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A liberdade no crescimento do indivíduo e nas suas vivências psicossociais.

Edson Rocha Bomfim

“Quando uma pessoa me procura, perturbada por
sua combinação única de dificuldades, constatei
ser muito válido tentar criar uma relação com
ela na qual esteja segura e livre”
(in Tornar-se Pessoa, de Rogers).

Sempre tive interesse pelas ciências do conhecimento humano que se encontram estruturadas na necessidade de compreensão e, principalmente, de valoração da pessoa na sua ambientação social. Devo isto ao surgimento de uma motivação profissional direcionada para a conquista, preservação e aprimoramento de um sistema organizado que propicie a garantia dos direitos fundamentais e assegure, de forma prioritária, o respeito ao indivíduo e principalmente a sua liberdade. No entanto, com o passar do tempo, a experiência convenceu-me de que, em se tratando de “liberdade”, não se pode proceder a uma análise parcial do conhecimento alcançado pelo homem moderno porque, como sustento, as ciências políticas, humanas e sociais se completam quando a “liberdade” é desejada por todos como forma de realização interior de bem-estar. Com essa visão temos dois desafios: o da necessidade de conhecer os tipos de “liberdade” que o indivíduo poderá vivenciar; e o de saber quando se efetiva a sensação de “liberdade plena”. Quanto ao último, a contribuição da Psicologia tem sido valiosa, merecendo referência especial o psicólogo americano Carl R. Rogers.

A Liberdade nas nossas vivências.

Todo indivíduo nasce e existe para ser livre. O sentimento nato de liberdade é, na essência, de origem existencial. Na condição de “ser pensante”, possuidor de inteligência, sua capacidade psíquica é fonte inesgotável de “comandos de vontades” e de estímulos de sensações que precisam ser satisfeitas, porque representam espécies de “estados de necessidades” que são indispensáveis ao alcance do nosso crescimento. Esses “comandos de vontades” correspondem, na concepção de Rogers sobre a Abordagem Centrada na Pessoa, à noção de “tendência atualizante” pela qual – “Todo o organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento”. Ocorre que o crescimento de cada indivíduo nem sempre depende apenas da satisfação dessas necessidades interiores, porque também existem situações de vivências coletivas que estão associadas ao atendimento das necessidades dos outros indivíduos. Por sua vez, no processo de socialização que naturalmente expõe o indivíduo a uma diversidade de interações de comportamentos (objeto de estudo da Psicologia Social), é importante a presença do Estado organizado garantindo os direitos individuais e os direitos sociais. Do elenco dos direitos individuais previstos na Constituição, no meu entender, o que mais enseja uma análise de natureza psicológica é o “direito à liberdade”. De início, deve-se diferenciar o exercício da “liberdade individual”, daquela “liberdade” que repercute nas nossas interações de vivências coletivas: (a) Nas vivências de relações interpessoais que estão sujeitas apenas ao predomínio da efetivação da “liberdade individual”, a abrangência da nossa noção de “exercício de liberdade” fica restrita à satisfação de uma condição psíquica de “autodeterminação” que se manifesta de acordo com os independentes estímulos de “comandos de vontades” originários de estados interiores de sensibilidade e, também, de percepções emocionais representativas das exteriorizações de todas as nossas “ações” e “omissões”. (b) Nas relações do indivíduo que envolvem o Estado, o exercício da “liberdade individual” fica condicionado à observância de uma prevalência de proteção de valores e interesses sociais que, na nossa Constituição, qualificam os direitos sociais. Assim, o “direito à liberdade” que o Estado assegura a cada indivíduo, apresenta-se disciplinado pela necessidade de aceitação de um “princípio de direito” pelo qual a todos são conferidas oportunidades de “poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem”. Verifica-se, portanto, que esse “princípio de direito” contém uma regra geral de conduta que deve ser obedecida sempre que a nossa “liberdade individual” interage com o exercício da “liberdade” dos demais integrantes da sociedade. Além disso, ele sugere uma “aparente limitação” no exercício da “liberdade” ao dispor que ninguém poderá ser prejudicado pelas nossas ações de “liberdade”. Por esta razão, entendo que toda “ação” do indivíduo (isolada ou em grupo) somente poderá ser considerada plenamente “livre” quando não há qualquer espécie de impedimento que impeça a sua efetivação e principalmente quando não prejudicar outra pessoa. Isto é aceitável nas nossas vivências psicossociais, justamente por causa da necessidade de manter-se, no Estado organizado, uma supremacia de respeito aos valores coletivos e aos interesses sociais que estão juridicamente tutelados. Nessa perspectiva, reveste-se de importância a previsão constitucional do “princípio da igualdade” e a do “princípio da legalidade”. O primeiro, estabelecendo que “todos os brasileiros ou estrangeiros residentes no País são iguais perante a lei”, sendo-lhes garantido, dentre outros direitos fundamentais, o “direito à liberdade” (artigo 5º, caput, da Constituição). Por sua vez, pelo “princípio da legalidade”, proporciona-se a todos os indivíduos as condições básicas para ser mantida a estabilidade de um processo de socialização que atenda os ideais de “liberdade social” e consolide um sistema de absoluto respeito à lei pelo qual o “direito à liberdade” está assegurado através da seguinte regra de conduta: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º,II, da Constituição). Como se observa, em face da aplicabilidade obrigatória do “princípio constitucional da legalidade”, também poderá ser imposto ao exercício da “liberdade individual” um outro tipo de “limitação” (agora, de “ordem legal” e não “aparente”). Por exemplo: em face do “princípio da legalidade”, poderá surgir uma lei que obrigue a todos “fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. Digamos que essa lei estabeleça que “a partir de tal data” será proibido “fazer algo”. Diante dessa proibição legal qualquer indivíduo, mesmo contra a sua vontade, deverá obedecer a lei. Ocorre que todos nós temos a “liberdade” de optar pelo “desrespeito” à lei ficando, em conseqüência, sujeitos às sanções cabíveis (livre-arbítrio). Abstraindo-se a análise das implicações decorrentes da decisão de não se respeitar a lei, sustento (apoiado apenas em considerações de natureza psicológica) que essa imposição proibitiva da lei tem o efeito de gerar na nossa “realidade interior”, uma espécie de restrição ao exercício pleno da “liberdade individual” que reflete no nosso psiquismo (que, segundo Rogers, pode influenciar alguma das nossas “tendências atualizantes”). Isto porque o indivíduo, em razão de um agente externo e contrário a sua vontade (a proibição da lei), “deixará de fazer algo” que gostaria de “fazer”, mas que pela lei passou a ser proibido. O mesmo acontece quando a lei determina que “a partir de tal data” teremos que “fazer algo” que não gostaríamos de “fazer”. Em nenhuma dessas hipóteses de intervenção da lei poderá se cogitar da “liberdade plena”. Isto porque o exercício da “liberdade” somente poderá ser tido como “pleno” quando não existir qualquer interferência externa que seja oposta à manifestação da vontade do indivíduo, ensejando, assim, a satisfação emocional das suas necessidades. A “liberdade plena” pressupõe, portanto, a viabilidade da consumação final de um resultado que é alcançado pelo indivíduo em harmonia com os seus impulsos de preferências emocionais e, também, em harmonia com os seus estímulos de necessidades interiores.

Feita a distinção entre o exercício da “liberdade individual” e o da “liberdade” que está sujeita à proteção dos valores e interesses coletivos, observa-se que nos dois casos podem ocorrer bloqueios psíquicos na satisfação de crescimento do indivíduo. Assim, nas relações interpessoais que não envolvem a atuação de proteção social do Estado, as infinitas interações de vivências psíquicas podem gerar, nos casos de ocorrências de adversidades, o surgimento de conflitos de comportamentos emocionais que, segundo Rogers, refletem no nosso crescimento. Com relação às vivências interpessoais que recebem a participação tutelar do Estado como sendo o ente responsável pela proteção dos direitos sociais, o potencial nato de crescimento do indivíduo (tendência atualizante de Rogers) também é influenciado por uma série de fatores externos de socialização. A respeito, destacou Rogers em entrevista concedida à revista Veja, em 1.977, durante o primeiro Encontro Centrado na Pessoa, realizado na Aldeia de Arcozelo, na cidade do Rio de Janeiro: “(…) o ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se atualizar”; concluindo em seguida: “É claro que todos os fatores sociais, econômicos e familiares podem interromper esse crescimento, mas a tendência fundamental é em direção ao crescimento, ao seu próprio preenchimento ou satisfação”.

A história da Abordagem centrada na Pessoa no Brasil.

A história da Abordagem centrada na Pessoa no Brasil.

Marcia Alves Tassinari

* Trabalho apresentado no VII Encontro Latino Americano da Abordagem Centrada na Pessoa em Maragogi/AL em 1994.

O presente capítulo é uma versão resumida do trabalho que vem sendo desenvolvido desde 1992, coordenado por Márcia Tassinari e colaboradores, dentre eles Yeda Portela. No sentido de atender aos objetivos deste livro, suprimimos alguns anexos, referentes a eventos vivenciais e profissionais, a trabalhos dos Encontros Latino – Americanos, aos Fóruns Brasileiro e Internacional e às monografias, que poderão ser oportunamente enviados aos interessados que solicitarem às autoras.

A pesquisa foi realizada a partir dos depoimentos de profissionais envolvidos há muito tempo com a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) e apresenta informações sobre as associações de profissionais, aqui denominadas de núcleos, os eventos profissionais e vivenciais, o material publicado e os cursos de formação, material que compilamos ao longo dos últimos cinco anos. Nosso objetivo geral era descobrir um fio condutor na massa inicialmente amorfa, que alimentasse as reflexões e apontasse os caminhos que este percurso de 50 anos de prática e teorização da Abordagem Centrada na Pessoa vem delineando. A partir destas reflexões pudemos distinguir quatro momentos:

De 1945 a 1976: Pré – História – Caracteriza-se pela inexpressiva quantidade de eventos e publicações e também pela presença de profissionais trabalhando de forma isolada principalmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

De 1977 a 1986: Fertilização – Seu marco se dá com a vinda de Carl Ramson Rogers e sua equipe (John Keith Wood, Maureen Miller, Maria Constança Villas-Boas Bowen e Jack Bowen) ao Brasil em 1977. Observa-se neste período o entrosamento dos profissionais interessados por esta Abordagem, a organização de vários eventos assim como a criação de núcleos de profissionais. Com a vinda de Rogers e a realização dos primeiro e segundo workshops de grande grupo (Arcozelo – 1977 e 1978), toda a comunidade brasileira teve oportunidade de participar e promover eventos que estimularam o pensamento sistematizado sobre a ACP.

De 1987 a 1989: Declínio – Caracteriza-se por um período de luto com o falecimento de Carl Rogers (EUA, janeiro de 1987) e Rachel Rosenberg (São Paulo, junho de 1987) e, assim como a saída de precursores expressivos (Teresa Dourado, de Recife e Tereza Cristina Carreteiro, do Rio de Janeiro) ou mesmo do meio acadêmico (Lúcio Campos, de Recife). Nota-se principalmente a região sudeste muito abalada por estas perdas, fato evidenciado por poucas realizações de eventos vivenciais e pela extinção de alguns núcleos. Ocorre também uma diminuição significativa na publicação de artigos, livros e teses. Neste período já se observa uma leve ascensão das atividades através da formação de núcleos em estados até então pouco ativos, como Ceará, Paraíba e Alagoas.

Parece que a comunidade centrada necessitou de tempo para superar estas perdas e encontrar sua própria energia para fortalecer seu trabalho. Entendemos que a influência da popularidade de outras orientações terapêuticas (Psicanálises e Terapias Corporais) no meio acadêmico pode ter contribuído também para este declínio.

De 90 em diante: Ascensão/Renascimento – Caracteriza-se por um aumento significativo de formação de núcleos (seis até a presente data), muitos destes formados por ex-alunos dos profissionais da fase da Fertilização; aumento de oferta de eventos vivenciais, de eventos profissionais (mais do que em todas as décadas anteriores), da produção escrita como os trabalhos apresentados nos eventos, de artigos publicados, ainda que poucos livros escritos e editados no Brasil e somente 3 boletins veiculados nessa fase.

Desde o início da década de 90, observa-se o quanto o nordeste desenvolveu e divulgou a Abordagem Centrada na Pessoa, estimulando estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, além daqueles já citados, bem como influenciando outras regiões do país. A partir do Fórum Brasileiro (1996), a comunidade incentivou os profissionais da região Sul, indicando o Rio Grande do Sul como a sede do Segundo Fórum Brasileiro (Canela, outubro de 1997), O próximo Fórum está previsto para 1998 em Minas Gerais. Até a presente data, observa-se pouca representatividade das regiões norte e central.

Para melhor compreensão, as autoras apresentam o material em três partes: núcleos e boletins; eventos e material publicado. Como conclusão, sugerem alguns temas para reflexão.

I. NÚCLEOS E BOLETINS DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA:

Reunimos informações sobre 23 núcleos da ACP, criados desde 1970. São formados por grupos de profissionais interessados no aprofundamento, divulgação e aplicações da Abordagem. A maioria deles foi instituída com caráter de associação sem finalidade lucrativa ou se constituindo como agrupamento informal. Outros núcleos formalizaram suas atividades através da constituição de uma sociedade civil. Alguns criaram seus próprios boletins informativos com publicações de artigos, depoimentos, entrevistas e agenda de eventos

Vale ressaltar que dos 23 núcleos originais, 12 continuam atuantes e dos 9 boletins produzidos, somente três estão sendo veiculados. A média de duração dos núcleos extintos foi de aproximadamente 6 anos, e a dos boletins, de 2,5 anos.

Os núcleos foram surgindo de forma gradativa. Em um primeiro momento foram relacionados oito núcleos na década de 70, quantidade que provavelmente aumentou devido à influência da vinda de Carl Rogers e sua equipe ao Brasil, quando os profissionais puderam trocar suas experiências e estabelecer maior entrosamento entre si. Entretanto, a maioria destes núcleos se extinguiu rapidamente, encerrando seus trabalhos.

Parece ter havido um enfraquecimento dos esforços no sentido de promover o desenvolvimento da Abordagem. Em contraste, o Centro de Psicologia na Pessoa (RJ), fundado em 1975, destaca-se por se manter ativo até os dias atuais, oferecendo cursos de formação de psicoterapeutas, atendimento psicoterápico particular e pela clínica social, organização de eventos nacionais e internacionais, simpósios, palestras, entre outras atividades.

No final da década de 80, surgem outros cinco núcleos em vários pontos do país, a maioria deles editando seus boletins, destacando-se o Núcleo Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa, que organizou e incentivou vários eventos, também publicando ao longo de cinco anos, o Boletim do Núcleo Paulista, de ampla circulação.

A década de 90 marca um outro momento em que se observa a retomada dos trabalhos da Abordagem Centrada na Pessoa. Há interesse em resgatar os seus princípios e valores, cada vez mais necessários na sociedade, fato este que se reflete no surgimento de 10 núcleos, que vêm, aos poucos buscando estruturar o seu espaço para atuar no sentido de enriquecer e disseminar a Abordagem.

II. EVENTOS:

Até a vinda de Carl Rogers e sua equipe pela primeira vez ao Brasil em 1977, pouco se conhecia sobre a prática da Abordagem. Já existiam alguns núcleos formais e informais em Recife, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, que realizavam suas atividades de maneira isolada.

Não podemos deixar de mencionar a presença de Eduardo Bandeira em diversas cidades brasileiras no período que antecedeu a vinda de Rogers ao Brasil. Desde 1974, Bandeira, após ter visitado o Center for Studies of the Person (La Jolla, USA), passou a divulgar filmes que exibiam entrevistas de demonstração de psicoterapia realizadas por Rogers, os quais foram legendados em Português e apresentados em universidades e clínicas de Psicologia. As autoras acreditam que essa iniciativa preparou o terreno para difusão da Abordagem e para que o trabalho de Rogers pudesse ser bem acolhido no Brasil.

J. Wood e M. Miller realizaram atividades de treinamento e de workshops em diversas cidades brasileiras, de 1977 a 1984, “reciclando o conhecimento” da comunidade nacional, influenciando-a.

Os eventos foram separados em duas categorias: Vivenciais e Profissionais, considerando seus respectivos objetivos iniciais. Os eventos classificados como vivenciais têm o objetivo de oferecer uma oportunidade de crescimento pessoal ao público em geral. Por outro lado, os eventos ditos profissionais se propõem congregar profissionais que utilizam o referencial da Abordagem Centrada no Cliente/Pessoa nas suas práticas, visando a troca de experiências e o avanço teórico.

Embora normalmente seja feita esta distinção os eventos profissionais da Abordagem têm contemplado, na sua maioria, tanto as dimensões cognitivas quanto experienciais, independentemente de seus objetivos iniciais.

II.1. Eventos Vivenciais:

A relação dos eventos inicia-se em 1977, quando foi realizado o I Encontro Brasileiro Centrado na Pessoa (Arcozelo I), por iniciativa de Eduardo Bandeira. Este evento contou com a participação de mais de 200 pessoas de todo Brasil, além de uma equipe de facilitadores brasileiros (30), que juntamente com Rogers, Wood, Maria e Jack Bowen e Miller, compuseram o “staff” do primeiro grande grupo brasileiro. O segundo workshop de grande grupo foi realizado no ano seguinte, criando mais uma oportunidade de atualização tendo contado novamente com a presença de Rogers e parte de sua equipe. Durante este workshop realizou-se um documentário, cujo título é: “E tudo é muito importante”, dirigido por Joaquim Assis, cuja cópia encontra-se na Embrafilme e está sendo editada em sistema VHS, para ser apresentado no Encontro do Sudeste, em junho próximo.

Desde 1975, o Centro de Psicologia da Pessoa (CPP) oferece, pelo menos, dois grupos de encontro por ano dirigidos tanto a seus alunos do curso de formação quanto ao público em geral.

Em São Paulo, destacamos a iniciativa de Rachel Rosenberg, que contando com colaboradores, coordenou e realizou a maioria das atividades nesse estado, promovendo workshops de pequenos e grandes grupos, destacando-se os de Pirassununga I e II, Vinhedo, Salesópolis e o I Workshop de Família, congregando também o grupo de Psicologia Humanística.

A morte de Rachel Rosenberg veio abalar não só emocional quanto profissionalmente o percurso da Abordagem no Brasil, especialmente em São Paulo, onde ela orquestrava com sabedoria e dedicação a maioria dos eventos e sua presença brilhava, aglutinando em torno de si colegas e amigos.

De 1988 a 1992, uma equipe inter-estadual realizou oito workshops residenciais de grandes grupos, o que mobilizou muitos profissionais e estudantes de Psicologia, Pedagogia, principalmente. Infelizmente, as informações desses trabalhos não foram sistematicamente organizadas pela própria equipe e a tentativa de se realizar pesquisas e estudos de follow-up não puderam ser concluídas, devido à falta de feedback da maioria dos participantes e à distancia geográfica da equipe facilitadora.

A década de 80 parece ter sido a mais fértil com vivências acontecendo em vários estados do Brasil. Esse fato contrasta com o declínio da produção teórica (artigos, teses, etc.) e a extinção de diversos núcleos neste mesmo período.

Os eventos vivenciais de grande grupo têm sido realizados como uma das atividades dos eventos profissionais (tipo Encontro Latino-Americano, Encontro Nordestino, Fórum Brasileiro). Por outro lado, no período de Ascensão, diversos workshops de pequeno grupo (8 a 30 participantes) têm sido viabilizados em diversas partes do país, destacando-se as regiões nordeste, sul e sudeste. Assim, seria razoável afirmar que os eventos vivenciais “clássicos”, tipos grupos de encontro têm preenchido mais as necessidades dos profissionais “centrados” do que as da comunidade em geral. Pode-se supor que esse pequeno interesse seja reflexo das expectativas da sociedade pós – moderna, voltada mais para vivências de impacto, de efeitos mágicos imediatos. Da mesma forma, acredita-se que os grupos de encontro estão mais voltados para a necessidade de formação do profissional que atua na Abordagem, já que são um terreno fértil para maturação emocional/profissional.

II.2. Eventos Profissionais:

Em relação aos eventos públicos específicos da ACP no Brasil, foi constatado que a maior parte deles ocorreu após a realização do Primeiro Encontro Latino-Americano, em 1983.

Anteriormente, realizavam-se jornadas esporádicas em São Paulo e eventos vivenciais, como workshops abertos ao público em geral, sem o objetivo específico de troca de experiências profissionais.

Os Encontros Latino-Americanos têm grande representatividade na história da Abordagem no Brasil, contando com a presença significativa da comunidade brasileira, quando profissionais discutem seus trabalhos, refletem sobre suas experiências, fortalecendo e criando, cada vez mais, novas possibilidades de aplicação e expansão. Já foram realizados até o ano de 1998, oito encontros, três desses sediados no Brasil. Cabe aqui ressaltar o levantamento realizado por Tassinari e Doxsey (1987) sobre o material escrito e apresentado nesses Encontros, onde os autores classificaram, segundo os temas abordados, todos os trabalhos (do 1º ao 6º Encontro) e desenvolveram reflexões acerca da produtividade teórica na América Latina.

A década de 80 ofereceu vários eventos regionais quando se percebe um amadurecimento dos grupos envolvidos com a Abordagem. Assim, encontramos nesta década a realização de três Encontros Latinos, dois Cursos Avançados, duas Vivências Acadêmicas, seis Jornadas de Psicologia Humanista, três Encontros Nordestinos e três participações nas Reuniões Anuais de Psicologia de Ribeirão Preto, além do Fórum Internacional.

Esses eventos têm prosseguido na década de 90, demonstrando potencialidade dos mesmos como geradores de maior entrosamento dos profissionais e sedimentação dos conhecimentos e práticas. (dois Encontros Latino Americanos, duas Jornadas de Psicologia Humanista, três Encontros Nordestinos, dois Fóruns Brasileiros e um Simpósio Existência e Pessoa, além de pequenos eventos regionais).

II.3. Cursos:

No contexto acadêmico, a penetração da Abordagem no Brasil está se expandindo, ainda que, quando comparada com outras orientações psicológicas, seu espaço seja muito reduzido.

São Paulo teria sido o primeiro estado a introduzir cursos e práticas na ACPP, na Universidade de São Paulo (USP), sob a coordenação de Oswaldo de Barros Santos, que posteriormente com sua ex-aluna Rachel Rosenberg, criou o Serviço de Aconselhamento Psicológico na USP, desde 1963. Outros profissionais continuam esse Serviço de Aconselhamento, propiciando oportunidade de treinamento e prática aos estudantes de Graduação e Pós-Graduação.

Após a vinda de Carl Rogers ao Brasil, em 1977, Rachel Rosenberg e colegas fundaram no Instituto Sedes Sapientaie o Centro de Desenvolvimento da Pessoa que, até o ano de 1987, promoveu uma série de eventos, workshops de grande grupos, supervisão e grupos de estudos, incentivando principalmente, os profissionais desse estado a difundir a ACP. Foi também iniciativa deste Centro a instalação do Plantão Psicológico aberto à comunidade no Instituto Sedes Sapientiae, coordenado por Raquel Wrona Rosenthal, constituído como curso e Serviço de atendimento gratuito, onde os alunos atuavam sob supervisão, como plantonistas.

Em 1992, a necessidade de um programa de formação mais estruturado e que pudesse oferecer prática supervisionada aos alunos recém-formados, levou à implantação, em São Paulo, no mesmo Instituto, o Primeiro Curso de Especialização de Psicoterapeutas na Abordagem Centrada na Pessoa, através da conjugação do trabalho de Raquel Rosenthal e Sebaldo Bartz,, contando com a participação de vários outros profissionais daquele estado.

Também foi encontrado em outras cidades do Estado de São Paulo trabalhos significativos a nível de formação e pós-graduação em instituições universitárias, tais como: na Universidade de São Paulo-Ribeirão Preto, na Pontifícia Universidade Católica em Campinas, Faculdade São Marcos e na Universidade de Franca.

No Rio de Janeiro, a Universidade Santa Úrsula ofereceu, de 1987 a 1995 uma disciplina específica e eletiva sobre a Teoria de Rogers. Oferece também estágio supervisionado na Abordagem aos seus alunos de Graduação. Também a Universidade Gama Filho, ofereceu em 2 momentos, cursos de Especialização em Psicoterapia Centrada na Pessoa, nos anos de 1987 e 1990.

No Rio Grande do Sul, a Abordagem tem encontrado espaço dentro e fora da universidades. Os profissionais que fundaram o Centro de Estudos da Pessoa em Porto Alegre e funcionaram na década de 70 como instituição particular, voltaram-se mais para a formação acadêmica, inaugurando o Curso de Especialização em Psicologia Humanista, com duas opções: Rogers e Victor Frankl, na PUC. Desde 1996, a PUC-RS abriu um curso de Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade, oferecendo Psicologia Humanista, com uma das possibilidades. Em Canoas, a Faculdade La Salle também está oferecendo um curso de Especialização em Psico – Educação/Reeducação Clínica na Abordagem Centrada na Pessoa, coordenado por Irmão Henrique Justo.

Na Universidade Federal do Pará, Francisco Bordin, ofereceu em 1988 um curso de Especialização na Abordagem, tendo contado com a participação de uma equipe interestadual de docentes. No nível da graduação, os alunos também têm oportunidade de fazer estágio com a orientação teórica da Terapia Centrada no Cliente/Pessoa, além de poderem participar de cursos de Formação coordenado por Bordin em consultório.

No Nordeste, na década de 60, quando as faculdades de Psicologia de Recife ofereciam disciplinas obrigatórias na graduação, relacionadas à Abordagem, vários cursos de formação de terapeutas foram realizados, todos por iniciativa de Lúcio Campos, Maria Auxiliadora Moura e Maria Ayres. As atividades de supervisão e estudo teórico foram levadas a outras cidades nordestinas, que ainda não tinham o curso de Psicologia e formou-se um núcleo considerável de profissionais praticando a Abordagem.

No final da década de 80, observamos o “renascimento” da Abordagem no Nordeste, através da conjugação dos esforços de Carmem Barreto, Iaraci Advíncula, Carolina Dubeux e de Afonso Lisboa da Fonseca, oferecendo cursos de formação de psicoterapeutas e estágio supervisionado nas faculdades de Recife e em seus consultórios particulares. Em 1994, foi implantado o Primeiro Curso de Especialização em Psicologia Existencial-Fenomenológica Centrada na Pessoa, na UNICAP/Recife, sendo esse o primeiro curso acadêmico da ACP no nordeste. Essa iniciativa de Carmem Barreto, docente de Graduação da UNICAP e coordenadora do Programa, tem possibilitado que outros profissionais do nordeste possam colaborar com seus conhecimentos e práticas, permitindo uma reciclagem. Esse curso também conta com a colaboração de profissionais de outros estados. Algumas instituições por todo o Brasil têm merecido destaque por seu empenho em divulgar a Abordagem contando ainda com cursos de formação, dentre elas destacam-se: O Centro de Psicologia da Pessoa (CPP/RJ), vem oferecendo cursos de Formação, desde 1976, para terapeutas individuais (de crianças, adolescentes e de adultos) e para a facilitação de grupos, quer a nível de psicoterapia de grupo ou de grupos vivenciais. O CPP tem funcionado também como uma instituição divulgadora da Abordagem, especialmente após a criação de sua Biblioteca, que contém um acervo significativo de todos os trabalhos apresentados nos Fóruns Internacionais, Encontros Latino-Americanos, Jornadas de Psicologia Humanista e Encontros Nordestinos, além de diversas teses de Mestrado e de Doutorado e Monografias de diversas partes do Brasil. Em Petrópolis – RJ, o CEPEP, funcionou por quase 15 anos, realizando cursos de formação e, desde o encerramento enquanto instituição, seus sócios-fundadores continuam praticando e divulgando a Abordagem, individualmente. Outras instituições mais recentes também têm realizado este trabalho de formação de psicoterapeutas, tais como: o Centro de Psicologia Humanista de Niterói – RJ, Espaço – Vida – RJ, DELPHOS-RS, assim como alguns profissionais, de forma isolada, por todo o país.

II.4. Monografias:

Nesta Pesquisa foram cadastradas 66 monografias, que foram escritas em cumprimento ao término do Curso de Formação de Terapeutas na ACP em instituições do Rio de Janeiro (Centro de Psicologia da Pessoa e Universidade Gama Filho). Verifica-se, no entanto, que ainda não foram obtidas informações de monografias escritas em outras localidades.

Em relação aos temas, foi verificado maior ênfase nas reflexões teóricas. Referindo-se aos demais assuntos abordados, a prática psicoterapêutica foi relevante. A psicoterapia infantil obteve 47%, demonstrando um considerável interesse sobre este tema; restando à prática com adolescentes e idosos uma porcentagem mínima de 8%. Acredita-se que esta escolha esteja relacionada com a exigência dos términos de cursos de formação, nos quais os autores estavam mobilizados mais para o estudo reflexivo sobre a teoria da psicoterapia, do que para atividades profissionais em instituições.

Isso talvez seja reflexo dos próprios cursos de formação de terapeutas, cuja prática volta-se mais para o atendimento individual de adultos

Verifica-se que das 66 monografias cadastradas, 66% foram escritas na década de 80 e, somente nos primeiros anos da década de 90 foram cadastradas 22 monografias, ou seja, 33% do total. Conclui-se que a década atual aponta a maior produção de material escrito no Brasil. Este dado coincide com o crescimento do número de instituições de formação de psicoterapeutas no estado do Rio de Janeiro. Em decorrência deste fato, observa-se um aumento significativo no meio científico e a abertura para a perspectiva existencial-fenomenológica-humanista.

III. MATERIAL PUBLICADO

III.1. Artigos Publicados em Revistas e Jornais Nacionais:

Foram relacionados 82 artigos que foram publicados em revistas especializadas de Psicologia e Pedagogia, assim como em jornais de grande circulação, destacando-se a produção da autora Virgínia Moreira, com 14 publicações e o Jornal Estado de Minas com oito, seguido da Revista dos Arquivos Brasileiros de Psicologia, com nove publicações.

Apesar do volume de publicações em revistas especializadas ser pequeno , quando comparado a outras orientações teóricas, percebe-se um aumento gradativo de artigos publicados a partir de 1980, sendo que os primeiros surgiram já na década de 60. Este dado se reflete na década de 90, indicando um interesse crescente de sistematização e divulgação do que se tem feito na Abordagem nos últimos anos.

Em relação aos temas desses artigos, da mesma forma que das teses e monografias, constatamos uma preponderância sobre a prática psicoterápica, seguida pelo Ensino Centrado, supervisão e treinamento de terapeutas. Somente dois artigos relacionam trabalhos corporais.

III.2. Teses de Mestrado e Doutorado:

A produção acadêmica formal foi aqui considerada a partir da relação das Teses de Mestrado, Doutorado e Livre Docência.

Foi relacionado um total de 29 teses realizadas predominantemente nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Este dado parece refletir a própria oferta de Cursos de Pós-Graduação na região sudeste. A produção por décadas não revelou nenhuma predominância, levando-se em conta que no período 90-94, seis teses já foram defendidas e a década de 90 ainda está incompleta.

Interessante notar que as teses de Mestrado surgem mais nas décadas de 70 e 80, aparecendo um aumento significativo no período 90-94 das teses de Doutorado (2 de Mestrado e 4 de Doutorado), enquanto que nas décadas de 70, a relação Mestrado/Doutorado foi de 6/3 e na de 80 foi de 7/6. Tal fato indica que alguns profissionais envolvidos com a Abordagem, continuam aprofundando suas reflexões e práticas, apresentando suas conclusões em níveis mais avançados.

Em relação aos temas, percebe-se uma nítida concentração na área da psicoterapia individual (17 teses), quer em relação ao terapeuta, às condições facilitadoras, à relação terapeuta-cliente, à comparação com outras orientações teóricas (Freud e Labov), aos métodos e aos instrumentos expressivos. Em segundo lugar, a preferência temática concentra-se na área da Educação (4 teses), correlacionando-a com permissividade, criatividade, personalidade e comparando a proposta do Ensino Centrado no Aluno com a Educação de Adultos de Paulo Freire. A temática de Grupos só ocupa o espaço de duas teses, ambas sobre os grupos de encontro. Outros temas isolados, como afetividade, personalidade, limites da Abordagem Centrada na Pessoa, auto-revelação, supervisão e comparação com a filosofia de Buber, ocupam as reflexões dos outros autores.

Nesta relação foi observado que a aplicação da Abordagem na psicoterapia tem atraído a maioria dos profissionais envolvidos e a questão do ensino, dos trabalhos com pequenos e grandes grupos, ainda que realizados, são pouco divulgados e/ou sistematizados. Foi sentida a falta de pesquisas, que pudessem fundamentar melhor nossas práticas. Esse aspecto reflete também o pouco relevo que os brasileiros dão às pesquisas.

III.3. Livros Brasileiros:

Ao ser relacionado os 24 livros em língua portuguesa, escritos por autores brasileiros ou estrangeiros, foi excluído para análise, as traduções dos livros de Rogers e outros autores, visto o interesse, nesse momento, na produção nacional, de autores que publicaram a partir de suas experiências e reflexões no Brasil. Entretanto, no intuito de complementar as referências, foram relacionados a lista dos livros de Rogers.

Com referência à produção por décadas, foi encontrado um maior volume de livros entre 80 e 89 (14), seguido da década de 70, com sete livros e somente dois livros desde 1993, sendo que o último foi publicado em 1994 e refere-se a seis artigos originais de Rogers, denominados “artigos seminais”, acompanhados por uma análise crítica de John Wood e seus colaboradores brasileiros (Grupo de Jaguaríuna).

Interessante notar que 15 dos 24 livros foram publicados no Sudeste do país, especialmente em São Paulo. Essa tendência não reflete integralmente a nossa realidade, pois foram encontrados autores de outros estados publicando no sul do Brasil. Por outro lado, os núcleos da Abordagem são mais numerosos no eixo Rio-São Paulo, congregando profissionais, que têm melhores oportunidades (via cursos formais e informais) de transformarem suas reflexões em livros.

As temáticas dos livros variam desde grupos, supervisão, psicoterapia, aprendizagem, teoria da personalidade e da motivação até comparações com a teoria Freudiana. A maioria contempla, pelo menos um capítulo para a psicoterapia individual com adultos e raramente aparece referências ao trabalho com crianças, família ou casal. Esses autores, além de explicitarem os conceitos básicos da Teoria Centrada no Cliente/Pessoa para a psicoterapia, legitimam a sua aplicação nos trabalhos por eles desenvolvidos, demonstrando que a proposta psicoterápica centrada no cliente/pessoa adequa-se à realidade brasileira. Vale ressaltar que poucos autores destacam questões relativas ao contexto sócio – político cultural tão diferente das raízes do pensamento de Rogers. Esse fato é interessante, principalmente ao ser verificado que diversos trabalhos isolados apresentados nos Encontros Latino-Americanos, contemplam essa questão.

Essa relação de livros foi considerada pouco expressiva em face da atuação de diversos profissionais há mais de 20 anos, do crescente número de eventos e de núcleos desde 1987. Por outro lado, o volume de artigos publicados em revistas especializadas tem aumentado desde 1990, o que leva a sugerir que esses autores possam desenvolver mais suas reflexões e agrupá-las em livros, possibilitando maior circulação da informação e divulgação da Abordagem Centrada na Pessoa.

Foi realizada uma pesquisa junto a Livraria Martins Fontes Editora, principal editora responsável pela tradução e distribuição das obras de Rogers no Brasil, a saber: Tornar-se Pessoa (1972), Terapia Centrada no Cliente (1974), Grupos de Encontro (1978), O Tratamento Clínico da Criança Problema (1978), inclusive o livro de Natalie Rogers, A Mulher Emergente (1980). A editora informa que o ápice de venda se deu na década de 70 até meados dos anos 80. Hoje, embora com vendas mais reduzidas, o livro Tornar-se Pessoa ainda é considerado o livro mais vendido das obras de Rogers.

IV. CONCLUSÃO

A partir deste levantamento, envolvendo as atividades, os depoimentos e o material produzido pela comunidade centrada, identificamos quatro momentos distintos do percurso da Abordagem no Brasil, que designamos segundo sua intensidade como: Pré-História, Fertilidade, Declínio e Ascensão, caracterizados por eventos marcantes e também influenciados pela própria história do Brasil. Nesse sentido, podemos entender melhor, por exemplo, a grande receptividade dos trabalhos de grupo no momento em que a sociedade brasileira sentia-se ameaçada em expressar suas convicções, frustrações e receios durante os anos do regime militar. Assim, a possibilidade de vivenciarmos, ainda que fugaz e provisoriamente, um clima de liberdade num ambiente confiável, aparecia como um “oásis”. Da mesma forma, atualmente, o culto do individualismo, do descartável, parece explicar melhor o pequeno interesse pelo trabalho de grandes grupos.

A questão institucional tem sido debatida e parece apontar para que seja possível refletir sobre a comunidade centrada, enquanto um grupo de pessoas interessadas em promover o aprimoramento humano. Será que precisamos criar instituições formais para aplicarmos nosso conhecimento e colaborarmos com a sociedade? Sabe-se que o próprio Rogers recusou-se a formas tradicionais de organização institucional, como associações ou sociedades, que pudessem se constituir como estruturas cristalizadas de poder. As autoras partilham da posição de Rogers quando afirma que não gostaria que alguém se constituísse como representante ou “dono” da Abordagem. Ele queria que o processo institucional da Abordagem pudesse ser descentralizado e criativo, sem “burocracias sufocantes e excludentes”. Nesse ponto, Rogers foi muito coerente, pois a organização que ele ajudou a criar (Center fo Studies of the Person) e da qual participou ativamente, em momento algum se constituiu como o órgão oficial da Abordagem. Inúmeras vezes, Rogers recusou-se a emprestar seu nome para instituições ou programas de treinamento. Isso não significa que não seja possível criar-se uma organização eficiente, sem cometer os equívocos que tantas instituições PSI têm apresentado. Atualmente este tema tem sido discutido na Internet, através da rede iberoamericana da ACP, com posições contraditórias. O que ainda não está esclarecido é a necessidade de criarmos uma associação brasileira ou até mesmo internacional. Para que precisamos nos burocratizar? Este mesmo tema ocupa também espaço virtual na rede internacional da ACP, entretanto, na última Conferência de Terapia Centrada no Cliente/Experiencial, realizada em Portugal (julho/96) um grupo de praticantes da ACP se constituiu com o objetivo de criar uma organização mundial e continuam trabalhando neste sentido, a despeito de severas críticas opondo-se à institucionalização da ACP.

As entrevistas que serviram material para esta pesquisa, revelaram que os “precursores”, ao se identificar com os postulados básicos propostos nos escritos de Carl Rogers, apaixonaram-se por suas idéias. Interessante notar que a formação desses profissionais pode ser caracterizada como “auto-didata”, pois só tiveram contato pessoal com Rogers (quando tiveram), quando já estavam praticando a Abordagem . Além disso, Rogers visitou o Brasil somente três vezes (1977, 1978 e 1985), o que permitiu um desenvolvimento autônomo da comunidade brasileira, buscando aplicar os conceitos básicos, a partir da nossa realidade concreta de terceiro mundo. Encontramos uma profissional, Mariana Alvim, talvez a primeira brasileira a ter contato direto com Rogers, em 1945, quando foi fazer um curso sobre a entrevista não diretiva e trouxe o novo método para o Brasil.

Quase todos os entrevistados foram mais influenciados, no início, por experiências pessoais, isto é, a partir da participação em alguma vivência, sentiram-se profundamente “tocados” e identificados com os princípios norteadores da Abordagem, ao participar pela primeira vez em uma vivência. Este “ritual de iniciação” tem se modificado, pois os atuais iniciantes têm tido oportunidade diversas dentro e fora das Academias para entrarem para a comunidade centrada.

Outro ponto convergente dos depoimentos refere-se à identificação de uma certa “lacuna teórica”, evidenciada pelas práticas sem o devido acompanhamento de sua sistematização, bem como a forte acentuação no aspecto vivencial.

A necessidade de maior aprofundamento nos fundamentos filosóficos que ofereça respaldo à atuação profissional é sentida por vários profissionais que praticam a ACP. Observa-se um certo descuido com a teoria a favor da prática e da vivência. Alguns sentem falta de uma estrutura mais sólida, previamente construída, que traga mais segurança no desenvolvimento de seus trabalhos, fator responsável por certa evasão. Neste ponto, temos um grupo de profissionais nordestinos que compartilham desta preocupação, concentrando seus estudos no sentido de promover maior respaldo teórico, na filosofia Fenomenológica-Existencial, retomando os escritos de Heidegger, Kierkegaard, Buber, Nietzsche e outros

Foi observado muito empenho e interesse de todos os entrevistados em expandir os conhecimentos desta orientação, tentando torná-los cada vez mais acessíveis aos estudantes e outros profissionais da área da saúde. Isto se eveidencia pelo aumento de profissionais trabalhando em hospitais, com meninos e meninas de rua, com Plantão Psicológico em diversos níveis (Escolas, Hospitais, Clínicas-Escolas, etc.)

De certa forma, parece haver consenso quanto à opinião de que a Abordagem já “viveu dias melhores”. A maioria sente falta de estímulo, de reciclagem. As pessoas querem produzir, mas nota-se uma certa prostração por parte de alguns e ansiedade, por parte de outros, que se sentem solitários em seus ideais de trabalho.

Interessante perceber que as profissionais entrevistadas que “trocaram” a Abordagem por outra orientação teórica apresentam críticas semelhantes, quanto à fragilidade teórica e a questão do poder, por exemplo. O que para estas significou momento de partida, para os que “permaneceram”, representou um convite a aprofundar e a completar as lacunas.

A pouca penetração acadêmica da Abordagem Centrada na Pessoa, não se configura como característica brasileira, pois sabemos ser assim também em outros países da América Latina, especialmente Argentina, Uruguai e México, nos EUA e na Europa.

A presença de participantes brasileiros nos Fóruns Internacionais, nos Encontros Latinos e em outros eventos, além da organização do IV Fórum Internacional (1989) e de três Encontros Latino-Americanos (1983, 1986 e 1994) são fatores importantes no desenvolvimento da Abordagem no Brasil. Os diversos trabalhos e artigos apresentados nesses eventos demonstram o potencial de contribuição dos profissionais brasileiros.

A noção de transindividualidade da pessoa começa a merecer a atenção de nossos colegas para melhor se compreender a relação que se desenvolve entre “seres intrinsicamente pertinentes a sujeitos coletivos e históricos específicos.” (Fonseca, 1994). Isso traz implicações importantes para a psicoterapia, educação, trabalhos com pequenos e grandes grupos. Até a própria manifestação das “condições necessárias e suficientes” é influenciada pelos fatores culturais.

Wood (1994) propõe que, ao se considerar a Abordagem Centrada na Pessoa como uma Abordagem e pesquisar os resultados quando ela é aplicada a fenômenos complexos, poder-se-ia formular uma Psicologia mais adequada para melhor compreensão dos fenômenos dos grupos humanos, incluindo a psicoterapia. Uma Psicologia que nos forneça explicações plausíveis sobre as dimensões da mente, os estados alterados de consciência, agressão, oportunismo, comportamentos tribais, efeito placebo, influências físicas e ambientais e culturais a que estamos expostos, etc., são as propostas de Wood.

O destaque que foi dado aos Encontros Latinos é uma decorrência da intensa participação de brasileiros, sendo esse o espaço que a comunidade centrada tinha até então para se reciclar. Agora, desde 1996, com o aparecimento do Fórum Brasileiro, a comunidade centrada poderá desenvolver suas trocas no contexto cultural brasileiro.

Fonseca (1994) destaca que os Encontros Latinos têm influenciado o desenvolvimento de encontros regionais e a organização de grupos locais. Também comenta que somos “um espelho partido. Precisamos nos encontrar, juntar uns pedaços para que possamos ver a nossa cara.” Na opinião de Fonseca, os Encontros têm-se tornado “um intenso laboratório de aprendizagem individual e coletiva a nível pessoal e profissional, teórico e vivencial, cultural e intercultural. Percebemos a necessidade de ampliarmos nossas redes de relações e comunicações com estes países para um maior intercâmbio dos nossos propósitos e objetivos junto à Abordagem Centrada na Pessoa no contexto Latino”.

A necessidade de se repensar a compreensão teórica no contexto brasileiro e quais as questões básicas que nos têm instigado, pretende ser atendida através do recente projeto de Luiz Alfredo M. Monteiro [1], apresentado no Fórum Brasileiro (1996), denominado Ciranda Abordada . Tal como a dança nordestina Ciranda, a idéia é que todos “entrem na dança”, explicitando suas reflexões, respondendo às sete perguntas sugeridas, podendo acrescentar outras ou mesmo retirar aquelas que não transmitam a essência da “Abordagem Brasileira”. O objetivo é que possamos articular o que fazemos, como entendemos o que fazemos, quais os nossos equívocos, o que precisamos reformular, de forma que possamos avançar nosso conhecimento sobre o ser humano sem perder de vista, o seu/nosso contexto. Além da apresentação no Fórum, a Ciranda Abordada divulgada através da Internet e enviada aos profissionais brasileiros, foi também apresentada no México (VIII Encontro Latino, 1996) e futuramente deverá “alçar vôo” para a África do Sul (VII Fórum Internacional, 1998).

Parece que a onda da Ciranda começa a se espalhar por outras praias num movimento de co-construção do conhecimento. Foi sob inspiração desta proposta que Raquel Wrona Rosenthal/SP, convidou os participantes do Fórum Brasileiro a registrar suas reflexões. Esperamos que esse material possa frutificar no sentido de levantar hipóteses que clarifiquem uma das aplicações da Abordagem, os grandes grupos.

A presença de participantes brasileiros e sua produção teórica (nos Fóruns Internacionais, nos Encontros Latinos e em outros eventos, além da organização do IV Fórum Internacional e de três Encontros Latino-Americanos) são fatores importantes como demonstrativos de seu potencial de contribuição para o desenvolvimento da ACP. As autoras entendem que o interesse crescente nesta orientação reflete as necessidades culturais do contexto sócio-político brasileiro. Da mesma forma, a ênfase na experiência interna, no aspecto vivencial parece atender ao “jeito de ser” brasileiro.

BIBLIOGRAFIA

1.FONSECA, Afonso Lisboa da. De Oaxtapec ao Nordeste da América do Sul: O Encontro Latino Americano da Abordagem Centrada na Pessoa (texto não publicado), 1994.

2.LIETAER, G., ROMBAUTS, J. & VAN BALEN, R.Client-Centered and Experiential Psychotherapy in the Nineties. Leuven: Leuven University Press, 1990.

3.TASSINARI, Márcia A. & DOXSEY, Jaime R. The Latin American Encounters (1983-1992): Recent Trends in Written Material on the Person-Centered Approach – Part II. Trabalho apresentado no V Fórum Internacional da ACP, Holanda, 1992.

4.THORNE, Brian. Carl Rogers (Key Figures in Counselling and Psychotherapy): London: Sage Publications, 1992.

5.WOOD, John K. et. al. (Org.). Abordagem Centrada na Pessoa: Vitória: Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1994.

6._______________Abordar a Abordagem (texto não publicado), 1994.

7._______________Contribuição para a Ciranda (texto não publicado), 1996.

A existência humana: Amor e Criatividade.

A existência humana: Amor e Criatividade.

Emanuelle Coelho Silva

*Texto escrito em 5 de dezembro de 2005.

O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta
O que ela quer da gente é coragem”.
(Guimarães Rosa em Roseana)

Como pensar o existir humano, com suas vicissitudes inquietantes, em seu atributo principal que se resume numa infinita diversidade? E como pensar o amor, esse misterioso e típico fenômeno humano, no interior da complexidade do viver?

Essa emoção enigmática e potente, que é o amor, desperta no homem um instantâneo fascínio, quase surreal. Um conceito (quase) mítico contado e cantado em imagens, versos e poemas. É sempre muito evocado, através dos séculos, nas mais criativas e diferentes formas. Registros singulares e marcas de encontros e separações o acompanham.

O amor permeia cada ato e cada pensamento do ser e de ser. Amar é ser, estar intimamente ligado ao outro, que em dados instantes, ambos embaraçam-se em sonhos, desejos, realidades e fantasias. A criação de um mundo paralelo é dada, e é aqui, neste momento, que o homem pode diferenciar-se dos demais animais, através da capacidade de amar e criar.

Uma das peças chave para a criação (criatividade) é o amor, que toma conta, que absorve, que contamina e faz com que sentimentos, desejos e inconstâncias pessoais possam aflorar, sem mesmo que a própria pessoa possa controlar ou impedir.

A arte seja ela visual ou literária, constitui num dos atos de poder de transformar uma realidade psíquica em narrativas capazes de explicitar a realidade externa e interna de uma pessoa, revelar aquele que está sob a máscara da adequação, numa dimensão com alcance universal. É a criação dando vazão aos verdadeiros sentimentos e até em alguns momentos, mostrando-os de forma reveladora!

Já a experiência com o amor, mediante o processo de crescimento, somente transforma a realidade psíquica com a aquisição de capacidades elaborativas. Aquele deve ser fazer parte dele, e o que fica explicito de emoções e sentimentos, só poderá ser vivido, compreendido e tocado pela própria pessoa. Também é a arte do belo no processo de viver o amor. Resulta num movimento que inscreve uma memória poderosa que volta sempre, como a exigir um tributo e homenagens, e quase sempre um estimulante convite a vive-lo.

O Amor tem uma relação íntima com a complexidade do existir humano. O enunciado de um discurso amoroso não corresponde nunca a uma linguagem direta e simples. A linguagem amorosa é um jogo de metáforas que resulta da intricada arte de viver. A aparência nunca responde pela essência de seu conteúdo subjetivo. O argumento de uma história, em seus ganhos e perdas, é um retrato interior que cria vida no destino particular que alcança a experiência amorosa. É singular e único como uma impressão digital.

A marca da singularidade de uma história Individual abre o espaço para versões surpreendentes, na luta para enfrentar as incertezas e os desamparos da tristeza, do luto nas perdas, da ameaça nas doenças e o medo da morte. O resultado é uma versão inédita, que implica na capacidade de viabilizar transformações e de desafiar alguns limites. Infinitas soluções elaboradas arduamente na direção de alcançar o prazer, a alegria e felicidade, sempre apoiadas nas possibilidades do amor. A criatividade de cada sujeito vai corresponder a um enfrentamento das tensões, conflitos e prazeres nas vicissitudes da experiência amorosa.

O viver humano esconde então a simplicidade da verdade numa múltipla diversidade. Esta nasce de uma raiz complexa: da força de um Inconsciente, que tem uma intima relação em seu berço de sexualidade com o amor, com o narcisismo e com um Édipo.

No mito de Eros e Psique, por exemplo, a angustiosa advertência, anuncia que o amor desaparece. A inquieta curiosidade moveu Psique para olhar seu rosto, quebrou assim a proibição que estabelecia como única condição não ser visto. O preço deste atrevimento é a separação, ou seja, pode-se perder de vista o amor .

Em Eros e Psique está anunciado o entusiasmo e a separação, e se expressa um movimento comum na condição de olhar para ver. Está presente neste mito uma interrogação sobre a imagem capaz de figurar o amor, e também está anunciada a idéia de que uma imagem do amor perturba a capacidade de amar.

“Qual será a cara do amor? E porque razão a condição é estar Oculto? Porque não ser visto, (mirado) olhado, admirado, pois se pode até ser amado? Será porque vive no inconsciente e nasceu na cegueira do narcisismo e da travessia um campo edípico?”

A capacidade de sentir amor, e de amar enfrenta uma encruzilhada existencial quando nasce de uma vivencia de completude que na verdade nunca é plena. Mas justamente desta incompletude vive o amor, o desejo, o prazer, e também o desprazer. A capacidade de amar é então um paradoxo Humano essencial já que se organiza com a origem do amor. A marca desta contradição de origem irradia-se na sexualidade, que é o campo do desejo, do prazer e do amor.

Quando o ser humano atua patologicamente, em geral vive cometendo os mesmos erros, adiando mudanças importantes. Quando se repete, iguala-se aos animais irracionais, como se não tivesse a visão do global. Quando adia, assemelha-se aos seres inanimados, como se não tivesse sequer força para agir. Quando cria, e ama, digamos que pode assemelhar-se a algum tipo de divindade ou deus. Realiza o ato transformador e põe em ação sua capacidade de realização pessoal.

Com criatividade, pode-se encontrar soluções para os problemas do amor. Usar a criatividade no amor é embelezar uma festa que já está linda, é transformar em fogueira cinzas quase apagadas.

Bibliografia consultada:

VIEGAS, Sônia. Amor e Criatividade. Belo Horizonte, Mar. 1994.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução Alex Marins. Editora São Paulo: Martin Claret, 2005.

ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. Tradução Manuel Jose do Carmo Ferreira e Alvamar Lamparelli. São Paulo: Martins Fontes, 1995

A construção de um novo rumo da Terapia Ocupacional

A construção de um novo rumo da Terapia Ocupacional.

Patricia Moreira Bastos

*Trabalho apresentado no III Encontro de Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais em Santa Catarina-2003.

Para estar aqui neste encontro hoje só foi possível, na medida em que me propus a compartilhar meus conhecimentos com os conhecimentos de todos vocês, na construção de um novo rumo da Terapia Ocupacional.

Para tanto, foi necessário reunir tantos outros saberes, de tantos pensadores que percorreram caminhos também para a construção de conhecimentos, e que felizmente contribuíram historicamente com o que fomos, somos e possivelmente seremos.

Acredito que o futuro sempre será resultado da relação entre o passado e o presente, e de como esta relação pode ser vivenciada em termos de crescimento e desenvolvimento.

Portanto, convido a todos para uma viagem histórica com assentos garantidos para um futuro que só depende de nossa consciência enquanto terapeuta ocupacional.

Todos nós sabemos que o homem pensa, progride, e que pode agir livremente; entretanto tende a negar o que é invisível ou o que não seja percebido pelas sensações, não se dando conta que sua existência está na sua consciência, uma consciência intencional. (A intencionalidade da consciência significa que toda consciência é não somente consciência, mas também consciência de alguma coisa, implicando numa relação intrínseca com o objeto.)

A consciência é o sustentáculo das operações vitais do homem, o que faz com que viva, sinta, se locomova, e entenda; uma realidade que subsiste por si só, imaterial, espiritual, e que necessita de uma causa, que explique essencialmente a existência do homem.

Tal causa não deve ser algo simplesmente acidental ou superficial, pois o sentimento, a vontade, a inteligência são realidades profundas e que caracterizam o ser humano como uma criatura peculiar, especial.

“ A existência do Eu como sujeito de todos os atos do indivíduo é um fato experimentado pela própria consciência do sujeito.”

(GIRARDI,1988,25)

Pensar em Terapia Ocupacional é antes de tudo definir nossa visão de homem, enquanto existência, o que representa uma tarefa que exige conhecimento; e quanto mais os homens conhecem o homem, mais temerária se torna a tentativa de definição.

É em razão disso que Gabriel Marcel se refere ao homem como “mistério”; e Sartre, que “o homem não é o que é, pois ele é o que não é”, o homem está sendo; é no que ele é capaz de ser e não meramente no que ele é.

O homem é um ser pensante, co-criador, e transformador de sua realidade.

O auto conhecimento é possível à partir da convivência com o outro, pois viver é radicalmente conviver. Viver, é ser para-o-outro e com-o-outro.

O homem comporta-se à partir da racionalidade, o que lhe permite a condição de auto-determinação, enfim, de ser livre. Entretanto, essa liberdade está condicionada a um processo de maturação, no qual sua manifestação é exercida gradativamente, conforme o desenvolvimento da razão.

“eu sou livre de tudo…exceto de não ser livre.Portanto eu estou condenado a ser livre.”

(SARTRE)

“O homem livre quer dizer, aquele que ouve apenas segundo os conselhos da razão, não é dirigido na sua conduta pelo temos da morte, mas deseja diretamente o bem…”.

(ESPINOSA)

A liberdade, aquela que captamos em nós, é a consciência da ação exercida por uma idéia, a saber, a idéia do máximo de independência que sob a dupla relação da causalidade e da finalidade, pode atingir o eu que concebe o universal.

A liberdade é a imunidade de vínculos ou marcas; podendo ser física quando dirigida aos movimentos e deslocamentos, moral quando envolve as questões legais,e, psicológica ou pessoal, também chamada de livre-arbítrio, ao permitir tomar decisões ou escolhas conforme sua vontade, inteligência e intencionalidade.

Pensando, o homem faz, realiza, transforma e busca um rompimento com aquilo que traz em si, abrindo-se para a transcendência.

O pensamento é condicionado pela ação, a vida não consiste apenas em pensar logicamente, mas também em agir.

KANT reconheceu que o homem pode utilizar seu intelecto – sua razão, não apenas como receptor de impressões mas como criador de idéias – a faculdade de pensar.

Quando o homem desperta para o conhecimento, passa a construir uma trilha infinita, onde se volta para sua interioridade para desvendar-se, e para exterioridade para relacionar-se com a realidade circundante, integrando-se nela e na realidade de seu ser.

Então, percebe que os horizontes de sua liberdade dependem dos horizontes do seu conhecimento. A garantia do conhecer está na intencionalidade da busca da verdade. A vida humana é essencialmente ação.

O ato de refletir e o valor do conhecimento são legitimados através da atitude.Toda ação é efeito, então, estando o ato de refletir relacionado com o ato de pensar, é a atitude pensada na verdade que qualifica o conhecimento, e não a simples e conseqüente ação motora.

O ser humano desenvolve sua vida em plenitude através da ação. O conhecimento só tem razão de ser na medida em que estimular a atividade, a ação na linha da utilidade.

Ao buscar o futuro, algumas questões são importantes:

Por onde têm caminhado os terapeutas ocupacionais?

O que têm aprendido e o que nos ensinam dessas experiências?

Quem ensina a quem?

Embora tenha sido no início do século XX seu surgimento formal, no período entre 1950 e 1960, permeava a prática reabilitadora da atenção terciária, na qual a Terapia Ocupacional agia isoladamente; somente entre as décadas de 60 e 70, a profissão de Terapia Ocupacional foi reconhecida como de nível superior, num contexto de importantes mudanças.

Segundo Michelle Hahn, a Terapia Ocupacional nesses 20 anos, passou por um processo significativo de mudanças, o qual representou o deslocamento de um espaço restritamente de ambiente hospitalar de atenção aos pacientes crônicos, para a integração em equipes multiprofissionais de manutenção e prevenção nos locais de atenção secundária de cuidados a saúde, como ambulatórios de saúde mental, centros de saúde, hospital-dia, centros de atenção psicossocial, centros de convivência, etc.

Desta forma, foi possível, juntamente com outros profissionais, construir uma nova terminologia para aquele que recebia os cuidados em saúde : os pacientes de ontem, passaram a clientes e usuários.

Um outro dado importante refere-se ao acréscimo do contexto da educação, onde foi possível viabilizar um programa de atenção,o qual visava integrar pressupostos teóricos para configurar-se em um programa de saúde, com ações e intervenções de natureza educativa e de aconselhamento.

Inicialmente era como “técnico em laborterapia”, que atuava no “emprego cientifico de qualquer tipo de ocupação ou trabalho, na reabilitação do incapacitado”, para posteriormente passar a denominar-se de terapeuta ocupacional , se tivesse diploma do curso de Terapia Ocupacional.

A Reforma Universitária, fez com que alguns estabelecimentos prestadores de serviços em Reabilitação perdessem sua autonomia, e fossem integrados as unidades hospitalares e/ou desativados, permitindo com isso uma reformulação do curso de Terapia Ocupacional.

Segundo DE CARLO (2001,35) a década de 70, representada por uma necessidade de abertura e democratização, e crescimento dos movimentos sociais, poderia ser considerada uma fase de grande aquecimento e fortalecimento, para a busca de definições, especificidades e construção da identidade da Terapia Ocupacional.

Alguns estudiosos como Fidler & Fidler, Azima & Azima, Mosey, Ayres, Reilly, Kielhofner, entre outros,contribuíram na produção cientifica inovadora da Terapia Ocupacional.

Outros estudiosos, terapeutas ocupacionais, tão importantes quanto os já citados, deram significativo impulso à Terapia Ocupacional com suas defesas cientificas e profissionais, refletindo no desenvolvimento de novas formas de olhar e de atuar, assim como na fomentação de novos campos de trabalho.

Para LANCMAN (1995, 58) os anos 80 foram marcados profundamente pelo conflito gerado com a falta de sistematização do conhecimento e a conseqüente indefinição de identidade da Terapia Ocupacional.

Este movimento contribuiu para o repensar de praticas e concepções envolvendo a atividade e sua terapeuticidade, contra “uma ocupação esvaziada de significado e distanciada das necessidades reais dos pacientes”.

A busca de desmistificação do uso terapêutico da atividade, na tentativa de elaborar novos conceitos ideológicos, resultou no desenvolvimento da idéia da atividade como recurso terapêutico da Terapia Ocupacional, passando a significar que toda intervenção estaria dirigida para o individuo e seu grupo social, possibilitando-se condições de bem-estar e autonomia.

Os anos 90, caracterizaram-se basicamente, pela procura de especializações e cursos de pós- graduação que subsidiassem a prática clinica; conseqüentemente com a formação crescente de pesquisadores e professores de ensino superior, deu-se lugar um novo perfil de profissional e campo de atuação.

Segundo Lancman, os terapeutas ocupacionais, embora apresentassem um perfil mais técnico e voltado para a clinica, passaram a ampliar seus horizontes galgando espaços como criadores e transformadores dos sistemas de saúde onde estavam inseridos. Este movimento representou a busca pela produção e sistematização de conhecimentos.

Esta fase refletiu ainda uma somatória de mudanças e ampliações no campo de trabalho da Terapia Ocupacional, como resultado dos seus avanços e a contextualização institucional em saúde, educação e pesquisa.

Desde então, a apropriação de teorias e metodologias de outras áreas de saber têm sido realizada visando adaptá-las e/ou adequá-las as necessidades de construção de um referencial próprio e urgente, para um relacionamento de igualdade com a ciência.

Mesmo considerando o surgimento de novas necessidades e especificidades, é importante manter o nível de reflexão em desenvolvimento sobre o corpo de conhecimentos que no momento compõe a formação do terapeuta ocupacional, para que o curso do pensar possa expressar-se diferentemente de “dentro” para o exterior.

Embora a conjuntura política-social e econômica não permitir grandes perspectivas, o mercado se mantem em processo de ampliação contínua, quando flexibiliza os perfis profissionais.

Para MAXIMINO, a pouca clareza relativa a definição da Terapia Ocupacional, poderia possibilitar uma prática mais criativa e identificada com o profissional e sua realidade. Neste aspecto,torna-se necessário identificar os instrumentos necessários para responder as exigências de um mercado, que busca um profissional ágil e “multi”, ao mesmo tempo em que terceriza serviços especializados.

Este panorama dá lugar a alguns questionamentos relativos a:

· capacitação do terapeuta ocupacional, na organização e prestação de serviços;

· qualidade de serviço

É fundamental, portanto, o dialogo com o fora. Fora de si mesmo, fora do hospital, fora do consultório de atendimento, fora das formas e configurações já existentes. A verdadeira prática clínica tem que pensar a inserção do indivíduo no mundo e o diálogo constante entre as formas vigentes e as que estão sendo engendradas.

Para Lima (1997,100), o trabalho da Terapia Ocupacional, um dia chamado de reabilitação, perpassa atualmente por diversos paradigmas, para alcançar uma clínica também contextualizada, onde se faz necessário repensar sempre o constante transitar entre interno e externo,dentro e fora, individual e coletivo, sujeito psíquico e representações sociais, trabalho de estruturação do sujeito e trabalho de reinserção social. Em a “vida é atividade, princípio que rege tanto a vida corporal como a mental, dado que o homem nunca permanece sem fazer nada; senão faz algo útil, faz algo inútil”, segundo Francisco (1990,35), é possível entender que o homem é dotado de uma natureza ocupacional, o que caracterizou-o como detentor ativo de potencial de construção e transformação de sua realidade, portanto, qualquer mudança ou situação que venha trazer algum prejuízo ou disfunção ao homem, pode ser considerado como conseqüência da ausência ou comprometimento de atividade ou ocupação, através das atividades relacionadas ao trabalho, de vida diária, de vida prática e de lazer.

É possível então perceber que quando o homem encontra-se numa situação de harmonia e equilíbrio de sua realidade, fazendo uso ativo de seu tempo-espaço, ele responde a uma manifestação de qualidade de vida e saúde.

A atividade humana, é a atividade da consciência, resultado da relação entre a reflexão e a ação, mediados pela intencionalidade, vontade, e liberdade.

Para DE CARLO (2001,47) “ as atividades humanas são constituídas por um conjunto de ações que apresentam qualidades, demandam capacidades, materialidades e estabelecem mecanismos internos para sua realização. Elas podem ser desdobradas em etapas, configurando um processo na experiência da vida real do sujeito. A linguagem da ação é um dos modos de conhecer a si mesmo, de conhecer o outro, o mundo, o espaço e o tempo em que vivemos, e a nossa cultura. São elas que darão forma e estrutura as fazer dos sujeitos,…, estabelecendo um sistema de relações que envolve a construção da qualidade de vida cotidiana.” E a qualidade de vida cotidiana, nada mais é que a percepção subjetiva do sujeito sobre seu bem estar e sua condições de vida.

O cotidiano não é rotina, nem a mera repetição automata de movimentos ou ações que levem um fazer por fazer. O cotidiano, segundo FRANCISCO (1988,86) é o espaço próprio onde o sujeito busca praticar sua atividade criativa e transformadora. É o espaço social que o sujeito ocupa, vive.

Ao longo destes quase últimos 40 anos, a construção de concepções e campos de trabalho da Terapia Ocupacional, têm fortalecido não só as novas definições relativas a sua identidade, como permitido a delineação de novos campos de trabalho, sem perder de vista o contexto sócio-histórico e cultural.

Em todo esse percurso, o terapeuta ocupacional foi obrigado a acompanhar os diferentes e crescentes movimentos de mudanças e transformações que o levam a uma nova forma de olhar da Terapia Ocupacional.

É num perfil de multidimensionalidade que a Terapia Ocupacional vem se inserindo para responder as demandas decorrentes da dinâmica cinética ocupacional refletida pela atividade humana.

Possivelmente, este perfil de multidimensionalidade venha permitindo, e permitirá sempre ao terapeuta ocupacional, a oportunidade de perceber e interagir numa diversidade de ações e contextos, desde a tecnologia que acompanha os avanços científicos até as intervenções comunitárias, sempre centrando sua busca na garantia de qualidade de vida cotidiana.

Entretanto, embora se possa estar vivenciando uma diversidade de propostas e diferentes realidades socioculturais, as desigualdades e diferenças também permeiam a intervenção da Terapia Ocupacional, na medida em que se convive com um confronto entre o momento histórico de extremo avanço tecnológico, com acesso limitado para alguns personagens da humanidade, e a luta pela aquisição de recursos básicos de sobrevivência com dignidade.

A Terapia Ocupacional, manifestada por terapeutas ocupacionais, precisa estar ciente desta realidade – desde quando é a atividade humana e a consciência de saber fazer, que justificam sua ação, para que possa intervir estabelecendo condições de relações sociais mais justas, assegurando através de suas ações a qualidade de vida para o indivíduo.

As perspectivas para a Terapia Ocupacional, estão voltadas para o desenvolvimento de ações respaldadas em pesquisas científicas, pela consolidação , e principalmente pela socialização, de seus saberes. Conta-se atualmente com 32 cursos de Terapia Ocupacional no Brasil, e ao contrário do que se possa pensar, não é a multiplicação de cursos que vai garantir qualidade de formação acadêmica.

Atualmente, a Terapia Ocupacional compõe as equipes de diversos programas de saúde, conforme as inúmeras portarias ministeriais, abrangendo contextos da saúde mental, transplante de medula, programa canguru, saúde do trabalhador, programas para portadores de deficiências, etc., mas ainda não corresponde em toda a plenitude das demandas sociais.

A produção cientifica têm representado significativa ampliação de suas fronteiras, permitindo aos profissionais, mais acesso na comunidade científica, porém não se tem muito claro a qualidade da formação acadêmica e a expansão e/ou socialização de conhecimentos.

É uma condição vital para a Terapia Ocupacional, que o mercado conte com profissionais mais éticos, críticos e atentos à sua realidade, compromissados com o desenvolvimento de conhecimentos e com o incremento da profissão, para bem além do tão antigo e já descolorido jargão do “conflito de identidade” .

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DE CARLO,Marysia M.R.Prado. & BARTALOTTI,Celina C. Terapia Ocupacional no Brasil:fundamentos e perspectivas,Plexus,São Paulo,2001.

FRANCISCO,Berenice Rosa. Terapia Ocupacional. Papirus,Campinas,1988

GIRARDI,Leopoldo Justino. Filosofia.Acadêmica,Porto Alegre,1988.

GOBBI, Sérgio Leonardo. & MISSEL, Sinara Tazz. Abordagem centrada na pessoa: vocabulário e noções básicas, Ed.Universitária, UNISUL, Tubarão,1998.

HAHN,Michelle Selma. Promoção da saúde e terapia ocupacional. Revista do Centro de Estudos de terapia Ocupacional, vol.1,nº 1,p.10-13, São Paulo, 1995.

LANCMAN,Selma.O lugar da terapia ocupacional hoje, seu corpo de conhecimento e sua especificidade.Revista do Centro de Estudos de Terapia Ocupacional, vol.1, nº 1, 58p,São Paulo, 1995.

LIMA, E.A. Terapia Ocupacional: um território de fronteira? Rer.Ter.Ocup.Univ.São Paulo ,v.8 n.º2/3, p.98-101, maio / dez.1997

MAXIMINO,V.S.Novos desafios para a terapia ocupacional. Rev.Ter.Ocup.Univ.São Paulo,v.8 n.º2/3, p.61, maio / dez.1997

MEDEIROS,Maria Heloisa da R. Editorial.Cad.de Terapia Ocupacional da UFSCar,ano IX vol.9 nº 1, São Paulo, janeiro/junho/2001

A Aldeia de Arcozelo

A Aldeia de Arcozelo

Agripino Alberto Domingues

*Texto escrito em 1995.

A Aldeia de Arcozelo foi o primeiro Encontro de Comunidade, ao longo de quinze dias, com participação de Carl Rogers e sua equipe de La Jolia e mesclada com brasileiros já experimentados. Escrito no início da Segunda semana do evento, num caderno onde Luiz Alfredo colhia depoimentos espontâneos, num momento quente (muito quente) do Encontro, este texto, foi produzido no meio da experiência, em um momento que agora entendo como de reestruturação após o caos. Resgatado carinhosamente dezoito anos depois, divido com amigos um fato. Decisivo. R J- 1977

Desligadas as máquinas, passagem na mão, pé na estrada. Objetivo, um local chamado Arcozelo. A coisa me soava como se viesse da terra de Camões. Na rodoviária (São Paulo), acima do burburinho, entre uma volta e outra, Aldeia de Arcozelo (1) pintou no ar. Juro que ouvi. Comecei a ensimesmar se todo mundo que estava ali iria se transferir para tal da Aldeia. No Rio, na rodoviária, eu já buscava identificar visualmente os participantes ou os meus companheiros na “coisa”. Sentado no meu canto estratégico tentava, com os olhos, absorvê-los

Duas ou três aproximações no nível do social, social nada mais. Como vai, de onde veio, o que faz, você é Rogeriano (2). Aliás, essa palavra era o prato do dia, todos os dias. Por vezes sentia que passava por um processo de catequização . Creio que até poderia dividir a catequese por escolas:

Rogeriana – tornar-se pessoa, assumir-se, congruência, “deixar-se levar pelos sentimentos”, ser-se.

Espiritualista –“por que Deus”….,”por Cristo”, ”recebi a missão de…”

Crítica- “pô… não é nada disso”, “continuo na minha” , “isso enche o saco”.

Lúdico Recreativo- “vamos tomar mais uma”, “onde abunda sobra”.!

Muita mulher, pouco homem. Três mulheres para cada homem, segundo as estatísticas semi-oficiais. Um mulherio muito bem representado. As hipóteses assomavam à cabeça, não consigo pré-hipotetizar mais. As coisas caminham a uma velocidade tão grande que não consigo agarrar tudo. Confesso que, depois de três anos afastado da psicologia (do mundo dos homens), o vocabulário desusado me obrigava a caminhar para trás no tempo, buscando na memória dos bancos da Universidade o significado preciso dos termos. “O rigor e a precisão da linguagem são fundamentais para o cientista”. Cientista? Psicólogos? Psiquiatras? Um monte de figurões e figurinhas.

Em todos, em quase todos, podia sentir uma vontade muito grande de não-sei-o-que. Aquilo me contagiou. Montado o acampamento, feito o reconhecimento cuidadoso das características do local, maravilhoso. Na primeira noite, caminhava por uma das alamedas, cruzei com um casal. Ela mulher muito bonita, me fuzilou com dois faróis azuis, que gelou-me a espinha. Opa!

Primeiras aproximações- cautelosas, despojadas, ansiosas- as minhas se resumiam a vestir visualmente o que me cercava. Olhos e ouvidos atentos, cabeça aberta, boca fechada. Exercício de silêncio, batizou alguém num dos grupos . As atividades foram divididas, grupão, grupinhos, grupos de criação de interesse , de desinteresse. Grupo de quase tudo. Até agora não consigo ver nada aos pedaços. Sinto um grupão só. Uma grande massa que tenta se amoldar, misturar, e principalmente sentir e sentir-se.

Os medos, expectativas e desejos eram indisfarçáveis . As coisas, e não acho outra palavra para dizer, aconteciam com uma força que ás vezes me punham na defensiva. Até onde essa gente toda quer ir?

Os nomes, tantos, que se misturam na cabeça . A partir do segundo dia, as pessoas, com exceção das já anteriormente conhecidas, passei a chamar de gente.

O olho clínico, cuidadosamente treinado, me fornecia uma enxurrada de informações que tornavam-se difíceis de digerir. Muitas emoções cuidadosamente colocadas, às vezes, desabamentos totais, em outras.

As estrelas faziam por brilhar. Os aspirantes à estrela esforçavam-se mais ainda.

Os primeiros vislumbres, fortíssimos, me foram fornecidos por uma fortíssima, dadivosa e acolhedora. A arquitetura, monástica, convida ao recolhimento.

Com velhos sentimentos do tempo do colégio Benedito, onde amarguei vários anos da minha vida inicial. Padres, monges, médiuns pais-de-santo ou filhos, sei lá, se cruzavam, e eu lá no fundo sentia como se estivessem tentando se provar que, “a minha é que é a certa, muito embora eu aceite a sua” e “eu o perdôo”.

Na minha postura de quem “se Deus existe, isso é problema dele”, me largava solto para lá e para cá.

Quando uma das pessoas foi tomada “tomada por um santo”, um pré-surto, “um surto-pré psicótico”, um sei lá não sei mais quantas coisas, foi danado (3). Enfim , quando uma das pessoas “pirou”(4), as diferentes escolas tentavam resolver o problema. A pessoa, muito forte por sinal, provocava a alternância dos terapeutas ( psicólogos, psiquiatras, terapeutas, médiuns e religiosos).

Tive também impulso de conferir o meu santo com o dele. Fui barrado por uma mulher que descia a escada do coreto (palco do ocorrido), com o terror estampado nos olhos que me sussurrou chorando: “O pessoal lá em cima não quer que ninguém suba”. O olhar da moça deixou-me desarranjado. O primeiro pensamento, o mais cômodo, era de uma dramatização.

No confronto das escolas, o grande vencedor foi a exaustão.

Informações complementares (1997)

(1)- Aldeia de Arcozelo- (1977)- um sítio no estado do Rio de Janeiro, onde Paschoal Carlos Magno ( presente durante todo o evento ) criou espaço dedicado a uma escola de teatro e outras artes. Fim de verão quente. Local ideal para se concentrar duas centenas ou mais de pensadores das mais variadas origens e credo. A proposta era de se fazer um encontro de comunidade, autocentrado , com a “supervisão técnica”de Rogers e seu “staff”de La Jolia.

Elemento comum: o ser humano, seu significado e o seu caminho.

(2)- A presença de Carl Rogers ( o grande mito, vivo) e sua equipe conferia a cada participante o direito e acesso a um experimento que jamais havia sido feito antes por aqui. Uma experiência invulgar avalizada pelo psicólogo /psicoterapeuta mais valorizado na época . Importado exclusivamente do Primeiro Mundo. Além de compartilhar da presença, exuberante e ótima , de um Mestre, havia com certeza a intenção pré-deliberada de expor na vitrine armada, suas capacidades e desejos. Algumas delas incríveis. Pais-de-santo, médiuns (vários), religiosos (muitos), sensitivos (a maioria), cépticos (entre eles eu), aproveitadores(denunciados) e um penetra (consentido). Duas centenas, ou mais, de pessoas, voluntariamente dispostas a passar duas semanas reclusos, e, o mais difícil, convivendo como quiser (ou conseguir). Sem regras e sem “tem que”. Aos desavisados, uma ousadia. Aos iniciáticos, um laboratório. Aos que gostam da coisa, uma viagem. A todos que lá estiveram, uma loucura (no mais amplo sentido da palavra).

(3)- O “encarnado” citado desistiu de ocupar toda a cena, exigindo a presença de Rogers, quando Décio um atlético psiquiatra carioca, com certeza um dos mais fortes do grupo, respondeu-lhe afetuosamente, aos dois abraços estranhos, com dois e duas “porradas” nas costas, com muita raiva e respeito.

O desencarnado se agacha, balbucia algo de ininteligível, e engatinha para se aninhar numa posição fetal no meio de seus acólitos. Crises convulsivas de choro. Pasmo geral, silêncio pesado. O desconforto é trabalhado horas a fio, varando a madrugada. Discute-se a loucura profundamente.

(4)- Os sentimentos e sensações afloram, sem controle, passando de uns participantes para outros. Uma estranha energia circulava naquele grupão. Uma “piração” (estado alterado de consciência) contagiava a todos. Esse “estado” é provocado por uma série de ingredientes: a alteração dos ritmos biológicos de comer, de dormir e de higiene, a alteração das rotinas diárias individuais e principalmente o confinamento voluntário que propiciava intensamente a hiper estimulação dos sentidos e dos sentimentos individuais levando às relações interpessoais potencializadas.

Neste caso a presença de Rogers (e de um sem número de tratadores profissionais de loucura), encorajava os que precisavam enlouquecer e os que foram lá para isso. Os primeiros sintomas desse “estado alterado de consciência” são declarações da tipo – o que acontece aqui é diferente do que acontece lá fora. Como se no Grupo se vivesse uma outra realidade, se comparada com o que acontecia lá fora (realidade externa).

À partir daí, as exposições, por mais estapafúrdias que sejam, passam a Ter um certo sentido. O sentido de ser a característica individual do outro é que nos diferencia tanto. Entrar em contato com essa individualidade e aceita-la como verdadeira no outro é o primeiro passo para o entendimento dessa “piração”.

O alívio começa com a percepção que naquela loucura toda, os outros eram bem mais pirados do que eu. Os que encarnavam entidades, os que falavam com Cristo, os que se viram em vidas passadas e os que se projetavam no futuro; buscavam seus atalhos para o entendimento, com muita conversa e compreensão.

Pela manhã as coisas vão se re-arranjando aos poucos e tudo continua. Aos trancos e barrancos como existissem duas realidades distintas; a diurna e a noturna.

Ao final, o que me parece agora, é que fomos todos mexidos: os inconformados se inquietaram, os aquietados se mexeram; e os cépticos (como eu ) saíram de lá com material suficiente para pensar pelo resto de suas vidas. Com certeza, repensar e criar um novo conceito, mais próximo da realidade, do que possa ser “sentir-se-bem”. A aprendizagem do posso, se quero; ao invés do “tem que”.

Grupo de encontro pode ser um caminho dessa aprendizagem, nada fácil, de simplesmente sentir-se melhor consigo mesmo e com os outros.

A certeza que viver é morrer aos poucos. A validade de ser humano, é valer-se disso. Procriar-se.

AGRADECIMENTOS:

Rachel Léa Rosenberg – Mestra, sábia, amiga, cúmplice, companheira, que muito me aproximou de mim mesmo.

Luiz Alfredo – pelo encontro, por ter proposto e guardado esse texto dezoito anos, e principalmente por se propor a ser o meu irmão querido.

Carl (Caos) Rogers – senhor de idade e de idéias que bagunçou minha cabeça, e me impediu de me tornar mais um psicanalista incongruente.

Oswaldo de Barros – meu primeiro mestre nessas coisas, meu velho de guerra.

Dario- companheiro de risos e choros, de muitos encontros e espantos.

Bandeira – empreendedor incansável, precursor, cavaleiro andante da abordagem tupiniquim.

Valéria Amorosino do Amaral – companheira, mãe de meus filhos e que segura comigo esse rojão, do início. A certeza de que sem ela nada disso seria assim.

E outros tantos que vem se multiplicando, por aí.