quem… Mas voltemos a primeira semana. Não falei muito com Rogers, porque ele se poupava. Fora das horas de grupo, costumava ou ficar no quarto ou passear, com máquina fotográfica a tiracolo. Contemplava flores, pássaros, borboletas, a vegetação em geral. Como conhecia o que havia publicado até então, interessava-me aprender das atitudes dele. Um homem de incrível empatia e delicadeza, somada à humildade científica fora do comum. Ah! Quase ia me esquecendo: levava uma cadernetinha e, seguido, tomava apontamentos. Um ser humano em grande ou plena harmonia com a natureza e as demais pessoas.
Jornal da ACP: Conte algum momento marcante desse seu contato com Rogers.
Irmão Justo: Um fato me marcou muito: certa noite, estávamos um grupinho e ele sentada na soleira de um pavilhão orientado para o leste. Falava ele na plenificação da pessoa, quando a lua cheia, ou quase cheia, despontou por detrás das árvores. Ocorreu-me a comparação: quando em condições adequadas, todas as pessoas se vão plenificando continuamente, embora nunca cheguem ao estado de “lua cheia”, pois o homem não pode crescer indefinidamente. Creio que a maior parte não passa da fase de lua nova ou quarto crescente… Inclusive teorias psicológicas impedem que chegue, a estágio mais avançado. Em vez de facilitar a caminhada, lhe colocam obstáculos de interpretações contestáveis. Basta comparar a interpretação dada, ao mesmo fato. Por Freud, Adler e Karen Horney, Por ex.
Jornal da ACP: Mudando um pouco de assunto, a seu ver, porque a ACP ainda é tão pouca conhecida?
Irmão Justo: Primeiramente, por ser teoria recente. Além disso, devido à falta de dinamismo de seus adeptos. Nesse ponto, não me julgo inocente, não. Outro ponto: Rogers não quis ser o guru de nova escola de psicologia. Ao morrer ele, ficou a ACP como batalhão sem comando. Mesmo não querendo, exercia ele influência coordenadora nos simpatizantes de suas idéias. De poucos anos para cá, está havendo um movimento de articulação entre os diferentes centros mundiais. Há falta de mais e sólidas pesquisas e mais divulgação das idéias da abordagem. Do outro lado, há resistência ao novo enfoque. Os detentores do poder nos centros universitários de formação de psicólogos tiveram, na imensa maioria dos casos, formação de outro tipo, não sendo fácil mudar para matriz científica tão diferente, baseada em outra filosofia.
Jornal da ACP: Como reverter esse quadro?
Irmão Justo: Continuando nosso trabalho de divulgação, mormente junto aos centros de formação de psicólogos, educadores, orientadores educacionais e marcando, como professores, presença nas Universidades, conforme recomendação do Congresso Internacional de Luvaina (1989), pois eles formam os profissionais. Acredito ainda que a difusão da filosofia oriental e, mesmo da new age, oferecem terreno propício à semeadura da ACP. Recente congresso de Psicoterapias, em Porto Alegre, promovida pelo Conselho Regional, mostrou como a ACP é conhecida por outras orientações, inclusive, incorporando conceitos dela. Fruto da persistência de anos…
Jornal da ACP: E fora do Brasil?
Irmão Justo: O jornal of Humanistic Psychology publicou: de 1977-1983, foram concedidos 140 graus de doutorado em psicologia humanista. Em 1985, já havia 48 programas de mestrado e doutorado nos USA, Canadá e México na linha da Psicologia Humanista-Transpessoal. Levantamento mostrou que 60% (sic!) dos psicólogos alemães se declaram humanistas, embora nem todos xiitamente ortodoxos…
As obras completas de Rogers foram traduzidas ao japonês. – Eis alguns dados alentadores para o nosso movimento brasileiro, em via de retomar novo impulso, estabelecendo conexão entre os diferentes núcleos do país e promovendo um Fórum Brasileiro para 96.
Jornal da ACP: Como se desenvolveu a ACP no sul do Brasil?
Irmão Justo: Comecei a utilizar o referencial rogeriano, discretamente, já nos cursos de pós-graduação de psicólogos no último qüinqüênio de década de cinqüenta . Uma aluna me disse um dia: “você é o único professor a usar linguagem diferente”. Claro, era muito mais…
Após o curso de Paris (1966-67), iniciei os grupos de encontro. Grupos pequenos: em torno de 10-12 pessoas. Já utilizava, nas minhas aulas, tanto no instituto de Psicologia como na Faculdade de Educação (graduação e mestrado), o método da “aprendizagem centrada no aluno”, chamando, em pouco tempo, a atenção da coordenação do mestrado em educação, que veio a criar uma disciplina com esse nome para mim. Retoquei as apostilas e, em 1973, publiquei o livro Carl Rogers ( hoje, Cresça e faça Crescer). Fundamos, também, o “Centro de Estudos da Pessoa”, onde dezenas de psicólogos se iniciaram na Abordagem, inclusive o atual Diretor do Instituto de Psicologia da PUCRS, que permanece vinculado a esta linha. Desde 1977, aproximadamente, era a terapia Centrada na Pessoa oferecida como opção. No SAP (Serviço de atendimento Psicológico do Instituto), atualmente, há vagas para estágio na abordagem. Neste semestre são três as estagiárias. No curso de graduação , o novo currículo, já implantado faz vários anos, prevê a abordagem em Psicologia Clínica. Há cinco professores engajados na ACP, três com mestrado e duas docentes seguindo esse curso. Portanto, faz vários anos, todos os alunos têm informação sobre a abordagem. Semestralmente entre meia centena de candidatos novos. A escassez de locais para estágio na ACP diminui o número dos psicólogos que aderem, efetivamente, a esta linha. Já podemos contar com quatro: o SAP e três clínicas. Novo curso de psicologia, iniciado em 1994, no interior do Estado, têm como coordenadora uma simpatizante (ex-orientada minha no mestrado da PUCRS). Já dei curso ali. Na ULBRA ( Universidade Luterana do Brasil- Canoas, RS), leciona o professor Newton Tambara, rogeriano atuante, também professor em nosso curso de especialização. No início do presente ano letivo, nossa faculdade de educação, sem interferência minha, também o contratou. É nova frente; cada semestre, novo grupo terá acesso à ACP. Os estudantes estão contentíssimos com a nova perspectiva. A atual coordenadora do curso de Psicologia da ULBRA (aliás, como o coordenador anterior ), ambos mestres pela PUCRS, muito amiga, aprecia, igualmente, nosso enfoque, embora siga as pegadas de mestre Freud na prática pessoal. A convite, de especialização falaram, há pouco, num seminário do Curso de Psicologia da UNISINOS (Universidade do Rio dos Sinos, 15km ao norte de Canoas), dirigida pelos Jesuítas. Já fiz, a convite, palestras na Universidade Católica de Pelotas. Resumindo: em todos os cursos de psicologia do Rio Grande há interesse, ou curiosidade ao menos, com relação à ACP. Penetremos nas Universidades!
Jornal da ACP: No momento, que atividades desenvolve dentro da ACP?
Irmão Justo: Uso o referencial no consultório. Newton Tambara e eu abrimos um curso de especialização da ACP nas Faculdades La Salle, aqui em Canoas, RS. A primeira turma de 14 o está incluindo. Minhas aulas seguem a diretriz da aprendizagem centrada no estudante. Colaboro em workshops e faço palestras sobre o tema.
Jornal da ACP: E o dicionário da ACP? Como andam os trabalhos?
Irmão Justo: Foi idéia genial de estudantes do curso de especialização na Abordagem, já referido. O objetivo é terminar a primeira redação até o fim do ano, para solicitar sugestões, complementações, retificações a outros núcleos.
Jornal da ACP: Existe no Rio Grande do Sul a prática de um grupo intensivo chamado “IMERSÃO”. Estes grupos possuem características próprias ?
Irmão Justo: É simplesmente um termo criado por Newton Tambara a fim de substituir o de workshop, com uso banalizado aqui no sul. Pessoalmente, prefiro a denominação rogeriana Grupos de Encontro. Porém, nunca questionei o termo Imersão , tomando tranqüilamente parte como facilitador quando convidado, o que não ocorre poucas vezes. É outro rótulo para o mesmo conteúdo .
Jornal da ACP: Percebe diferenças na aplicação da ACP nas diversas regiões do país?
Irmão Justo:Não saberia dizer. Mas certamente haverá , pois, embora mantendo certas linhas básicas, notei diferenças bem visíveis entre partidários da ACP em Paris, La Jolla e Arcozello (Rogers, Maria Constança e John Wood, por ex.), aliás, em consonância com a própria teoria, que não é leito de Procusto.
Jornal da ACP: Considera essa diversidade positiva?
Irmão Justo: Podemos aplicar aqui um princípio de S. Agostinho: “No essencial unidade, no secundário, liberdade”. Essa posição foi defendida por vários psicólogos no Congresso de Louvain (1989). Aliás parecia-me sempre ser esse o ponto de vista de Rogers. Entretanto, tenho a impressão que, aqui ou acolá, com demasiado “achismo”se questionam pontos da ACP. Toda alteração, como numa obra de arte, há de ser feita por mãos devidamente habilitadas. Em caso de dúvida, não hesito em seguir o velho mestre da La Jolla. Mormente em época de implantação do enfoque humanista entre nós, é dupla a dose de seriedade e prudência que se impõe para não nos transformar, subliminarmente, em divulgadores e, simultaneamente, em contrapropagandistas, talvez para contentar impulsos de narcisismo.
Jornal da ACP: Sua posição religiosa influencia seu trabalho na ACP? Como?
Irmão Justo: Inicialmente devo dizer aos colegas que não sou padre, mas homem que vive o cristianismo numa comunidade de “irmãos “, como celibatário (por amor aos outros), “comunista”(com voto de pobreza) e disponibilidade para fazer o bem ao próximo onde diálogo comunitário fraterno julgar mais útil (voto de obediência). Essa vocação direcionada ao bem –estar humano e espiritual dos outros, a exemplo de Cristo, sobretudo alunos, estudantes, ajusta-se, no meu caso, como uma luva na mão, como a ACP. O mandamento “amar ao próximo como a si mesmo” não constitui, acaso, o pano de fundo dessa visão humanista? Desde que a descobri, hesitantemente, pelos de 1955, me sinto mais feliz, mais realizado: primavera de mais flores e de novo colorido.
Jornal da ACP: Então considera que amar é sinônimo de aceitar, de considerar positivamente?
Irmão Justo: Nunca me detive a refletir se são sinônimos ou não: sei que o verdadeiro amor ao ser humano, sobretudo ao que luta por ser melhor, por sair de conflitos, facilita as atitudes terapêuticas rogerianas.