Textos

O atendimento à criança: Uma proposta humanista relacional.

Juliana dos Santos Lopes[1]

INTRODUÇÃO:

Ao iniciar minha prática profissional de atendimento psicoterápico à criança deparei-me com alguns desafios. Desde o princípio pretendia atendê-las baseada nas concepções da Psicologia Humanista, acerca de relação terapêutica. Embora não deixasse de considerar as contribuições da psicanálise para compreensão do processo de desenvolvimento e constituição da identidade, em minha atuação queria seguir os ensinamentos de Carl Rogers. Considerar a pessoa e não o problema, o vivido no aqui-e-agora, na relação única que se estabelecesse entre a pessoa da criança e a pessoa do terapeuta.  Assim, o primeiro desafio envolvia uma mudança de postura: Era necessário sair “de trás” da mesa, ou seja, sair do lugar investigativo e avaliativo proposto pela prática diagnóstica. Tratava-se de iniciar um processo psicoterápico com a criança, centrado na pessoa dela e no que ela estaria vivenciando de significativo no encontro comigo. Era então um lento caminhar em direção a um encontro profundo com a pessoa da criança e com a minha própria pessoa, ou mesmo minha própria criança.

Tal postura implicava em fazer o que Husserl chamou de “suspensão fenomenológica”. Colocar entre parênteses, hipóteses, conceitos, pré-conceitos, sintomas, queixas e rótulos acerca daquela criança, para então me deparar com a “pessoa” que ali se encontrava. Abrir mão, aos poucos, da “pseudo-segurança” obtida através das técnicas, métodos, testes, mesa, cadeira, tudo que pudesse ser interposto entre o terapeuta e o cliente, ofuscando o que, para mim, é o essencial: a relação terapêutica. Rogers (1977) nos ensina que, é a partir de uma relação humana dotada de certas condições favoráveis a aceitação de si e ao pleno desenvolvimento que um processo de mudança interna, visceral pode se instaurar. Isso caracteriza uma psicoterapia. Nesse tipo de relação, deve acontecer um encontro profundo onde me aproximo o mais possível do fluxo experiencial daquela pessoa que ali está, a fim de oferecer-lhe uma compreensão empática desse vivido. Assim, é preciso confiar na sabedoria advinda desse encontro. Foi um processo lento, mas constante. Os resultados dessa postura vêm ratificando cada vez mais as minhas concepções sobre um processo terapêutico humanista e relacional no trabalho com crianças.

Para se falar em atendimento psicoterapeutico de crianças é preciso adotar também uma determinada concepção do que é criança. Parto do pressuposto que: A criança é uma pessoa em desenvolvimento. Possui em si todos os instrumentos que a possibilita evoluir e desenvolver-se e uma tendência a utilizar tais instrumentos, desde que lhe sejam dadas condições favoráveis para tanto. Estrutura sua identidade na relação afetiva com os adultos de referência. Nos primeiros anos de vida, sua principal via de relação com o outro e experimentação do mundo é basicamente o corpo e a comunicação não-verbal. Diferencia-se do adulto não em status, mas em experiência e consciência de vida, percepção de si mesmo e do mundo. Assim, a mesma consideração e respeito que precisa existir na relação com o adulto para que essa se torne terapêutica é necessária quando se trata de uma criança. Essa proposição parece óbvia, mas quando observamos determinadas atitudes adotadas na prática clínica com crianças, verificamos o quanto podemos nos surpreender com a concepção do profissional e seu efeito na prática.

Além disso, a criança está numa fase especial de constituição de sua identidade, fase essa que demanda determinas formas de relação, que favoreçam a sua evolução. Por exemplo, a necessidade de afirmação de uma criança de três anos, aparece geralmente como uma crise de oposição ao poder do adulto sobre ela. É preciso no atendimento identificar tal necessidade e favorecer-lhe o exercer de seu próprio poder, de escolha. Ainda que ela decida por não brincar de nada naquele dia. Ressaltando-se que esse momento em seu processo evolutivo, não necessariamente equivale ao desenvolvimento cronológico.

A PROPOSTA HUMANISTA E RELACIONAL

Rogers (1977) nos esclarece, que para que um processo terapêutico seja desencadeado são necessárias algumas condições:

1. Que duas pessoas estejam em contato

2. Que a primeira pessoa, que designaremos o cliente, se encontre num estado de desacordo interno, de vulnerabilidade ou de angústia.

3. Que a segunda pessoa, que designaremos como terapeuta, se encontre num estado de acordo interno – pelo menos durante o decorrer da entrevista e no que se relaciona ao objeto de sua relação com o cliente;

4. Que o terapeuta experimente sentimentos de aceitação positiva incondicional a respeito do cliente.

5. Que o terapeuta experimente uma compreensão empática do ponto de referência interno do cliente

6. Que o cliente perceba –mesmo que numa proporção mínima – a presença de 4 e de 5 isto é, da consideração positiva incondicional e da compreensão empática que o terapeuta lhe testemunha.

Pois bem, durante o atendimento a criança, por muitas vezes me esbarrava no estabelecimento dessa primeira condição: o contato. Com adultos, priorizamos basicamente para estabelecer um contato, a  comunicação verbal. A palavra torna-se tanto o meio de acesso, (a escuta) quanto o instrumento de intervenção no processo terapêutico. Mas ao atender crianças fui percebendo que essa não era a principal via de acesso a elas. Já sabia que se comunicavam através do brincar, do desenho, mas também percebia  que se comunicavam de inúmeras outras formas. Foi nesse momento que se deu meu contato com uma outra forma de comunicação e intervenção a comunicação não-verbal e a proposta relacional.

Bem acho importante contar uma breve história desse encontro com a psicomotricidade relacional. Quando iniciei minha prática clínica com crianças em uma creche, atendi uma menina com seus 6, 7 anos, que praticamente não utilizava da comunicação verbal, quando a utilizava parecia-me desconectada da realidade. Joana[1] parecia não estar ali. Minhas intervenções compreensivas pareciam não acessa-la. Era como se ela estivesse num outro nível de comunicação pré-verbal! Através de sua postura corporal, da forma como usava os objetos, ela mostrava quem e como ela era. Comecei a usar, de forma um pouco intuitiva, meu corpo, os gestos, o olhar o brincar para me comunicar com ela. Certo dia, ela veio pra sessão extremamente agitada. Eu tinha a impressão de que ela estava espalhada na sala, movimentava-se sem parar e sem objetivo, com um tom de angústia crescente. Meio intuitivamente, peguei uma caixa de lego e espalhei pelo chão… ela parou estática olhando para aquilo. Sentei no chão e aos poucos fui juntando cada peça em meu colo, com cuidado… Ela sentou-se entre minhas pernas e também foi juntando… foi se juntando e quietando… Apoiou-se em mim e se conteve. Quietou-se. Foi um momento de encontro profundo com aquela menina espalhada, angustiada… Ela foi compreendida empaticamente ali, de forma não-verbal. Logo em seguida, saiu do colo e foi brincar, dessa vez mais organizada começava a brincar comigo, como se fosse um prolongamento meu. Foi por meio dessa modalidade de comunicação que tive acesso a ela, que consegui estabelecer um contato, um encontro verdadeiro, significativo.

Quase que paralelo a essa experiência, conheci por meio de uma profissional mais experiente no atendimento às crianças[1], um grupo de evolução pessoal vindo da Itália que fazia uma formação em Psicomotricidade Relacional. Fui conhecer e achei incrível e estranho ao mesmo tempo. Uma semana de vivência (Sensibilização), onde a proposta era brincar com alguns objetos não estruturados e uma das poucas regras explícitas era, durante o brincar, não se usa a palavra. A princípio, parecia tudo muito solto, mas ao mesmo tempo via uma seriedade, uma coerência lógica nas intervenções.  Saí dessa semana, com a certeza de que havia encontrado uma forma de compreender aquela via de contato com a criança. A comunicação não-verbal. Essa é a proposta da Psicomotricidade relacional. Ou seja, a escolha da forma de trabalho, partiu do vivido do experienciado pra só depois ser elaborado teoricamente.

Não pretendo entrar muito na elaboração teórica da proposta relacional, uma vez que não é esse o objetivo do texto. Basta que se tenha em mente de onde vem a psicomotricidade relaciona e para onde vai essa proposta:

PSICOMOTRICIDADE TRADICIONAL: Baseada na concepção que desenvolvimento motor e psíquico estão intimamente ligados, visa favorecer a experimentação corporal através de jogos, exercícios, técnicas de organização do esquema corporal, para percepção de si no espaço, no tempo e no mundo.

PSICOMOTRICIDADE RELACIONAL (André Lapierre – Ed. Física):

·         Descoberta de fenômenos relacionais vivenciados pelas crianças durante a execução de exercícios psicomotores;

·         Contato com as idéias de Rogers sobre grupos de Encontro. (noção de livre experienciar e não-diretividade)

·         Mudança na forma de propor os  grupo de psicomotricidade. (jogo espontâneo, material não estruturado, livre experienciar);

·         Intervenções priorizando a relação adulto/criança (autoridade, sexualidade, afetividade, agressividade)

Busca de compreensão dos fenômenos surgidos por meio da psicanálise.

Psicólogos de orientação mais  psicanalítica. (Esteban Levin, Suzana Cabral, outros).

·         Principalmente a Psicanálise Lacaniana

·         Enfatizam a interpretação  dos fenômenos;

·         Uso da palavra como principal via de intervenção;

·         Compreensão basicamente psicanalítica do processo.

·         Desenvolvimento psicossexual;

·         Estruturas psíquicas;

Jogo espontâneo; Propiciar a associação livre via corpo.

Psicólogos de orientação mais humanista (Mauro Verchiatto, Marta Gonzalez)

·         Enfatiza a relação estabelecida e compreensão empática do vivido.

·         Uso da comunicação não verbal e da relação como via de intervenção a partir do que está sendo vivido e experienciado;

·         Intervenção corporal associada a posterior análise verbal do vivido.

·         Compreensão de processo de desenvolvimento humano enquanto um Eu-Existencial, que se põe no mundo e se constitui a partir da relação com o outro. (Merleau Ponty)

·         Contribuições da psicanálise neo-freudiana. Noção de desenvolvimento psicoafetivo. (Margareth Malher) de espaço e objeto transicional (Winnicott)

Jogo espontâneo, livre experienciar do objeto, do outro. Coloca uma estrutura no trabalho de Lapierre, acrescenta uma concepção de processo de desenvolvimento e projeto de intervenção.

Em Belo Horizonte, a proposta da psicomotricidade relacional de orientação humanista,  foi desenvolvida em seu aspecto educativo por Maria Dinah Meirelles[1],  com seus trabalhos em creches e escolas infantil e de Nilda Maria Ribeiro, que em seu viés clínico propõe o termo Psicoterapia Relacional à sua forma de trabalho, para falar de um processo efetivamente psicoterapeutico via relação, corpo e jogo espontâneo, desvinculando-se das antigas definições da psicomotricidade tradicional e relacional.

MAS, COMO É ISSO TUDO NA PRÁTICA?

Voltando à definição de Carl Rogers (1977) a primeira condição colocada para que ocorra um Processo Psicoterapêutico, é de que se estabeleça um contato entre duas pessoas. Um contato é um encontro verdadeiro, é uma conexão e uma compreensão da forma de comunicar daquela pessoa.

Tenho compreendido que os primeiros momentos de atendimento à criança envolvem a busca por esse “contato”. Estabelecer contato, comunicar-se, é bem diferente de fazer um rapport, “deixar a criança à vontade”. Trata-se de buscar uma comunicação com a pessoa que está por traz do sintoma, das defesas. Há naquela criança que esperneia no colo da mãe, para não entrar na sala do terapeuta, uma pessoa. Que talvez, tenha medo de entrar, que talvez conheça apenas essa forma de se comunicar, ser vista, que talvez precise da birra para sair da relação fusionada, ou para manter-se nela. Mas, enfim, uma pessoa, que se põe no mundo daquela forma. Assim, no caso da criança esse contato precisa passar pela sua modalidade específica de comunicação, que é basicamente a comunicação não-verbal. A criança utiliza-se do corpo para se comunicar, para se colocar no mundo. De acordo com Ponty (1984) “O corpo é o ser no mundo do homem”. Para esse autor, o corpo é a primeira via por meio da qual a criança entra em relação com os outros é essa a primeira via de comunicação, anterior a linguagem verbal. Trata-se da interação através do corpo, das posturas corporais, do diálogo tônico conforme nos ensina Wallon (1962). Essa é a chamada comunicação não-verbal. É através desse tipo de comunicação que se inicia o processo.

Portanto, ao atender uma criança, se faz necessário que sejam estabelecidas Condições Facilitadoras dessa modalidade de comunicação.  Essas condições podem ser entendidas, tanto do ponto de Vista Externo: estrutural, quanto do Ponto de vista interno: relacional. Quando falo de um ponto de vista estrutural, estou me referindo a uma estrutura física que ofereça ao terapeuta condições seguras de trabalho. Oferecer à criança um ambiente seguro, um espaço físico de atendimento adequado à uma criança, à sua forma peculiar de comunicação e expressão. Esse ambiente possui algumas peculiaridades. Tenho observado que móveis em excesso, peças de decoração e outros materiais desnecessários, muitas vezes se interpõem a relação terapeuta criança. Fazem com que este precise se ocupar mais com os limites relacionados ao ambiente, (pode isso, não pode aquilo, cuidado com isso etc), do que se voltar para o que haveria de essencial no início de um processo terapêutico, ou seja, a qualidade da relação estabelecida com a pessoa da criança. Rogers (1977) coloca que é necessário que se estabeleçam condições favoráveis para que o organismo possa liberar-se e permitir a plena realização da tendência a atualização. Penso que, estas condições também precisam ser favoráveis para o terapeuta. Ele precisa estar seguro quanto ao ambiente não precisando se ocupar diretamente com outros objetos durante a vivência.

Do ponto de vista relacional, falo da disponibilidade pessoal para receber uma criança. Da aberturam para estar com ela. Como já disse meu objetivo não é avalia-la, investigar ou observar seus sintomas, diagnosticá-la, mas sim, encontrá-la, conhecer a pessoa que está ali sua forma de comunicar-se. Assim, nas primeiras sessões, procuro voltar toda minha atenção para a pessoa em sua unicidade, o que a caracteriza, o que a diferencia dos demais. E também em sua universalidade, aquilo que é característico do processo de desenvolvimento humano de qualquer pessoa. Assim, minha ênfase é na relação.

1. Conhecendo a pessoa/criança.

Num primeiro momento, buscarei conhecer como ela se coloca no mundo. Para isso utilizo-me não só da escuta através da fala. Mas da escuta possível através de meus olhos, escuto seu posicionamento através do corpo. Da escuta que faço de meu próprio ser em relação com aquele outro ser. Escuto as sensações, emoções que vêm surgem ao estar com ela. Assim busco compreender e conhecer: Como ela lida com o espaço? Se é expansiva, “espalhada”, contida.  Como ela temporaliza? Vive um tempo próprio, se perde no tempo, adapta-se ao tempo da realidade, transgride, submete-se a ele em excesso. Como se relaciona comigo? Um parceiro de jogos e brincadeiras? Uma autoridade a obedecer ou a enfrentar? Fica à espera de comandos? Submete-se a meu desejo, ou assume logo o comando das brincadeiras, coloca e inventa as próprias regras? Busca o contato mais afetivo, corporal mais regressivo, ou mais afirmativo? Ou é mais distante, foge do contato? Como se relaciona com os objetos?­ Que uso faz deles, como meio de comunicação, como objeto transicional, como objeto simbólico. Enfim, como é sua existência, como se coloca no mundo.

Paradoxalmente, para compreender todas essas coisas é necessário desligar-me dessas coisas e centrar na relação. É na relação que a pessoa da criança se manifesta. Assim, é necessário deixá-la livre. No sentido de permitir-lhe experienciar aquele espaço, aquele encontro, da forma dela. Acompanhando-a num primeiro momento, adaptando-se a seu ritmo pessoal, até chegar a compreensão de suas necessidades psicoafetivas, ela dá a guia, ela apresenta o ritmo do processo. Assim, se uma criança chega, se relacionando basicamente no nível intelectual, desconectada do nível emocional, utilizando-se de jogos estruturados, no caso da psicomotricidade, próximo á atividade de educação física, é preciso buscar estabelecer o contato com ela a partir daí, para gradativamente ir propondo formas de brincar, mais próximas do lúdico e do experienciar corporal. Por outro lado, se ela chega em silêncio, à espera de ordens e comandos, é preciso talvez oferecer-lhe algumas guias, mostrando-lhe possibilidades de uso do material, sem no entanto determinar o que deve ou como deve fazer.

O primeiro momento é um momento de conhecê-la, sem  ocupar-se do que virá depois. À medida que se estabelece esta comunicação autêntica. Nesse momento procuro comunicar conforme é proposto por Rogers, mas por meio de posturas e atitudes relacionais: a) que a recebo como ela é e a aceito como ela é. Estou disponível para ela; b) que ela tem um valor enquanto Ser único .c) que a sua forma de ser Pessoa, tem um valor. Paralelamente e, sempre na medida do necessário. Buscarei dar-lhe a segurança do que é jogo e do que é real. Oferecendo-lhe limites basicamente para a integridade física e emocional das pessoas envolvidas: criança e terapeuta. (horários, momento de brincar, momento de parar a brincadeira, etc).

Após esse primeiro contato, faz-se necessário facilitar a sua comunicação, que entendo se dá no brincar. Nesse sentido, concordo plenamente com Winnicott quando afirma que:

“A Psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar, para um estado em que o é”.(Winnicott, 1975. p59).

2. Facilitando a comunicação através do brincar

Esse ambiente facilitador vai sendo percebido aos poucos pela criança, gradativamente ela mostra sua forma, sua existência. Penso que: O segundo objetivo do terapeuta então deverá ser o de facilitar “o brincar”. É no brincar que a criança se mostra verdadeiramente como ela é, vivencia e elabora suas emoções e conflitos. É preciso ajudá-la a colocar cor na brincadeira, dar vida ao seu brincar, encontrar-se ou reencontrar-se com seu espaço ‘potencial’. Ou mesmo ajudá-la a descobrir o brincar “de verdade”.

Mas como posso saber se a criança está “brincando e verdade” ?

Quando está inteira no que está fazendo. Desligada do mundo externo, mas ao mesmo tempo ligada, presente e viva ali na brincadeira. Quando surge um colorido emocional na sua brincadeira, alegria, medo, excitação, desejo. Quando experimenta prazer, é divertido. Quando acrescenta conteúdos ao brincar. Quando utiliza o terapeuta como um parceiro “simbólico” na brincadeira. Brinca com ele e não pra ele.

Para facilitar o brincar, é preciso que o terapeuta reencontre  seu “espaço potencial” conforme nos ensina Winnicott, o seu jeito de brincar, seu lado lúdico, pré-verbal. Encontre o prazer de se relacionar com aquela pessoa que está ali, através da brincadeira. Abra mão temporariamente de sua forma de relação formal, de sua comunicação racional, convencional e busque uma comunicação no nível da criança. Brincar “de verdade” precisa ser “gostoso” para ambas as partes.

2.1. E quais são as dimensões desse brincar?

Quando brinca “de verdade”, a criança traz o seu “Eu” através do corpo. A forma como se coloca no mundo. O mundo, no espaço terapêutico, é um mundo analógico. Seria a sala, os objetos, os limites concretos de tempo e espaço. Ela irá trazer o seu “Eu” em relação com esse mundo mostrando ali: os espaços que ocupa, ou não; os objetos que escolhe e a forma como escolhe utilizá-los; seus limites corporais; os limites que estabelece, ou não na relação com o outro. .

Ao brincar com o terapeuta, a criança apresenta-se como ela é em relação o adulto, figura de autoridade e fonte de afeto (de tudo aquilo que possa afeta-la, negativa ou positivamente). O tipo de relação que estabelece, a forma como lida com esse adulto e com sua disponibilidade, sua autoridade, seus limites. Tudo isso só aparece quando a criança sente-se livre para brincar com ele.

3. Uma concepção de desenvolvimento humano

Após esses primeiros momentos do processo, que podem durar algumas sessões, começarmos a ter uma noção sobre como se deu o seu processo de desenvolvimento psicoafetivo. Ou seja, como sua identidade foi se configurando, à partir das relações com o outro e com o mundo.  Podemos afirmar que é a partir das relações afetivas que a criança vai estabelecendo com as pessoas significativas, com os objetos e com o mundo que ela vai constituindo sua forma de existência atual que, conseqüentemente lhe dirá da sua existência quando adulta. Segundo Margareth Mahler (1977), o desenvolvimento psicológico da criança, é o que vai fazer com que ela saia gradativamente de seu mundo interior, de uma relação de dependência e simbiose, para uma relação de autonomia e individuação em direção ao mundo exterior.

Compreendo que esse desenvolvimento ocorre em fases de organização e constituição de um sentido de identidade. Ribeiro (2003) sugere que o processo de formação da identidade da criança segue um percurso que vai gradativamente, do sentido de identidade humana até a integração de uma identidade espiritual que pode ser resumido da seguinte forma:

Identidade Humana – Sentido de existência: Desenvolvido nas primeiras relações mãe/bebê. Vínculo, chamada pra vida. Vivência de fusão e contenção, prazer de existir.

Identidade Filial: Senso de merecimento. Sentir-se cuidado. Ser alguém significativo para outros seres humanos. Sentir-se digno de fazer parte.

Identidade Pessoal: Afirmação de si como uma pessoa diferente daquela que cuida dela. Ser só e poder estar só.   Como uma pessoa tem um certo poder sobre sua vida, confronto com o querer do outro e com a realidade. “Sou alguém que pode”. Vivência de limites pessoais.

Identidade Sexual: Identificações com figuras parentais,  relaciona-se com iguais e diferentes e percebe-se menino ou menina. O que é típico do masculino, o que é típico do feminino. Ser em relação com o sexo oposto, intimidade, entrega.Vivência edípica.

Identidade Social: Descobre até onde ir com o outro e no mundo.Diversificação de papéis. Sentir-se alguém na sociedade.

Identidade Espiritual: Busca da transcendência. Sentido da existência, comunhão com o espiritual. Integração com o universo.

Para Ribeiro (2007) “todos os aspectos da realidade humana estão intrinsecamente ligados e são co-existentes durante todo o desenvolvimento”. Ribeiro postula que o desenvolvimento dessa última identidade, a espiritual, está apoiado em nossa história de vida e na forma como desenvolvemos nossos potenciais em cada etapa desse processo de desenvolvimento.

CONCLUÍNDO

A partir dessa compreensão buscaremos elaborar um projeto de Intervenção, que visa facilitar a retomada do pleno desenvolvimento dessa criança, facilitar a vivência de seu processo pessoal através de vivências de afirmação e regressão. Experimentando a própria agressividade, afetividade, relação com a autoridade, sexualidade, afetividade. Retorna etapas de seu desenvolvimento para melhor elabora-las numa nova relação com o adulto, disponível a atender suas necessidades psicoafetivas e relacionais.

O percurso que se segue a esse primeiro momento, no entanto, é ilimitado. Pois é a criança que mostrará o caminho. É a especificidade de cada criança como ser único, inserida em uma determinada relação família e contexto social, que nos mostrará os caminhos a seguir. No entanto, vale ressaltar, que precisamos ter em mente o objetivo do trabalho, a fim de não nos perdermos nessa caminhada. Ou seja, como nos afirma Rogers, o objetivo de uma psicoterapia deve ser em última análise. Favorecer e facilitar o pleno desenvolvimento da pessoa humana.

Referências Bibliográficas:

ROGERS, Carl. R. & KINGET, G. Marian. Psicoterapia e Relações Humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva.2a. ed. Belo Horizonte, Interlivros, 1977.

PONTY, Merleau. As relações com o outro na criança. Belo Horizonte. SEGCP/Imprensa oficial, 1984.

WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WINNICOTT. D.W. O brincar e a realidade.  Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1971.

MAHLER, Margaret S. O nascimento psicológico da criança. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977.

RIBEIRO, Nilda Maria.  A evolução da comunicação na criança.  Apostilas do curso de formação em psicoterapia relacional, Belo Horizonte, 2007.

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