Georges Daniel Janja Bloc Boris
*Texto publicado na Revista de Psicologia, Fortaleza, 5 (1): pág. 69 a 75, Jan/Jun, 1987.
Resumo
O trabalho trata da falta de consistência teórica das psicoterapias humanistas. Expõe conceitos do filósofo Martin Buber: atitudes Eu-Tu e Eu-Isso, diálogo e encontro. Refere-se às repercussões destes conceitos sobre as psicoterapias humanistas, mais especificamente a exacerbação dos aspectos vivenciais e o conseqüente empobrecimento teórico destas abordagens. Propõe uma retomada do estudo da fenomenologia e do existencialismo à luz de Edmund Husserl, Maurice Merleau Ponty e Martin Buber.
ABSTRACT
A Reflection about Theoretical Consistency of Humanistic sychotherapy
The work is about the lack of theoretical consistence of the humanistic psychotherapies. It exposes the philosopher Martin Buber’s concepts: Thou and I It attitudes (Buber, 1965), dialogue and encounter. The work also refers to these concepts repercussions, more especially the exacerbation of the experiencial aspects and the consequent theoretical impoverishment of these approaches. It proposes a retaking of the study of phenomenology and existencialism in the light of Edmund Husserl, Maurice Merleau Ponty and Martin Buber.
O objetivo deste trabalho consiste em contribuir com uma reflexão a respeito de algumas argumentações freqüentemente feitas contra as psicoterapias humanistas no que se refere a uma possível falta de consistência teórica e científica, atribuindo-Ihes como metodologia simplesmente a subjetividade e a intuição.
Sendo psicoterapeuta já há alguns anos, tenho me perguntado acerca destas questões. Ate onde estas críticas são válidas? Em que medida as próprias abordagens humanistas têm contribuído para com a falácia sobre sua acientificidade? O que é e como deve ser a relação psicoterápica nestas abordagens? São estas algumas das questões que se pretendem tratar aqui.
Mais recentemente, no exercício do magistério superior, ao abordar questões relativas à fenomenologia, ao existencialismo a ao humanismo, venho travando contato com o pensamento marcante de Martin Buber, que parece iluminar com suas idéias as colocações que se seguirão.
Após uma breve apresentação de dados gerais sobre o pensamento de Buber, são expostas suas principais contribuições, especialmente aquelas que se servem à psicoterapia. Seguem-se considerações acerca das prováveis repercussões sobre as psicoterapias humanistas, basicamente a cisão encontro x teorização e, finalmente, algumas propostas de solução no sentido da consistência técnica para a realização da psicoterapia.
1. AS ATITUDES BÁSICAS DO SER HUMANO
A obra de Buber é marcada essencialmente pela busca do sentido da existência humana, visando ao resgate da sua responsabilidade pela construção de um mundo mais condizente com este sentido humano. Buber baseia suas indagações no diálogo, considerado por ele como a categoria existencial por excelência, propondo a compreensão da realidade humana através do prisma do dialógico, ou seja, do vínculo entre a experiência vivida (ação) e a reflexão (pensamento). Suas reflexões partem, portanto, das experiências vividas, que adquirem assim um alcance político, pois o diálogo é a base da formação das comunidades humanas, deixando de ser, conseqüentemente, um mero conceito abstrato, para descrever uma experiência concreta (Zuben in: Forghieri, 1984).
Buber (1977) afirma existirem duas atitudes básicas, duas formas de existir ou de ser-no-mundo, que alternam-se ao longo da existência humana: as atitudes Eu-Tu e Eu-lsso. Não se tratam de dois tipos de homem, mas duas posturas presentes em todos nós, em nossa relação com o outro, com as coisas e com o mundo.
Na atitude Eu-Tu, o homem integra-se completamente com o mundo, numa totalidade caracterizada pelo envolvimento, pela integração dos opostos, desaparecendo as peculiaridades e contradições individuais. O Tu não necessariamente é uma pessoa, podendo referir-se a animais, elementos da natureza, obras de arte ou divindades.
Podemos caracterizar como aspectos essenciais referentes à relação Eu-Tu (Zuben in: Forghieri, 1984):
a) reciprocidade: trata-se de uma dupla ação mútua entre os parceiros da relação. Cada pessoa-sujeito pressupõe a existência da outra, pois a ausência de uma delas põe fim à inter-relação, à reciprocidade. É nas relações humanas que a reciprocidade atinge o máximo de intensidade.
b) presença: ou o momento da reciprocidade. É esta presença que garante a alteridade, a diferença entre o Eu e o Tu, o que propicia o surgimento de um Nós, uma totalidade de pessoas independentes, que se escolhem entre si.
c) imediatez: a relação Eu-Tu ocorre aqui-e-agora, é direta, imediata. Nada se interpõe entre os parceiros (idéias, preconceitos, representações). O Eu se relaciona com a presença recíproca do Tu e não com a sua imagem.
d) responsabilidade: o conceito de responsabilidade deve ser entendido não como um dever ético ou uma obrigação moral, mas como habilidade de resposta (Buber, 1982; Perls, 1977). “A verdadeira responsabilidade se encontra onde há possibilidade de resposta” (Zuben in: Forghieri, 1984, p. 81).
“Responder a quê?” – indaga Buber (1982). “Responder ao que nos acontece, que nos é dado ver, ouvir, sentir” (p. 49). Eu e Tu respondem à situação presente, ao que o outro lhe apresenta. Portanto, responsabilidade pressupõe disponibilidade para estar totalmente com o outro (noção de encontro), pois o homem é um ser-com, um ser de relações (Zuben in: Forghieri, 1984).
Entretanto, a relação Eu-Tu é uma experiência fugaz, rara a difícil. O homem não suporta manter um envolvimento tão intenso constantemente. Ele se afasta, se recolhe e o Tu tende a tornar-se um Isso, permanecendo em estado latente, enquanto possibilidade. Compreende-se, assim, que o Isso não necessariamente refere-se a coisas ou objetos.
Segundo Forghieri ([org.], 1984), o que caracteriza a relação Eu-Isso é a separação, o distanciamento entre o Eu (Egótico) e o Tu (Isso, Ele, Ela). O Egótico afasta-se, lidando com o Isso enquanto objeto do conhecimento a da ação (Zuben in: Forghieri [org.], 1984). Ainda de acordo com Zuben, Buber destaca, entre as modalidades da relação Eu-Isso, a experiência. Trata-se de um relacionamento de certa forma unidirecional entre o Eu (Egótico) e um objeto manipulável (lsso), caracterizado pela coerência espaço-temporal, delimitada e coordenada. O Egótico encerra em si toda a iniciativa da ação, não se voltando para o outro. É a própria atitude científica.
Não se deve encarar a relação Eu-Isso como algo negativo, pois trata-se de uma das atitudes humanas frente ao mundo, que permite-nos apreender as conquistas técnico-científicas da humanidade. É mais duradoura e estável, propiciando ao homem sensação de segurança. Torna-se negativa quando submete o homem, levando-o à decadência de seu poder de decisão, de responsabilidade a de disponibilidade para o encontro. “E com toda a seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem” (Buber, 1979; p. 39).
2. REPERCUSSÕES SOBRE AS PSICOTERAPIAS HUMANISTAS: TEORIZAÇÃO X ENCONTRO
As concepções de Buber sobre o encontro e o diálogo e suas reflexões baseadas nas atitudes Eu-Tu a Eu-Isso propiciaram uma proposta de relação psicoterápica sob um novo prisma (Buber, 1965; Zuben in: Forghieri [org.], 1984). Partindo da experiênciacia concreta, vivida, Buber sugere uma superação do primado da ciência sobre o vivido. Mesmo reconhecendo a necessidade e, mais do que isso, a imprescindibilidadedo conhecimento científico na psicoterapia, a relação psicoterápica deixa de ser um mero vínculo Eu-Isso entre um cientista e seu objeto, para tornar-se um encontro entre duas pessoas, de sujeito-a-sujeito.
Surgindo como uma reação aos métodos das psicoterapias positivistas (dicotomia sujeito-objeto; objetividade; experimentação), as psicoterapias humanistastas tendem a utilizar uma metodologia que se contrapõe à anterior, ou seja, o método fenomenológico: intuição originária ou das essências; intencionalidade e inter-subjetividade; redução ou abstenção fenomenológica (Angerami, 1985).
Adotando a metodologia fenomenológica, pode-se verificar que as psicoterapiashumanistas elegem a atitude Eu-Tu como a forma de relação psicoterápica por excelência. Psicoterapeuta e cliente são cada vez mais compreendidos como duas pessoas, envolvidos numa relação de sujeito-a-sujeito, essencialmente igualitária, baseada na inter-subjetividade, intuição e afetividade.
Por outro lado, a atitude Eu-Isso tende a ser relegada a segundo plano e até mesmo vista como prejudicial, como um vinculo objetivante e frio, onde o psicoterapeuta (cientista-sujeito) age sobre o cliente (objeto manipulável). Cria-se um pudor em relação ao saber científico, como se este propiciasse relações mecânicas e pré-determinadas. Esquece-se que uma das condições básicas para toda e qualquer relação é a alteridade*, a diferença, e que psicoterapeuta e cliente, apesar da semelhança das experiências concretas humanas, são evidentemente diferentes. O cliente busca ajuda profissional e humana, enquanto o psicoterapeuta detém o suposto poder‑saber; o psicoterapeuta oferece um dado serviço e o cliente paga pelo mesmo. Portanto, o que diferencia essencialmente psicoterapeuta e cliente e o saber científico.
Percebe-se, assim, que as psicoterapias humanistas retomam questões básicas para a relação psicoterápica: a atitude Eu-Tu, o movimento dialógico e o encontro. Por outro lado, exacerbando estes componentes, perderam indubitavelmente no que se refere à consistência teórica. Não me parece por acaso que, freqüentemente, tenhamos a impressão (como alguns pensam), de que para se ser um bom psicoterapeuta humanista bastaria ser dotado de intuição, ter disponibilidade para o encontro e afetividade.
Assim, parece ter ocorrido, ao nível das psicoterapias humanistas, uma dicotomia entre o encontro e a teorização, como se estes dois pólos não pudessem e não devessem estar intrincados numa síntese dialética. Em alguns casos, chega-se a certos exageros, caindo-se no chamado “fetiche da vivência” (Drawin, 1985, p. 14) e a relação psicoterápica corre sobre trilhos suspensos no ar, sem a devida fundamentação no terreno teórico.
Que conseqüências advêm de tudo isto para as psicoterapias humanistas? Constata-se inevitavelmente que as psicoterapias humanistas parecem desequilibradas, isto é, assentadas, por um lado, nos aspectos referentes às questões da relação psicoterápica, mas, por outro lado, atrofiadas quanto à consistência teórica.
A lacuna quanto à teorização evidencia-se claramente num dos aspectos mais salientados entre as psicoterapias humanistas: a valorização dos sentimentos. Se esta valorização, na verdade, é positiva, já que nossos sentimentos são os motivadores de nossa ação e, portanto, de nossas mudanças, no entanto, implica, muitas vezes, no que poderíamos chamar de uma fobia ao racional. O cliente, e freqüentemente o psicoterapeuta, são induzidos a agirem a partir apenas de seus sentimentos. Este estado de coisas representa, mais uma vez, uma visão de homem dicotomizada. Reagindo à posição anterior (positivista), que supervalorizava a racionalidade e o pensamento, as psicoterapias humanistas parecem, por vezes, conceber um homem sem cérebro, movido por um coração, mas incapaz de pensar.
Diante desta situação, não bastaria ater-se à constatação e às críticas. É preciso buscar caminhos que nos reconduzam, enquanto psicoterapeutas humanistas, a uma concepção de psicoterapia mais globalizadora e totalizante.
3. ALGUMAS PROPOSTAS DE SOLUÇÃO
O pensamento de Edmund Husserl parece-me um primeiro passo na retomada deste caminho. Face à contraposição entre a especulação metafísica e o raciocínio positivista, Husserl apud Dartigues (1973) propôs uma filosofia nova, que unisse:os dados da experiência o pensamento em sua totalidade + racional = FENOMENOLOGIA (FENÔMENO) (LOGOS)
Um retorno à fenomenologia parece necessário. “É, como dissemos, um postulado da fenomenologia que o fenômeno seja lastrado do pensamento, que seja logos ao mesmo tempo que fenômeno” (Dartigues, 1973, p. 21).
Como se percebe, não basta ficar com o fenômeno como ele nos aparece. É necessário às psicoterapias humanistas um pensar sobre, a reflexão acerca da experiência vivida, para que se dê a compreensão dos fenômenos característicos da psicoterapia.
Um outro passo pode ser representado pela contribuição valiosa de Maurice Merleau-Ponty. De acordo com Rezende (in: Forghieri [org.], 1984), o referido autor propõe alguns critérios concernentes a uma psicologia de inspiração fenomenológica: primeiramente, a psicologia deve ser uma ciência humana, ou seja, partir do próprio homem para compreendê-lo e a seus caminhos. Esta psicologia deve ser estrutural, isto é, deve investigar as diversas experiências humanas, integrando-as em seus vários níveis, formas e mundos. Outro aspecto é seu caráter dialético, reconhecendo a pluridimensionalidade no interior da existência, por oposição ao psicologismo. Um outro critério referente à psicologia fenomenológica é que ela deve ser simbólica, já que o homem é polissêmico, encarnando os seus vários significados. Finalmente, esta psicologia não deve ser apenas existencial, uma teoria sobre o humano, mas um estudo do seu existir concreto.
Retomando Buber, proponho uma melhor compreensão da dialética das atitudes Eu-Tu e Eu-Isso no campo das psicoterapias humanistas. Vale lembrar que o encontro existencial se dá através de dois movimentos (Zuben in: Forghieri [org.], 1984):
- distanciamento: onde o homem (psicoterapeuta) coloca-se frente a frente ao outro (cliente), reconhecendo sua alteridade (diferença), independente de si mesmo;
- relação: quando acontece a presentificação do outro enquanto pessoa.
Em outros termos, já é o momento das psicoterapias humanistas reconhecerem a necessidade de teorização acerca da relação psicoterápica, para que a própria relação e o próprio psicoterapeuta possam estar assentados em bases sólidas. Acredito que só assim as psicoterapias humanistas terão um verdadeiro reconhecimento enquanto abordagens científicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo o que foi dito, quero destacar a necessidade premente, para aqueles que se dedicam às psicoterapias humanistas, de uma considerável dedicação ao estudo não só da filosofia referente à psicoterapia, da fenomenologia, do existencialismo e de questões relativas a abordagens específicas, mas de uma reflexão sobre os relacionamentos psicoterápicos específicos nos quais nos envolvemos. É preciso retomar as bases filosóficas que fundamentam a nossa prática psicoterápica, para que nos tornemos verdadeiramente dotados de uma responsabilidade no que se refere a nossos clientes, a nós mesmos, à relação psicoterápica e ao nosso instrumento de trabalho, a psicoterapia.
Encerrando, um alerta. Ao propor uma clara retomada da teorizacão ao nível das psicoterapias humanistas, isto não significa um abandono ou um menosprezo à atitude Eu-Tu, ao encontro e à inter-subjetividade. Omitir este pólo significaria deixarmos de nos denominar psicoterapeutas humanistas, ou seja, não mais reconhecer, como afirma Forghieri ([org.], 1984), que, “em síntese, o psicoterapeuta atua numa alternância entre o conhecimento objetivo e a intuição categorial, entre o Eu-Isso e o Eu-Tu, entre o passado e a presentificação, entre o raciocinar e o existir como totalidade, entre o agir sobre o cliente e o ser-com ele” (p. 30).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977.
_____. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.
DARTIGUES, A. O que É a Fenomenologia. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, 1973.
DRAWIN, C. R. Ética e Psicologia: Por uma Demarcação Filosófica. Psicologia, Ciência e Profissão, 5 (2), p. 14-17, 1985.
FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984.
PERLS, F. S. Gestalt Terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977.
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ZUBEN, N. A. Diálogo e Existência no Pensamento de Buber in: FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984, p. 71-85.