Archive | Artigos

As contribuições de Carl Rogers e Paulo Freire para a educação: o caso de um pré-vestibular comunitário

Fernanda Fochi Nogueira Insfrán

* Artigo integrante da Dissertação de Mestrado “Bem Estar Subjetivo e Locus de Controle em Estudantes de um Pré-Vestibular Comunitário: Contribuições da Psicologia Humanista e da Pedagogia Progressista”. Defendida em Dezembro de 2004 no Instituto de Psicologia da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. [Mais...]

Introdução

Investigando os problemas da educação brasileira, desenvolvi alguns estudos sobre fracasso escolar, indicadores educacionais e sociais, formação dos docentes e motivação docente e discente (Insfrán, 2001, 2003). A vasta literatura pesquisada, não me trouxe respostas conclusivas e definitivas sobre “os culpados” da atual situação educacional brasileira, porém para alguns autores como Patto (1999) e Lelis (1989), o problema crônico da educação brasileira está assentado na insuficiência de verbas e, principalmente, na sua malversação.

Assim, buscando uma forma de contribuir com a melhoria da qualidade do ensino brasileiro, venho desenvolvendo um trabalho inovador em educação comunitária. Junto a uma equipe de vinte e cinco voluntários, entre professores, coordenadores e colaboradores, está sendo desenvolvido um curso pré-vestibular comunitário na cidade de Araruama, Estado do Rio de Janeiro. O projeto inicial para o curso foi desenvolvido em novembro de 2002, quando começamos a organizá-lo. As atividades do curso só iniciaram-se em março de 2003, e nesse intervalo de tempo, convocamos professores voluntários, buscamos um espaço emprestado e organizamos o cronograma de execução das atividades.

O objetivo imediato deste curso é aprovar seus participantes – todos estudantes oriundos de escolas públicas da região – nos exames vestibulares das universidades públicas do Estado. Como objetivo mediato, tentamos desenvolver uma aprendizagem mais crítica e reflexiva, através da conscientização e responsabilização dos alunos enquanto sujeitos do processo de ensino-aprendizagem (Rogers, 1972, 1985; Freire, 2000). Daí a inovação anunciada, pois as práticas desenvolvidas promovem melhora da auto-estima dos alunos e, conseqüentemente, maior perseverança na busca dos objetivos, levando-os à autonomia no saber, nunca antes estimulada pelas abordagens tradicionais e tecnicistas, dominantes no ensino público brasileiro.

A partir desse trabalho, foi desenvolvido o presente artigo, que é baseado na pesquisa realizada durante o mestrado da autora, que buscou verificar a eficácia do curso comunitário em alcançar esses objetivos mediatos e imediatos, citados anteriormente. Para isso, a pesquisa baseou-se em conceitos da psicologia positiva, principalmente a Teoria do Bem-Estar Subjetivo (Diener, 1984; Pereira, 1997), e no constructo internalidade/externalidade de Locus de Controle (Dela Coleta, 1987; Romero-Garcia, 1985), para corroborar as seguintes hipóteses:

a. Existe correlação positiva entre internalidade de Locus de Controle e rendimento escolar, como foi demonstrado por alguns estudos, como, por exemplo, Battle e Rotter, 1963 3; Crandall et al., 1962 3; Romero-García, 1980 [1].

b. Os alunos que demonstrarem maior internalidade serão aqueles que alcançarão a meta de aprovação no vestibular e, conseqüentemente, a auto-avaliação do Bem-Estar Subjetivo e qualidade de vida destes será melhor.

Dessa forma, a pesquisa foi desenvolvida em três fases: na primeira e terceira fases, os participantes – todos alunos do pré-vestibular comunitário – responderam a questionários e escalas de satisfação e felicidade (SWB e PANAS)[2] e de Locus de Controle de Levenson (adaptada por Dela Coleta, 1987). A segunda fase correspondeu a todo o trabalho realizado durante os dez meses de atuação do curso em 2003, já que foram consideradas como intervenção, todas as atividades desenvolvidas no Pólo Educacional e Cultural Comunitário de Araruama (PECCA). Assim, a primeira e terceira fases serviram como avaliação diagnóstica e de resultado, respectivamente, sobre o trabalho que foi desenvolvido no período de 10/03/2003 a 5/12/2003, com os alunos do PECCA.

É importante ressaltar que, neste artigo, será apresentada apenas a segunda fase da pesquisa, ou seja, toda a prática da equipe de professores e coordenadores do pré-vestibular, que estava fundamentada, principalmente, na psicologia humanista de Rogers (1972, 1985), aliada a conceitos da pedagogia progressista libertadora de Paulo Freire (2000).

1. Algumas Tendências Pedagógicas

Neste capítulo será discutido, brevemente, as contribuições de Carl Rogers (1972; 1985) e Paulo Freire (2000) para a educação, contrapondo-as à tendência pedagógica tecnicista, baseada na psicologia behaviorista, que ainda hoje é utilizada como prática de ensino em todos os níveis de escolarização.

1.1 Liberal Tecnicista X Liberal Não-Diretiva

Luckesi (1994) mostra que a pedagogia liberal tecnicista tem como principal objetivo preparar recursos humanos para o mercado de trabalho. Ainda segundo Luckesi (1994), inspirada na psicologia behaviorista de Skinner e em autores como Gagné, Bloon e Mager, a pedagogia tecnicista atua no aperfeiçoamento da ordem social vigente, articulando-se com o sistema produtivo. É conteúdo útil à aprendizagem apenas o redutível ao conhecimento observável e mensurável. Elimina-se a subjetividade.

Os métodos empregados vão da instrução programada e moldes sistêmicos, ao controle das condições ambientais que assegurarão a transmissão/ recepção de informações. A relação professor-aluno é técnica, onde o aluno é responsivo e condicionado. A aprendizagem é vista como mudança de comportamento, no mecanismo de estímulo e resposta behaviorista. Utiliza-se de punição, reforço e condicionamento. A avaliação é via provas escritas, que verificam o que o aluno aprendeu do conteúdo passado.

No Brasil, esta tendência foi utilizada nas escolas públicas brasileiras a partir do final da década de 1960. Segundo Luckesi (1994), serviu a objetivos políticos durante a ditadura militar brasileira.

A pedagogia liberal não-diretiva tem como principal expoente, o psicólogo norte-americano Carl Rogers. Além de desenvolver a vergente humanista da psicologia, com a terapia centrada na pessoa, Rogers criou conceitos sobre a autonomia na educação, que vemos nos livros “Liberdade para Aprender” (1972) e “Liberdade para Aprender em nossa década” (1985).

Segundo Rogers (1985), “(…) O único homem instruído é aquele que aprendeu como aprender, como se adaptar à mudança; o que se deu conta de que nenhum conhecimento é garantido, mas que apenas o processo de procurar o conhecimento fornece base para a segurança” (p.65).

Assim, Rogers (1985) recomenda mudar o foco do ensino para a facilitação da aprendizagem, ou seja, não se preocupar tanto com as coisas que o aluno deve aprender ou com aquilo que vai se ensinado, mas sim com o como, porque e quando aprendem os alunos, como se vive e se sente a aprendizagem, e quais as suas conseqüências sobre a vida do aluno.

Dessa forma, um sistema baseado no ensino centrado no aluno, numa abordagem não-diretiva, Rogers fala de aprendizagem como algo experiencial, que ocorre na experiência vivenciada, envolvendo emoções. A essa aprendizagem, Rogers dá o nome de aprendizagem significativa, pois é auto-iniciada, avaliada pelo aprendiz e sua essência é a significação. Ele a diferencia da aprendizagem teórica[3], onde o aprendiz é instruído a fazer ou assimilar algo sem maior compreensão (Rogers, 1972).

Daí o sentido da expressão não-diretiva, pois o papel do professor é o de facilitador, não havendo intervenção, porque esta é inibidora da aprendizagem. O professor deve ajudar o aluno a se organizar, visando facilitar aos alunos os meios de buscarem o conhecimento por si mesmos.

Neste sentido, Rogers (1985, p.125-132) mostra o que um professor que se propõe a ser facilitador da aprendizagem significativa deverá considerar:

- liberdade para a curiosidade do aluno, permitindo que este se remeta a novas direções ditadas pelos seus próprios interesses e abrindo tudo ao questionamento e à exploração;

- como qualidades que facilitam a aprendizagem, talvez a mais básica seja a atitude de autenticidade do facilitador. O professor sendo ele mesmo com os alunos, tendo uma atitude honesta e real quanto ao que sente e pensa em relação àquilo que é produzido pelos alunos, a probabilidade de obter sucesso é maior;

- que o facilitador deve ter apreço, aceitação e confiança com relação ao aluno, suas opiniões e seus sentimentos. Isso faz com que o aluno sinta-se importante, um indivíduo diferenciado e não apenas mais um; e

- a compreensão empática, que significa colocar-se na posição do aluno para compreender suas reações frente àquilo que lhe é apresentado no processo de aprendizagem.

Como métodos de trabalho, indicados por Rogers (1985, p.155-168), temos alguns abaixo:

- trabalhar problemas significativos para os alunos;

- colocar a disposição do aluno, os recursos relevantes a suas necessidades de aprendizagem: livros, artigos, revistas, espaço físico para trabalhar, laboratório, vídeos, músicas, mapas, palestras, pesquisas etc;

- fazer contratos com os estudantes, nos quais estes estabeleçam seus objetivos e seus planos. Isto os ajuda a estabelecer metas que orientem o caminho a percorrer, e são úteis para solucionar dúvidas, reduzindo a insegurança do aluno;

- inserção e envolvimento dos alunos com a vida e os problemas da comunidade;

- incentivo à troca de experiência entre pares, onde eles possam se alternar no papel de facilitar a aprendizagem do outro. Permitir que os alunos escolham se querem trabalhar por sua conta, de forma auto-dirigida, ou pelo método convencional;

- incentivar atividades de pesquisa, dando aos alunos orientações sobre métodos e técnicas de investigação;

- eventualmente a instrução programada pode ser utilizada como ferramenta para aquisição de informações tais como: operar microscópio, introdução à estatística etc.;

- os grupos de encontro (T-Group) se constituem em um recurso que, se bem utilizado, serve para reduzir defesas e ambições que dificultam a comunicação e a expressão entre os alunos; e

- utilizar a auto-avaliação, que se constitui em um dos meios para tornar a aprendizagem auto-iniciada também uma aprendizagem responsável. O facilitador e os alunos chegam a um acordo sobre as maneiras de cada um se avaliar, incluindo critérios a serem seguidos, percepção de pontos fortes e fracos etc.

Infelizmente, no Brasil, sabe-se que poucas escolas particulares adotam esta tendência. Os mais influenciados foram os psicólogos e orientadores educacionais, segundo Luckesi (1994).

1.2 Paulo Freire e a pedagogia libertadora

A “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire (a 1a. edição publicada em 1970), nasce em meio aos duros anos de ditadura militar brasileira, durante a qual o próprio autor foi preso e exilado. Um dos primeiros a desenvolver técnicas de alfabetização de adultos, seu nome tem prestígio internacional na pedagogia.

Paulo Freire foi o primeiro a aplicar as palavras conscientização e conscientizar no campo da pedagogia. Segundo Freire, havia um “medo da liberdade”, medo de que a conscientização das massas, as levassem a um “fanatismo destrutivo” ou a uma “sensação de desmoronamento total do mundo em que estavam esses homens” (Freire, 2000). Para ele, a conscientização possibilita ao sujeito inserir-se no processo histórico, inscrevendo-o na busca de sua afirmação. E é a partir dessa conscientização que se daria a educação realmente libertadora, pois “a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais (…) que são componentes reais de uma situação de opressão” (Freire, 2000, p.24).

Assim, Freire desenvolveu uma pedagogia anti-autoritarismo, de atuação não-formal, onde aluno e professor devem atuar num sentido de mudança da realidade social. Uma educação crítica e problematizadora, que trabalha com “temas geradores” da prática dos alunos e conteúdos advindos dos próprios alunos.

Freire vai criticar as pedagogias tradicional e tecnicista, usando a expressão “educação bancária”, na qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos. Nesta concepção de educação, a criticidade dos educandos é desestimulada e estes se tornam sujeitos passivos na aprendizagem, o que satisfaz, segundo Freire, os interesses dos opressores.

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação (…) não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (…) Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa (Freire, 2000, p.67 e 70).

Segundo Luckesi (1994), a pedagogia libertadora exerceu influência nos movimentos populares e sindicais no Brasil e ainda influencia muitos professores, tanto na rede pública quanto privada, mas principalmente na educação de jovens e adultos (EJA). Daí o motivo pelo qual, a concepção de Freire exerça tanta influência sobre o trabalho desenvolvido no PECCA, com adolescentes e adultos, conforme será relatado em capitulo posterior.

1.3 E por que não adotamos Rogers e Freire em nossas Escolas?

Em seu livro “Liberdade para Aprender”, de 1972, Rogers questiona por que a aprendizagem significativa não é adotada pela educação em substituição ao sistema “auto-frustrador de ensino”. Segundo ele, é porque não se conhecem alternativas exeqüíveis. Mesmo escolas e segmentos que pretendem tornar o ensino baseado na aprendizagem significativa, se vêem “presos” aos métodos de avaliação tradicionais.

Se os estudantes não forem treinados a lidar com métodos tradicionais, terão dificuldades em serem aprovados em vestibulares e concursos, que ainda utilizam os métodos da avaliação somativa. Portanto, não podemos pensar em mudar o sistema de aprendizagem sem mudar os métodos de avaliação e seleção do sistema como um todo.

Percebemos nitidamente, como conseqüência da aprendizagem significativa, auto-iniciada e experiencial, uma formação de aprendizes autoconfiantes. Rogers (1972) mostra, através de três exemplos em três níveis de ensino diferentes, como essa experiência se dá. A experiência relatada por Rogers (1972), de uma professora que desenvolveu a aprendizagem significativa com uma turma de 6a. série se assemelha com a do PECCA, já que o maior problema enfrentado foi o da disciplina, pois os alunos não sabiam como se comportar no ambiente de liberdade estabelecido pela professora. O mesmo ocorreu no PECCA em 2003, conforme será relatado no próximo tópico e no capítulo de resultados.

Já no caso da pedagogia libertadora, o “medo da liberdade”, conforme atesta Freire (2000), medo de que a conscientização leve à anarquia e à desordem, ainda se coloca como empecilho ao desenvolvimento dessa pedagogia problematizadora, e hoje ela está restrita a projetos de educação não-formais.

2. Caso PECCA: Desenvolvendo Autonomia no Saber

2.1 Breve Histórico do PECCA

O principal projeto do PECCA (Pólo Educacional e Cultural Comunitário de Araruama) é o Pré-Vestibular Comunitário, mas desde 2004 temos desenvolvido oficinas de idiomas na ONG, que se constituiu juridicamente em outubro de 2004.

Formado hoje por 25 voluntários, entre professores e colaboradores, a idéia do pré-vestibular surgiu em novembro de 2002, quando se iniciou a formação do grupo de voluntários que levariam a frente o projeto. Nosso objetivo era montar um pólo de educação e cultura na cidade de Araruama, para atender a população de baixa renda oriunda das escolas públicas estaduais e municipais da cidade e de municípios vizinhos. Procuramos as entidades públicas executivas a nível municipal e estadual e tivemos apoio negado, sob a justificativa de não haver necessidade de tal serviço na cidade. Não conseguimos sequer um espaço emprestado para a realização das atividades do projeto.

Mas não nos intimidamos com isso, e em janeiro de 2003, nossa equipe já contava com dez professores voluntários e quatro coordenadores, sendo que dez eram professores licenciados (incluindo três dos coordenadores) e quatro eram estudantes universitários.

Começamos a procurar um local para iniciarmos as atividades, sem atrasar o cronograma de aulas que havíamos preparado e para não frustrar os quase 130 inscritos, que seriam selecionados para 80 vagas “virtuais”, já que ainda não tínhamos um espaço. Conseguimos espaço emprestado numa escola infantil da cidade, onde iniciamos nossas atividades, em março de 2003. Neste momento, já tínhamos uma equipe mais completa, com professores para lecionar todas as oito disciplinas pedidas nos exames vestibulares.

Inicialmente, por não termos nenhum tipo de financiamento e nem sequer local fixo para realizar as atividades, optamos por desenvolver apenas o pré-vestibular comunitário. Trabalhávamos em condições precárias no espaço cedido da escola infantil, pois até mesmo as carteiras utilizadas eram para crianças e a iluminação muito fraca para um curso noturno. Em abril de 2003, conseguimos um convênio com a Primeira Igreja Batista de Araruama (PIBA), que nos cedeu três salas de aula para uso de nossas instalações. Recebemos doação de carteiras de um colégio particular da cidade, e de livros de colaboradores. Abrimos mais vinte vagas e chamamos mais alunos da lista de espera, chegando a ter cem alunos matriculados. O entra-e-sai era constante durante os primeiros meses e a evasão ao final do ano foi bastante expressiva, tendo continuado o curso com freqüência irregular – escolhendo as aulas que freqüentariam – apenas quinze alunos, em novembro de 2003.

Até dezembro de 2004, continuamos nas instalações da PIBA, mas nosso contrato venceu e não conseguimos renovação. Em 2005, retomamos as atividades do pré-vestibular em duas salas alugadas, com capacidade para 40 alunos cada. Além disso, oferecemos oficinas de idiomas (inglês e alemão). Porém, neste ano, tivemos que cobrar mensalidade dos alunos – 10% do salário mínimo – para custear os gastos das salas alugadas.

Contrariando o discurso das autoridades públicas, a demanda por cursos como o nosso é grande, já que não existia nenhum outro na cidade de Araruama, nem particular, em 2003. Porém, apesar de todos os anos termos uma grande procura no início do ano, temos também, sempre, uma alta evasão. Conforme veremos no resultado das entrevistas realizadas com os alunos, a base fraca que estes trazem da escola é um dos principais componentes dessa evasão.

2.2 Métodos Pedagógicos baseados em Rogers e Freire

Algumas das estratégicas propostas por estes dois autores, entre outros, foram utilizadas pela equipe de professores do PECCA, com algumas adaptações ao contexto de pré-vestibular comunitário, mas sempre visando desenvolver a autonomia e responsabilização dos alunos no processo ensino-aprendizagem, através da aprendizagem significativa, desenvolvendo o senso crítico e reflexivo.

Conforme visto anteriormente, o método não-diretivo de pedagogia, proposto por Rogers (1972;1985) deixa o aprendiz livre para desenvolver uma aprendizagem significativa sobre o conteúdo que quiser, ou seja, estará livre para se dedicar àquilo que realmente for de seu interesse. No nosso contexto, não é possível desenvolver um método assim, por isso foi proposto o método semi-diretivo, que não utiliza as contribuições de Rogers na íntegra, por ser necessário capacitar o público alvo para avaliações somativas, como os vestibulares e concursos públicos. Logo, estes alunos não poderiam dedicar-se somente ao que lhes é significativo, tendo que apreender todo o conteúdo programático dos exames.

A seguir, uma síntese das atividades desenvolvidas pelo curso pré-vestibular do PECCA, nos períodos letivos de 2003 a 2005, de acordo com as respectivas finalidades destes:

- Contrato de trabalho entre o curso e os alunos, onde foi exposto os objetivos do curso e qual a responsabilidade dos alunos no processo. Assim, durante a seleção para os anos letivos respectivos, foram feitas reuniões entre a coordenadora e os candidatos à vaga no curso, para que fossem apresentadas essas informações e discutido com eles o papel de cada um no aprendizado que iriam realizar no curso, durante o ano. Explicamos a necessidade de respeitar o regimento interno, para o bom funcionamento do curso e melhor aproveitamento deles. Este foi o primeiro momento em que discutimos a idéia de que os alunos são os sujeitos do conhecimento, que depende do esforço e perseverança de cada um, atingir o objetivo desejado (Rogers, 1985);

- Foi verificado na avaliação diagnóstica de conhecimentos gerais, realizada durante a seleção de alunos para os respectivos anos letivos de 2003, 2004 e 2005, que os alunos iniciariam o curso, alienados do mundo, por desconhecerem seus direitos e deveres e todo o contexto em que estão inseridos, ou seja, desconhecem os problemas brasileiros e os da própria comunidade. Para reduzir esta alienação, foi realizado um trabalho de conscientização do papel de cada um enquanto cidadão, através de debates, exposição de assuntos sócio-político-econômico-culturais nos chamados Círculos de Leituras. Nesta atividade, trabalhamos assuntos atuais retirados de jornais e revistas e debatemos em sala, visando desenvolver o senso crítico dos alunos (Freire, 2000);

- Disponibilizamos todo tipo de informação para os alunos, desde livros, artigos, revistas, vídeos, músicas, até palestras sobre profissões e orientação profissional. Assim, além de estarem escolhendo aquilo que mais lhes estimula a estudar, os alunos estariam facilitando a aprendizagem significativa, conforme método proposto por Rogers (1985);

- Como incentivo à troca de experiências entre pares, desenvolvemos o programa de monitorias, onde o aluno escolhe a matéria que tem maior interesse e passa a receber orientação do professor para acompanhar os colegas na resolução de problemas referentes a tal matéria (Freire, 2000);

- A instrução programada foi utilizada como ferramenta em alguns conteúdos das matérias de ciências exatas, conforme Rogers (1985) diz ser necessário;

- Trabalhamos dinâmicas de grupo com objetivo de desenvolver a percepção social do grupo – através da Janela Johari (Fritzen, 1978), a auto-estima e motivação individual (Biaggio, 1977 apud Rodrigues, 1981) e a internalidade de locus de controle, ou seja, maior perseverança (Romero-Garcia, 1985). Além disso, estimulamos a exposição e criticidade dos alunos até mesmo durante aulas expositivas;

- Oficina de redação, com a utilização de técnicas de dinâmica de grupo com o objetivo de discutir temas do contexto do grupo e após debates sobre os temas, estimular os alunos a escrever, como forma de praticar a redação deles;

- Realizamos um Ciclo de Palestras sobre Profissões, para o qual convocamos profissionais e estudantes das áreas de interesse dos alunos e também de áreas desconhecidas ou “pouco famosas”. Esta atividade, de grande interesse dos alunos, teve como objetivo informá-los sobre o curso, as possibilidades de pós-graduação na área e em áreas afins, o contexto acadêmico, o mercado de trabalho, as dificuldades e facilidades e o cotidiano da profissão apresentada. Iniciou-se, aí, o processo de desmistificação de alguns cursos e descoberta de outros, que seria fundamental para o trabalho realizado posteriormente, na orientação profissional (Bock, 2002); e

- Após o ciclo de palestras sobre profissões, iniciamos o trabalho de orientação profissional (OP) no PECCA, em agosto de 2003. A coordenação do projeto ficou sob responsabilidade do psicólogo Fábio Nogueira Pereira. Tínhamos como objetivo, nesta atividade, estimular nos alunos uma escolha consciente e responsável, para que eles aprendessem a pesar todos os fatores preponderantes na escolha e, dessa forma, fizessem a escolha acertada, sabendo que esta não precisaria ser a definitiva (Bock, 2002; Pereira, 2003).

3. Resultados Observados

Depois de três anos de funcionamento do curso e alguns resultados de sucesso _ que serão tratados ainda neste capítulo, são relevantes duas constatações que fizemos:

i) O ensino médio público, que forma os nossos alunos, é de baixa qualidade, de acordo com avaliação diagnóstica feita no início letivo dos três anos. Os ex-alunos que cursaram o pré-vestibular em 2003 e voltaram ao curso em 2004, foram os que melhores resultados tiveram na avaliação diagnóstica de 2004, o mesmo acontecendo de 2004 para 2005; e

ii) Alguns alunos têm grande dificuldade de adaptar-se ao método semi-diretivo[4], pois estão acostumados ao ensino mecânico, ao condicionamento e ao reforço, da educação tecnicista ou tradicionalista a que foram submetidos. Quando se percebem num contexto educativo livre, onde são estimulados a participar e expor suas idéias, num primeiro momento sentem-se confusos e despreparados, sem saber como lidar com isso. Conforme relato dos próprios alunos, muitos abandonaram o curso por não entenderem seus objetivos, pois esperavam um modelo conteudista ao qual já estavam habituados.

Todavia, percebemos isso a tempo de modificar determinadas práticas e enfoques. Hoje, trabalhamos num contexto mais direcionado, no início do curso, cobrando mais disciplina e conscientizando-os sobre a responsabilidade deles na própria aprendizagem. Aos poucos e no seu tempo, o aluno vai desenvolvendo sua autonomia e se tornando livre para fazer suas escolhas.

3.1 Avaliação dos alunos sobre o PECCA e sobre si mesmos

A partir deste tópico, iniciamos a análise da entrevista realizada na terceira fase da pesquisa. As perguntas tratavam de questões relacionadas à vida do participante e ao curso. As respostas foram analisadas pelo método de análise de conteúdo, e categorias importantes foram criadas, com respostas em relação à auto-realização e contribuições do curso para a vida deles.

Foram entrevistados[5] 28 ex-alunos do PECCA que cursaram o pré-vestibular no ano letivo de 2003, sendo que estes foram divididos em três grupos, a saber:

1) Grupo I: 12 ex-alunos aprovados nos vestibulares públicos e particulares e em concursos públicos;

2) Grupo II: três alunos que cursaram o PECCA em 2003 e voltaram a freqüentar o curso em 2004;

3) Grupo III: 13 alunos que evadiram do curso antes do término em 5/12/2003.

Quando questionados sobre “como imagina o seu futuro?”, 15 participantes (53,6% de 28) deram pelo menos uma resposta relacionada à categoria auto-realização. Verificamos que das 10 categorias criadas, seis se referem a algum tipo de auto-realização: casa própria, dinheiro, trabalho, estabilidade, profissão e auto-realização. As respostas dadas a estas categorias somam 69% do total (49 respostas em 71 dadas pelos 28 entrevistados).

Vale evidenciar que as categorias trabalho e profissão diferem entre si, pois em profissão foram consideradas as respostas que faziam referência à carreira, profissão que necessita de estudo. Já em trabalho, foram consideradas as respostas que não faziam referência a uma profissão ou formação superior.

Abaixo, um exemplo de resposta que contempla seis categorias diferentes:

“Quero estar trabalhando, ser independente, ter uma família, uma casa, uma vida estável, boa. Estar em paz com todos” (Bruna, 23 anos, grupo III).

Agora vemos, na tabela 1, as perspectivas de futuro de 28 entrevistados.

Tabela 1: Respostas dadas à pergunta: “Como você imagina o seu futuro?”

(de acordo com as categorias criadas)

Auto-realização: foram aceitas nessa categoria respostas relacionadas à realização profissional e pessoal, independência, esforço próprio, realização de objetivos e cumprimento de metas. Exemplos: “me imagino realizada, alcançando meus objetivos”; “conquistar as coisas por mim mesma”; “evoluir culturalmente”.

15

Profissão: nesta categoria foram alocadas as respostas que se referem à carreira, ou seja, trabalho qualificado que exige estudo. Exemplos: “formada na faculdade”; “estudando, sempre estudando. Não vou parar, quero crescer profissionalmente”; “fazendo várias pesquisas em História, escrevendo livros, dando aula”; “sendo um gestor empresarial”.

12

Família: fazem parte desta categoria respostas referentes a casamento, filhos e família. Exemplos: “ter filhos”; “estar casado, com família”; “um lar feliz, principalmente para minha filha”.

11

Estabilidade[6]: Exemplos: “buscar uma certa ‘estabilidade’ financeira”; “quero uma vida estável”; “vejo com uma situação estável”.

7

Trabalho: diferente da categoria profissão, esta engloba respostas que não contemplam estudo e formação superior. Exemplos: “emprego decente que não trabalhe sábado, nem domingo, nem feriado; bem remunerado”; “ter bom emprego”.

6

Saúde e bem-estar: Exemplos: “estar bem comigo mesma”; “ter saúde para curtir a vida”; “felicidade, não adianta nada ter isso tudo [dinheiro, família] e ser infeliz”; “estar em paz com todos”.

6

Dinheiro: nesta categoria estão as respostas referentes a dinheiro, conquista de bens e boa situação financeira. Exemplos: “desejo ter”; “bem no aspecto financeiro”; “com renda boa”.

5

Casa própria: Exemplos: “conquistar a minha casa, meu espaço”; “ter uma casa que me dê conforto”; “ter uma casinha com cerca branca, perto do mar”.

4

Relações Interpessoais: Exemplos: “conhecer novas pessoas”; “manter boas relações sociais”; “estar bem com as pessoas e com a família, que é a base de tudo”; “poder ajudar as pessoas”.

4

Atividade de Lazer: “Viajar”

1

Quanto às perguntas relacionadas ao curso, as perguntas abordadas aqui compuseram a entrevista dos três grupos. Porém, para o grupo II, foi perguntado o porquê de terem se matriculado novamente no PECCA.

A primeira pergunta buscava saber o que o entrevistado considerava positivo e negativo no curso, no geral ou em algum aspecto específico. A segunda pergunta se refere ao aprendizado do aluno, buscando saber de que forma e através de que métodos o curso colaborou para a melhora no aprendizado deles. Esta avaliação, além de trazer dados para a pesquisa, é importante para sabermos se a metodologia utilizada no curso surte resultados e agrada ao público alvo e o que é preciso modificar para os próximos anos.

Assim, na tabela 2, temos os resultados da primeira pergunta:

Tabela 2 : Freqüência de Respostas dadas à pergunta: “Cite ao menos dois aspectos do curso que você considera positivos e dois negativos”.

(de acordo com as categorias criadas)

ASPECTOS POSITIVOS

Professores: boa vontade; disposição; empenho; dedicação; interesse. Exemplos: “a colaboração de voluntários”; “vontade gratuita”; “os professores eram dedicados”.

14

O curso ser comunitário: a iniciativa do curso; a ajuda àqueles que não podem pagar; por ser o primeiro de Araruama; por ser sem fins lucrativos. Exemplos: “a iniciativa do curso em si, que foi ótima, pois não tinha”; “a chance que dá para quem está interessado em estudar”.

11

Coordenação: porque teve “coragem e ousadia” de iniciar o curso; empenho; compreensão. Exemplos: “determinação da coordenação”; “sua boa vontade [falando à coordenadora Fernanda], né, que abriu o curso, que não tinha em Araruama”.

7

Incentivo: por parte da coordenação, dos professores e do curso como um todo. Exemplos: “Incentiva todo mundo, principalmente as pessoas com baixa renda, a estudar; que nem tudo está perdido, podendo sim, chegar lá”; “Acho muito bom o incentivo que os professores dão aos alunos nas áreas específicas”.

5

As aulas: quando se referem a alguma aula específica ou a todas. Exemplos: “as aulas de atualidades, achei legal de aprender”; “as aulas eram dinâmicas, nada de ‘lero-lero’”; “eram legais”.

4

Atividades extras: monitorias e palestras. Exemplos: “a monitoria, que foi um passo, para futuras apresentações na faculdade”; “as palestras que traziam pessoas do meio profissional” [lembrou das palestras de Nutrição e do IBGE].

4

Organização/ disciplina: “organização, mesmo tendo bagunça pelos alunos, era organizado”; “disciplina do curso”.

4

Tudo é positivo: “Tudo que contribui para o bem social é positivo, principalmente na área de educação, que considero ser a chave do progresso, de uma nova sociedade”.

2

ASPECTOS NEGATIVOS

Alunos: falta de seriedade, de perseverança; desinteresse; desistência destes desestimula os professores. Exemplos: “falta de perseverança dos alunos, deram logo o braço a torcer, se desestimulando, acovardaram-se diante das dificuldades”; “alunos que desistem e desanimam o próprio professor”.

17

Professores: ausência e escassez; faltas; desistência de alguns; má vontade para explicar; foram desmotivados pelo desinteresse dos alunos. Exemplo: “Os professores que desistiram, que no começo vieram e depois saíram”.

11

Organização e estrutura: falta de um programa de curso; horário desorganizado; cadeiras desconfortáveis; falta de sede própria. Exemplos: “era bom ter o próprio espaço”; “faltou cronograma (programa de curso)”; “Física é importante e foi pouco trabalhado, era muito corrido”.

7

Falta de apoio: poucos voluntários; falta de apoio institucional. Exemplos: “falta de apoio de empresários”; “falta de apoio dos meios competentes (legais) que poderiam dar ajuda maior”; “falta de pessoas voluntárias”.

3

Não tem/ não respondeu

3

Para aspectos positivos, tivemos 51 respostas divididas em oito categorias diferentes. Percebemos uma valorização do curso por ser comunitário e ajudar àqueles que não podem pagar, pois 11 respostas foram enquadradas nessa categoria, o que corresponde a 21,6% (11 de 51 respostas). Além disso, vimos que os entrevistados valorizam os professores do curso, já que 27,5% das respostas (14 de 51) citaram os professores como ponto positivo do curso.

Apesar de terem sido pedidos dois aspectos positivos, 13 alunos disseram apenas um único aspecto ou dois aspectos que se encaixavam na mesma categoria criada. No exemplo abaixo, em que a entrevistada cita dois aspectos da categoria curso comunitário:

“É um curso bom, tentando ajudar as pessoas que não podem pagar, e foi o primeiro em Araruama” (Fátima, 40 anos, grupo III).

Agora, passaremos aos pontos negativos do curso, apontados pelos alunos.

Tivemos 41 respostas divididas em cinco categorias diferentes. Uma parcela dos 28 entrevistados considerou o desinteresse e falta de seriedade dos colegas como principais pontos negativos do curso _ 41,4% das respostas foram dessa categoria. Mas, é importante ressaltar que alguns desses alunos (quatro entrevistados) estabeleceram relação de causalidade entre o desinteresse dos alunos e a desistência dos professores. Vemos isso claramente, nas falas a seguir:

“Prejudicou o curso, a desistência das pessoas que não levaram a sério, o que desestimulou os professores” (Melissa, 19 anos, grupo I).

[É negativo] “o curso começar legal no início e depois os alunos e professores desistirem, começando pelos alunos. Acho que isso desestimula os professores” (Jessica, 22 anos, grupo III).

Notamos, também, que a categoria professores aparece como ponto positivo e como ponto negativo. Positivamente, os alunos citaram a boa vontade dos professores em dar aulas voluntariamente, bem como a dedicação e o empenho. Negativamente, o que mais foi citado sobre os professores, foi a escassez e desistência dos mesmos, para alguns condicionada ao comportamento dos alunos desinteressados. Vejamos abaixo, o que Joana considerou como positivo e negativo:

[Positivo] “O fato dos professores estarem aqui à disposição, sem receber nada, só a gratificação de saber que as pessoas estão aprendendo”. [Negativo] “Falta de interesse dos alunos desmotiva os professores. Os alunos acham que não são capazes, [por isso desistem do curso]” (Joana, 20 anos, grupo I).

3.2 Impressões dos alunos sobre as atividades desenvolvidas

Neste tópico, é interessante observar a fala dos entrevistados em relação a algumas atividades do curso, que foram baseadas em Rogers e Freire.

No caso do Círculo de Leituras e das Oficinas de Redação, estas foram as atividades que mais rapidamente demonstraram resultados. Os alunos se mostram mais interessados em discutir assuntos de conteúdo político e econômico, e já questionam e criticam os assuntos que abordávamos semanalmente nas aulas. Em 2004, os próprios alunos demandaram discussões políticas, já que estávamos em ano eleitoral. Como resultado dessas discussões, fomentamos a Oficina de Redação com variados temas, que foram desenvolvidos nos textos dos alunos.

Abaixo a impressão de alguns entrevistados:

“As conversas com você nas aulas de Círculo de Leituras [falando à coordenadora Fernanda], abriram bastante a cabeça” (Fabiana, 19 anos, grupo I).

“Os círculos de leitura, em que eu coloquei a minha idéia e pela primeira vez alguém colocou uma idéia contrária. Você começa a refletir. Antes, você tem a sua idéia e acha que é só isso, porque não conhece outro ponto de vista. No colégio nunca tinha esse tipo de reflexão” (Renato, 22 anos, grupo II).

“Aprendi alguma coisa. Na parte de atualidades, sobre o Mercosul…” (Fátima, 40 anos, grupo III).

Quanto ao Programa de Monitorias, apesar de poucos alunos terem se interessado, talvez por insegurança em passar seus conhecimentos aos colegas, os três alunos monitores de 2003 foram aprovados em universidades públicas. São eles:

- Joana, monitora de História e aprovada em História na Uerj;

- Leonardo, monitor de Português e aprovado em Letras na Uerj e na UFF;

- Melissa, monitora de Geometria e aprovada em Matemática na Uerj e no CEDERJ.

Em 2004, só tivemos um monitor, que trabalhou exercícios sob a orientação do professor de Física. Vejamos o que ele disse sobre a experiência:

“Pensei que fosse fácil, mas fiquei nervoso. Foi um passo, para futuras apresentações na faculdade”. (Renato, 22 anos, grupo II, aprovado em 2004 para Enfermagem pelo PROUNI).

Treze entrevistados (43,3% do total) consideraram que somente por estar estudando já sentiram melhora no aprendizado. As atividades extra-aula, como Círculo de Leituras e Palestras sobre Profissões, tiveram onze citações, que correspondem a 25,6% do total de 43 respostas a essa pergunta.

Apesar de ter havido poucas palestras em 2003, estas agradaram a alguns.

[O curso] “levou pessoas do Rio para dar palestras”. [Lembrou da palestra do IBGE com riqueza de detalhes] (Júlio, 23 anos, grupo I).

Porém, o que consideramos mais relevante, no geral, para todos os alunos, foi a oportunidade de estarem estudando e tendo contato com informações sobre cursos superiores, o sistema acadêmico, o mercado de trabalho, as carreiras, entre outras informações. Carina vai ainda mais longe e diz que a contribuição foi maior:

“Antes de surgir o curso, eu achava faculdade uma coisa impossível. O curso é que abriu a possibilidade, me deu mais entendimento de ver que era possível fazer uma faculdade. No ensino [médio] que nós temos, não temos preparo para isso” (Carina, 24 anos, grupo III).

3.3 Resultados Concretos de 2003

No primeiro ano de curso, tivemos a satisfação de aprovar quatro alunos em universidades públicas (UERJ, UFF e UENF), um aluno em concurso público, e sete estão cursando universidades particulares. Em 2004, dois alunos foram aprovados no vestibular CEDERJ, um está cursando Direito na UERJ e 15 foram aprovados pelo ENEM/PROUNI e estão cursando universidades particulares com bolsa de estudos. Abaixo, a relação dos 12 aprovados – que foram entrevistados para a pesquisa, que carreiras estão seguindo e o período que cursam na data da presente deste artigo:

- André: aprovado nos concursos públicos da Prefeitura de Araruama e Arraial do Cabo, RJ. Trabalhou em 2004 como Guarda Municipal em Arraial e continuou estudando no PECCA, até ser aprovado na Escola de Marinheiros, onde está agora.

- Cláudio: aprovado na Unigranrio (particular) de Silva Jardim, no curso de Exploração do Petróleo. Está no 4º. Período.

- Fabiana: aprovada no curso de Biologia da Universo (particular) de Niterói. Está no 4º. Período.

- Gabriel: foi aluno do PECCA somente no 1º. Semestre de 2004. Aprovado em julho de 2004 no vestibular do CEDERJ de Saquarema, (convênio das universidades públicas do Estado, para desenvolver cursos de licenciatura no interior do Rio de Janeiro). Está no 3º. Período de Matemática.

- Helena: aprovada na Universo de Niterói (particular), no curso de Geografia. Está no 5º. Período.

- Joana: aprovada em fevereiro de 2003, na Uerj, no curso de História, não foi informada da data de matrícula e perdeu a vaga. Voltou a cursar o PECCA em 2004 e foi aprovada no curso de Economia Doméstica da UFRRJ. Está cursando o 2o período.

- Júlio: aprovado na Ferlagos (particular) de Cabo Frio, cursa o 4º. Período de Biologia. Faz estágio em Biologia Marinha e dá aulas periódicas no PECCA.

- Leonardo: aprovado nos vestibulares da Uerj e UFF para o curso de Letras, optou por cursar a Uerj. Está no 4º. Período e é bolsista de Iniciação Científica desde o 2o período. Dá aulas periódicas de Literatura no PECCA.

- Melissa: aprovada em fevereiro de 2003, na Uerj, no curso de Matemática. Assim como Joana, perdeu a data de matrícula e conseqüentemente, a vaga. Voltou ao PECCA em 2004, e tentou vestibular para o CEDERJ de Saquarema, sendo aprovada no curso de Matemática. Cursa o 3º. Período.

- Paulo: aprovado no vestibular da Estácio de Sá (particular) de Cabo Frio, para o curso de Administração de Empresas. Está no 5º. Período.

- Sofia: aprovada no Unigranrio (particular) de Silva Jardim, no curso de Exploração do Petróleo. Está no 4º. Período.

- Vitor: aprovado na Universo (particular) de Niterói. Está cursando o 4º. Período de Direito.

4. Considerações Finais

No que concerne ao conjunto dos objetivos empíricos, os resultados verificados mostraram que o curso atingiu seus objetivos imediatos de conseguir, em seu primeiro ano de funcionamento, aprovação de mais de 10% de seus alunos em universidades e concursos públicos e em universidades particulares.

Quanto aos objetivos mediatos, de desenvolver uma aprendizagem mais crítica e reflexiva, seguindo influências teóricas de Rogers (1972, 1985) e Freire (2000), os resultados são lentos, mas já percebemos que assuntos que os alunos jamais haviam discutido ou questionado, como política e economia, estão se tornando significativos para eles. Agora, eles passaram a perceber o quanto esses assuntos “chatos e complicados” influem na vida de cada um de nós. Somente extinguindo a alienação predominante entre os jovens, de todas as classes, conseguiremos efetivamente realizar alguma mudança social, individual e coletiva (Campos, 1996).

Assim, concluímos que a educação tecnicista/ tradicionalista a que foram sujeitos os alunos do curso, não os fez desenvolver autonomia e responsabilidade com o saber. Isto prejudicou o desenvolvimento das atividades que demandavam maior comprometimento e participação ativa deles. Dessa forma, percebemos que a passagem da dinâmica de escola _ tecnicista condicionante, para a dinâmica de um curso que necessita do engajamento de seus participantes, deve acontecer lentamente e de forma adaptada.

Percebemos, ainda, que não podemos utilizar todos os ensinamentos de Rogers (1985) como gostaríamos. Infelizmente, o sistema de ensino vigente nos obriga a trabalhar nos moldes tradicionais, principalmente porque os concursos públicos e vestibulares para os quais preparamos nossos alunos, utilizam avaliações somativas nos seus processos seletivos.

Dessa forma, não podemos nos furtar de trabalhar todos os conteúdos de ensino médio, inclusive aqueles que não são nada significativos para o aluno a priori. A diferença está na forma de passar esses conteúdos: nas matérias de ciências exatas, a equipe trabalha todos os conteúdos mostrando ao aluno, o quanto aquilo que ele está aprendendo vai ser importante para o resto de sua vida.

Mas, acreditamos que este trabalho coloca em primeiro plano discussões sobre o saber-fazer do professor na escola. Além disso, é necessário repensar a questão da dimensão do espaço e do tempo da escola. “A sala de aula deve deixar de ser o lugar das carteiras enfileiradas para se tornar um local em que professor e alunos podem realizar um trabalho diversificado em relação a conhecimento e interesse. O papel do professor deixa de ser o de “entregador” de informação para ser o de facilitador do processo de aprendizagem”(Valente e Almeida, 1997).

Seguindo esta perspectiva, o aluno deixa de ser passivo, de ser o receptáculo das informações, para ser ativo aprendiz, construtor do seu conhecimento. Portanto, a ênfase da educação deixa de ser a memorização da informação transmitida pelo professor, e passa a ser a construção do conhecimento, realizada pelo aluno de maneira significativa sendo o professor o facilitador desse processo de construção (Rogers, 1985; Valente e Almeida, 1997).

Muitos autores concordam com esta idéia, mas mudar o paradigma educacional atual, não é um trabalho fácil. Existem muitos obstáculos à implantação de uma pedagogia problematizadora. Como o próprio Freire (2000) diz, não é de interesse dos opressores que as massas se conscientizem, pois perceberão assim as injustiças e mazelas a que estão sujeitas na desigual sociedade capitalista.

Portanto, acreditamos que desenvolvendo a autonomia do saber (Rogers, 1972), podemos chegar à pedagogia problematizadora (Freire, 2000). Somente um sujeito responsável pela sua aprendizagem e perseverante quanto a suas metas, é capaz de se tornar crítico e reflexivo sobre o contexto em que vive e atuar na modificação deste meio.

Acreditamos que aqueles que passam pelo curso, certamente saem modificados, mesmo que não percebam isto num primeiro momento. Tornam-se mais reflexivos e passam a desenvolver uma liberdade responsável dentro e fora da sala de aula, sentindo que fazem parte do mundo. Os costumes e vícios arraigados trazidos da escola pública, finalmente vão se desfazendo.

Referências Bibliográficas

BOCK, Sílvio D. Orientação Profissional: a abordagem sócio-histórica. São Paulo: Cortez, 2002.

CAMPOS, R. H. F. Introdução: A Psicologia Social Comunitária. In R. H. F. Campos (org), Psicologia Comunitária: da solidariedade à autonomia. (pp. 9-15). Petrópolis: Vozes, 1996.

DELA COLETA, Maria F. Escala multidimensional de locus de controle de Levenson. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 39, n. 2, p. 79-97, 1987.

DIENER, E. Subjective well-being. Psychological Bulletin, 1984.

FREIRE, P. A pedagogia do Oprimido. 28a Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

FRITZEN, S. J. Janela de Johari. Petrópolis: Vozes, 1978

INSFRÁN, Fernanda F.N. Educação e Emprego: Problemas e Soluções para o Caso Brasileiro. Monografia de Conclusão de Curso. Rio de Janeiro: Faculdade de Economia, UERJ, 2001.

______________________. Formação Docente X Reprovação Discente: O Caso Angra dos Reis. Monografia de Conclusão do Curso de Pós-Graduação Latu-Sensu em Avaliação Educacional. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação, UERJ, 2003.

LAWRENCE, P. & LIANG, L. Structural Integration of the Affect Balance Scale and the Life Satisfaction Index A: Race, Sex and age differences. Psychology and Ageing, n. 3, 1988.

LELIS, I. A. A Formação da Professora Primária: da denúncia ao anúncio São Paulo: Cortez, 1989.

LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994.

PATTO, M. H. S. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. 2a.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999

PEREIRA, C.A.A. Um panorama histórico-conceitual acerca da subdimensões de qualidade de vida e do bem-estar subjetivo. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, 1997, 49(4), 32-48.

PEREIRA, F. N. Educação e Escolha Profissional no Brasil Atual. Monografia de conclusão do curso de Psicologia. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2003.

RODRIGUES, A. Aplicações da psicologia social: à escola, à clínica, às organizações, à ação comunitária. Petrópolis: Vozes, 1981.

ROGERS, C. R Liberdade para Aprender. Belo Horizonte: Interlivros, 1972.

___________, Liberdade para Aprender em nossa década. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

ROMERO-GARCIA, O. Motivacion y Rendimiento Academico: Reportes de investigación. Mérida: Ed. Logro, 1985

VALENTE, J. A. e ALMEIDA, F.J. (1997) Visão Analítica da Informática na Educação no Brasil: a questão da formação do professor. Revista Brasileira de Informática na Educação. V1, setembro de 1997.

WATSON, D.; CLARK, L.A.; TELLEGEN, A. Development and Brief Measures of Positive and Negative Affect: The PANAS Scales. Journal of Personality and Social Psychology, Vol 54, Nº 6, pp 1063-1070, 1988.

[1] Apud Rodrigues, 1981.

[2] Lawrence e Liang, SWB (Subject Well Being), 1988; Watson, Clark e Tellegen, PANAS (Positive Afect and Negative Afect Scales), 1988.

[3] Entende-se por aprendizagem teórica, aquela onde o aluno não vivencia e significa, na prática, aquele conhecimento que está aprendendo. Por isso Rogers (1972) usa o termo “teórica”, pois é uma aprendizagem que se limita à teoria.

[4] Termo cunhado pela autora, para se referir ao método usado pelo PECCA, que surgiu de uma adaptação do método não-diretivo de Rogers e da educação direcionada tradicionalista (ou “bancária”, segundo Paulo Freire).

[5] Os nomes são fictícios para preservar o anonimato dos participantes, que autorizaram a utilização destes dados.

[6] As respostas relacionadas a “vida estável” e “estabilidade financeira” não entram na categoria dinheiro, porque estas respostas não configuram ambição, por isso foram alocadas na categoria estabilidade.

Aprendizagem Centrada na Pessoa: Contribuição para a compreensão do modelo educativo proposto por Carl Rogers.

Aprendizagem Centrada na Pessoa: Contribuição para a compreensão do modelo educativo proposto por Carl Rogers.

Fernanda de Mendonça Capelo

*Publicado na Revista de Estudos Rogerianos A Pessoa como Centro Nº. 5 Primavera-Verão 2000

Resumo

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica que teve como pano de fundo a obra de Carl Rogers no âmbito da Abordagem Centrada na Pessoa aplicada à educação e que designou por Aprendizagem Centrada no Aluno.
[Mais...]
Pretende-se evidenciar a determinante importância do contribuição deste autor, da corrente humanista da Psicologia, para uma maior eficácia no processo de aprendizagem, bem como para as Teorias Contemporâneas da Educação.

Como propostas são apresentados os pressupostos fundamentais do modelo da Abordagem Centrada na Pessoa, assim como os seus princípios e atitudes aplicados à Educação.

Palavras-Chave

Abordagem Centrada na Pessoa – Educação – Aprendizagem Centrada no Aluno – Processo de Aprendizagem – Relação Pedagógica – Atitudes Facilitadoras – Qualidade

Abstract

This project was accomplished after a bibliographical research on the works of Carl Rogers on the Person-Centred Aproach.

The aim of this communication is to highlight the decisive importance of Rogers’ humanistic Psychology and is contribution towards an improvement in the teaching/learning process as well as the Contemporary Theories of Education.

The basic attitudes of Person-Centred Approach model are present as propositions along with its principles and assumptions applied to Education.

Key Words

Person-Centred Approach – Education – Teaching/Learning Process – Pedagogic Relation – Quality – Basic Attitudes

“Em verdade, é pouco menos que um milagre que os métodos modernos de educação não tenham ainda estrangulado inteiramente a sagrada curiosidade da inquirição, pois esta delicada planta, além de estímulo, necessita principalmente de liberdade; sem esta, ela é inevitavelmente levada à destruição e à ruína.”

Albert Einstein

Introdução

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica que teve como pano de fundo a obra de Carl Rogers, no âmbito da Abordagem Centrada na Pessoa aplicada à educação e que designou por Aprendizagem Centrada no Aluno.

Pretende-se evidenciar a determinante importância do contribuição deste autor, da corrente humanista da Psicologia, para uma maior eficácia no processo de aprendizagem, bem como para as teorias contemporâneas da Educação.

Assim, o objetivo fundamental será o de tentar estabelecer uma ponte entre os princípios enunciados por Carl Rogers, no âmbito da Abordagem Centrada para a Educação e o processo de aprendizagem, partindo do pressuposto de que estes princípios conduzirão a uma melhoria na relação pedagógica e conseqüentemente do processo de aprendizagem.

Ao tomar esta posição, temos em mente a afirmação de Carl Rogers de que o Sistema Educativo deverá ter sempre como objetivo o desenvolvimento das pessoas, de uma forma plena e, simultaneamente, que as conduza à sua auto-realização (1974: 380).

Não foi por acaso que o autor agora referido considerou que o homem educado é o homem que aprendeu a aprender (Rogers, 1986: 126), e que dentro do Sistema Educativo como um todo, deverá implementar-se um clima propício ao crescimento pessoal do aluno (Rogers, 1986:244). Segundo o autor “Tem-se de encontrar uma maneira de desenvolver, dentro do sistema educacional como um todo, e em cada componente, um clima conducente ao crescimento pessoal; um clima no qual a inovação não seja assustadora, em que as capacidades criadoras de administradores, professores e estudantes sejam nutridas e expressadas, ao invés de abafadas. Tem-se de encontrar, no sistema, uma maneira na qual a focalização não incida sobre o ensino, mas sobre a facilitação da aprendizagem autodirigida” (Ibidem).

Como propostas para este trabalho, são apresentadas os pressupostos fundamentais do modelo da Abordagem Centrada na Pessoa, assim como os seus princípios e atitudes aplicados à Educação, no modelo a que Rogers designou por Aprendizagem Centrada no Aluno.

I – A Abordagem Centrada na Pessoa: Pressupostos Fundamentais

Psicólogo americano, Carl Rogers foi pioneiro no desenvolvimento de métodos científicos que tinham como objetivo o estudo da mudança nos processos psicoterapêuticos, vindo a criar e a desenvolver um modelo de intervenção que designou inicialmente por Terapia Centrada no Cliente.

A Abordagem Centrada na Pessoa foi uma expressão utilizada por Carl Rogers para referir uma forma específica de entrar em relação com Outro, estando implícito um modo positivo de conceitualizar a pessoa humana. Esta expressão representa uma evolução no pensamento de Carl Rogers e no quadro teórico por ele desenvolvido, que foi formalizada na publicação do seu livro Sobre o Poder Pessoal (em inglês, On Personal Power, 1977), onde explicita a aplicação do seu quadro conceptual aos mais diversos campos (Gobbi et al., 1998: 13).

Na sua evolução, as idéias do autor passam do campo exclusivo da Psicoterapia para serem aplicadas em áreas como os Grupos, as Organizações e a Educação. Ao longo da sua vida Rogers foi clarificando as suas idéias e daí as mudanças de nomenclatura por si operadas fossem consideradas como atualizações do seu modelo teórico (Ibidem).

Progressivamente a filosofia de base humanista, a que está subjacente o quadro conceptual da Abordagem Centrada na Pessoa, foi encontrando eco em pessoas de horizontes profissionais diversos, nomeadamente no domínio da Educação, acabando por se constituir um Movimento que é conhecido atualmente como Abordagem Centrada na Pessoa. Este pode ser definido como integrando três pressupostos de base:

1.

Uma concepção do homem alicerçada nos princípios da corrente humanista da Psicologia.
2.

Uma abordagem fenomenológica que privilegia a experiência subjetiva da pessoa, implicando que o conhecimento que se tem do outro surge a partir da compreensão do seu quadro de referências.
3.

Uma forma de entrar em relação que se constitui como um encontro entre pessoas.

Relativamente ao primeiro pressuposto salientamos a expressão de Rogers que afirmou que a Abordagem Centrada tem como principal premissa “uma visão do homem como sendo, em essência, um organismo digno de confiança” (1989:16). Por outro lado, dois conceitos foram desenvolvidos por Rogers, e que são considerados como fundamentais para a compreensão do seu modelo e que são a Tendência Atualizaste e a Não Diretividade.

1- Conceito de Tendência Atualizaste

A noção de Tendência atualizante é para Rogers o postulado fundamental da Abordagem Centrada na Pessoa, à medida que conduz não só à satisfação das necessidades básicas do organismo, como também às mais complexas. A Tendência atualizante permite, por um lado, a confirmação do Self e, por outro, a preservação do organismo, facultando assim, a consonância entre a experiência vivida e a sua simbolização.

Segundo o autor, sempre que esta consonância não se verifique, a pessoa entra em estado de incongruência, ou seja, gera-se um desequilíbrio entre a experiência real e a simbólica, o que se traduz num comportamento desajustado, conduzindo a estados de ansiedade, angústia e depressão, os quais, por sua vez, afetam a personalidade e o seu respectivo desenvolvimento.

Rogers definiu o conceito de Tendência atualizante através da seguinte preposição:

“Todo o organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento. (…) A tendência atualizante não visa somente (…) a manutenção das condições elementares de subsistência como as necessidades de ar, alimentação, etc. Ela preside, igualmente, atividades mais complexas e mais evoluídas tais como a diferenciação crescente dos órgãos e funções; a revalorização do ser por meio de aprendizagens de ordem intelectual, social, prática…” (Rogers & Kinget, 1977, citado por Gobbi et al., 1998: 144).

2- Conceito de Não Diretividade

O método psicoterapêutico desenvolvido por Rogers ficou conhecido inicialmente por Terapia Não Diretiva, tendo posteriormente evoluído para Terapia Centrada no Cliente e mais tarde Abordagem Centrada na Pessoa. A definição de não diretividade passa, segundo Rogers, pelo acreditar que “o indivíduo tem dentro de si amplos recursos para autocompreensão, para alterar seu autoconceito, suas atitudes e seu comportamento autodirigido” (Rogers, 1989: 16). Em oposição a outros modelos de intervenção, Rogers propõe um que acredita na autonomia e nas capacidades de uma pessoa, no seu direito de escolher qual a direção a tomar no seu comportamento e sua responsabilidade pelo mesmo (Idem:28).

Nas palavras de Pagès (1976, citado por Gobbi et al., 1998: 104-105)

“A não diretividade é, antes de tudo, uma atitude em face do cliente. É uma atitude pela qual o terapeuta se recusa a tender imprimir ao cliente uma direção qualquer, em um plano qualquer, recusa-se a pensar o que o cliente deve pensar, sentir ou agir de maneira determinada. Definida posteriormente, é uma atitude pela qual o conselheiro testemunha que tem confiança na capacidade de auto-direção do seu cliente”.

Neste sentido a Não diretividade pode ser entendida como uma forte subscrição do conceito de Tendência atualizante na medida em que “É uma confiança de que o cliente pode tomar as rédeas, se guiado pelo técnico, é a confiança de que o cliente pode assimilar insight se lhe for inicialmente dado pelo técnico, pode fazer escolhas”.(Rogers, citado por Raskin, 1998:76)

A atitude não diretiva pode ser transmitida através das respostas reflexo de sentimento ou reformulação, que é a forma que o terapeuta utiliza para acompanhar o cliente, sem o dirigir (Raskin, 1998: 77) ou seja acompanhá-lo a partir do seu (cliente) quadro de referência.

Relativamente ao segundo e terceiro pressupostos atrás enunciados, Rogers deu um relevo particular à forma como a pessoa entra em relação com outra. Assim, enumerou e definiu um conjunto de atitudes que considerou facilitadoras do processo de comunicação inter-humana. No caso específico da temática em referência, a qualidade de relação que se estabelece no contexto pedagógico, nomeadamente as atitudes do professor para com o aluno, determinam não só o nível qualidade da aprendizagem, como também o próprio desenvolvimento pessoal do aluno.

Apesar de, na perspectiva de Rogers estas atitudes fazerem parte de um conjunto que deve estar integrado na pessoa do professor, iremos defini-las cada uma per si, como forma de melhor explicitarmos o quadro conceptual do autor.

Aceitação positiva incondicional

Esta, traduz-se pela aceitação incondicional da pessoa por parte da outra, tal como ela é, sem juízos de valor ou críticas a priori (Rogers, 1985:65). Desta forma, a pessoa pode sentir-se livre (liberdade experiência) para reconhecer e elaborar as suas experiências da forma como entender e não como julga ser conveniente para o outro. Poderá então sentir que não é necessário abdicar das suas convicções para que os outros a aceitem.

A aceitação positiva incondicional é uma atitude assente na crença no potencial interno humano, derivando do principal conceito proposto por Rogers a Tendência atualizante (Gobbi et al., 1998: 14).

Compreensão empática

Rogers definiu compreensão empática como uma “capacidade de se imergir no mundo subjetivo do outro e de participar na sua experiência, na extensão em que a comunicação verbal ou não verbal o permite. É a capacidade de se colocar verdadeiramente no lugar do outro, de ver o mundo como ele o vê”. (Rogers & Kinget, 1977, citado por Gobbi et al., 1998: 45).

Assim podemos dizer que a compreensão empática é um processo dinâmico que significa a capacidade de penetrar no universo perceptivo do outro, sem julgamento, tomando consciência dos seus sentimentos, sem no entanto, deixar de respeitar o seu ritmo de descoberta de si próprio (Rogers, 1985:64) e a pessoa sente-se não apenas aceite, mas também compreendida enquanto pessoa na sua globalidade.

Congruência

Finalmente, a congruência pretende indicar o estado de coerência ou acordo interno e de autenticidade de uma pessoa, a qual se traduz na sua capacidade de aceitar os sentimentos, as atitudes, as experiências, de se ser genuíno e integrado na relação com o outro (Rogers, 1985: 63).

Rogers defende que, se estas atitudes, que designou condições facilitadoras, estiverem presentes na relação, a pessoa entra num processo de aceitação de si própria e dos seus sentimentos, tornando-se por isso, na pessoa que deseja ser, mais flexível nas suas percepções, adaptando objetivos mais realistas para si própria e, simultaneamente, torna-se mais capaz de aceitar os outros (Rogers, 1985: 253).

Por outro lado, ao modificar as suas características pessoais básicas de modo construtivo, a pessoa adapta um comportamento mais ajustado à sua realidade (Idem).

Desta forma, uma relação fundada nas atitudes acima descritas pode sintetizar-se nos termos seguintes:

· Respeito

· Confiança

· Aceitação

· Autenticidade

· Tolerância

II – APRENDIZAGEM Centrada no ALUNO: Princípios e Qualidades

A Aprendizagem Centrada no aluno (ou a aplicação da Abordagem Centrada na Pessoa à Educação) é claramente explicitada por Carl Rogers em duas obras fundamentais “Liberdade para Aprender” (1973, 2ª Edição) e “Liberdade de Aprender na Nossa Década” (1983, 1ª Edição), nas quais desenvolve as suas idéias sobre as formas mais adequadas de facilitar o processo de aprendizagem, apesar de ao longo da sua obra ter refletido inúmeras vezes sobre esta temática.

Rogers apresenta um modelo educativo que se pode considerar no mínimo inovador, pois o centro das suas considerações é a pessoa do aluno, em contraste com um modelo tradicionalista em tudo gira à volta da figura do professor. Podemos considerar que o autor faz uma autêntica revolução copérnica no campo da educação.

Das obras consultadas podemos destacar alguns princípios definidos pelo autor como fundamentais para o desenvolvimento do processo de aprendizagem:

1. O ser humano contém em si uma potencialidade natural para a aprendizagem (Rogers, 1986: 28).

2. Não podemos ensinar, apenas podemos facilitar a aprendizagem (Rogers, 1974: 381).

3. A aprendizagem significativa acontece quando o assunto é percebido pelo aluno como relevante para os seus propósitos, o que significa que o aluno aprende aquilo que percebe como importante para si (Rogers, 1974: 382).

4. A aprendizagem que implique uma mudança ameaçadora na percepção do self, tende para a resistência (Rogers, 1974: 383).

5. As aprendizagens são melhor apreendidas e assimiladas quando a ameaça externa ao self é reduzida ao mínimo (Rogers, 1974: 384).

6. A maioria das aprendizagens significativas são adquiridas pela pessoa em ação, ou seja, pela sua experiência (Rogers, 1986: 136-137).

7. A aprendizagem qualitativa acontece quando o aluno participa responsavelmente neste processo (Rogers, 1974: 390).

8. A aprendizagem que envolve a auto-iniciativa por parte do aluno e a pessoa na sua totalidade, ou seja, dimensões afetiva e intelectual, torna-se mais duradoura e sólida (Ibidem).

9. Quando a autocrítica e a auto-avaliação são facilitadas, e a avaliação de outrem se torna secundária, a independência, a criatividade e a auto-realização do aluno tornam-se possíveis (Rogers, 1974: 404-405).

10. A aprendizagem concretiza-se de forma plena quando o professor é autêntico na relação pedagógica (Rogers, 1986:11).

11. Para uma aprendizagem adequada torna-se necessário que o aluno aprenda a aprender, quer dizer que, para além da importância dos conteúdos, o mais significativo para Rogers é a capacidade do indivíduo interiorizar o processo constante de aprendizagem (Rogers: 1986:126).

Para que este princípios estejam presentes na relação pedagógica é fundamental que o professor se torne no que Rogers designou por facilitador do processo de aprendizagem. E para que tal aconteça é essencial que haja uma segurança por parte de quem educa que lhe permita acreditar na pessoa do aluno, na sua capacidade de aprender e pensar por si próprio (Rogers, 1983, citado por Gobbi et al., 1998: 26).

Para além de enunciar os princípios que facilitam o processo de aprendizagem, Rogers propõe também um conjunto de qualidades que considerou como fundamentais para a transformação de um professor num facilitador da aprendizagem.

A primeira qualidade refere-se à Autenticidade do facilitador, que Rogers considerou como a mais básica e que designa como a capacidade de o facilitador ser real, sem máscara nem fachada na relação com o aluno (Rogers, 1986: 128). Desta forma, o autor crítica o ensino tradicional na medida em que o professor é um ator, representando um papel e não pessoa autêntica (Idem: 128). A proposta de Rogers traduz-se numa relação de pessoa para pessoa e não de um papel de professor para um papel de aluno.

A segunda qualidade, a que Rogers designou por Aceitação e Confiança e que se expressa numa capacidade de aceitar a pessoa do aluno, os seus sentimentos, as suas opiniões, com valor próprio e confiar nele sem o julgar. É uma confiança no organismo humano e uma crença nas suas capacidades enquanto pessoa (Rogers, 1986: 130), ou seja,

“Se os professores aceitam os alunos como eles são, permitem que expressem seus sentimentos e atitudes sem condenação ou julgamentos, planejam atividades de aprendizagem com eles e não para eles, criam uma atmosfera de sala de aula relativamente livre de tensões e pressões emocionais, as conseqüências que se seguem são diferentes daquelas observadas em situações onde essas condições não existem. As conseqüências, de acordo com as evidências atuais, parecem ser na direção de objetivos democráticos” (Rogers, citado por Gobbi et al., 1998: 27).

Finalmente, a terceira qualidade refere-se à capacidade de compreender empaticamente o aluno, ou seja, compreendê-lo a partir do seu quadro de referência interno. Nas palavras de Rogers, a compreensão empática acontece “Quando o professor tem a capacidade de compreender internamente as reações do estudante, tem uma consciência sensível da maneira pela qual o processo de educação e aprendizagem se apresenta ao estudante” (Rogers, 1986: 131).

Estas qualidades enunciadas por Rogers não são mais do que uma adaptação à educação das atitudes facilitadoras da mudança, propostas pelo o autor no seu modelo psicoterapêutico, sendo ele mesmo o primeiro a reconhecê-lo, afirmando que a educação é uma forma de relação de ajuda, na medida em que permite que alguém cresça e se desenvolva (Rogers, 1974: 377).

Resumindo, podemos dizer que, de acordo com modelo proposto por Rogers, os princípios e as atitudes atrás enunciados permitem não só o desenvolvimento intelectual do aluno, como também o seu crescimento enquanto pessoa total, promovendo a aprendizagem significativa e a interiorização do processo de aprender.

III – Ensinar e Aprender – duas faces da mesma moeda no modelo da Aprendizagem Centrada no Aluno

De acordo com as definições estabelecidas ensinar é a ação de comunicar um conhecimento, habilidade ou experiência a alguém, com a finalidade de que este o aprenda, utilizando para isso um conjunto de métodos, técnicas e procedimentos que se consideram apropriados.

Segundo Hipólito (s/d: 180), aprender e ensinar, na língua portuguesa significa “uma relação assimétrica, um saber-suposto ou saber real, capitalizado, susceptível de ser transmitido numa operação econômica estranha, na qual o que dá ou vende “saber” conserva intacto o capital, mas transforma a relação de poder que o capital significa”.

Rogers definiu aprendizagem como sendo uma “insaciável curiosidade” inerente ao ser humano e que a sua essência é o significado (Rogers, 1986:28-30), o que significa que o foco está no processo e não no conteúdo da aprendizagem. O professor deve ter em conta que os alunos aprendem aquilo que para eles é significativo. Por essa razão, a passividade muitas vezes vivida na sala de aula, produto e produtora de desinteresse, é um dos maiores inimigos de uma aprendizagem eficaz.

Assim, e de acordo com o modelo proposto por Rogers, é importante que o professor tente encontrar o fio condutor que orienta o aluno, ou seja, ir ao encontro do que o aluno tenta compreender e, se necessário, reformular conhecimentos e o método de os ensinar. O objetivo primordial deste modelo é o de que o aluno abandone a passividade e adquira um papel ativo, de intervenção no seu próprio processo de aprendizagem, o que significa que a aprendizagem deixa de estar centrada no professor, para passar a estar centrada no aluno.

O ato de aprender é sempre um ato individual, o que significa que aquilo que se aprende, adquire em cada pessoa um sentido e um significado próprios. Deste modo, as aprendizagens do aluno serão sempre diferentes, devendo as mesmas ser respeitadas pela pessoa do professor.

Sendo assim, um professor que se limite a expor uma série de conhecimentos aos seus alunos, baseando-se exclusivamente na transmissão dos mesmos, não conseguirá certamente ensinar, pois poderá correr o risco de não haver uma verdadeira compreensão das matérias, pese embora os bons resultados provenientes de exames ou testes, fruto de um trabalho de memorização e mecanização.

Tal fato não é necessariamente sinônimo de qualidade, nem de aprendizagem, considerando que o termo significa “processo que conduz a uma mudança relativamente permanente no comportamento como resultado da experiência passada” (Sprinthall, 1993:596).

Neste sentido, aprender traduz-se num processo de construção, no qual o aluno tem um papel decisivo na construção do seu conhecimento e onde o professor será o orientador, ou melhor, o facilitador desse processo, na medida em que o coordena e tutela.

Ensinar requer, assim, e de acordo com este modelo, um nível de maturidade e segurança por parte do professor, que lhe permita, por um lado, diminuir a assimetria do seu poder enquanto docente, partilhando a responsabilidade do processo de aprendizagem e, por outro, acreditar na capacidade de aprender e pensar por si próprio do aluno (Rogers, 1986: 194).

Por tudo o que foi referido, aprender é um processo dinâmico, que exige concentração, interesse, empenhamento e motivação, e por tal razão é importante que as relações de cooperação e participação entre professor e alunos estejam presentes.

De acordo com esta abordagem, o aluno passa assim a ter uma participação ativa e interventiva na escola. O que não significa que o professor abdique da sua responsabilidade, mas sim que permite ao aluno ter um papel ativo no seu processo de aprendizagem, na qual é co-responsável.

A classe poderá, deste modo, transformar-se num grupo de pessoas, deixando os alunos de ter os olhos postos exclusivamente no professor, para passarem a olhar uns para os outros de forma interativa. Deixam de ser um agregado de indivíduos que estão lado a lado, sem direito a comunicar, para passarem a ser um organismo vivo, em que todos os membros mantêm relações entre si.

CONCLUSÃO

O modelo educativo proposto por Rogers, no âmbito da Abordagem Centrada na Pessoa e que designou por Aprendizagem Centrada no Aluno, tem como objetivo principal permitir ao aluno uma participação ativa no seu processo de aprendizagem, ou, se quisermos, no seu processo de crescimento pessoal, no pressuposto de que esta cooperação melhora a eficácia da ação pedagógica.

Neste sentido, entendemos que a qualidade da aprendizagem e o ato de aprender, não dependem apenas de um suposto coeficiente de inteligência ou do domínio de métodos e técnicas de estudo, mas sim de um ambiente (clima) que seja facilitador dessa aprendizagem e crescimento.

Como a qualidade do processo aprendizagem passa, por um lado, pela construção de uma relação pedagógica, com base na aceitação e compreensão da pessoa do aluno e, por outro, pelo pressuposto de que o aluno contém em si potencialidades para aprender e como tal terá motivação para o fazer, o papel do professor facilitador será, assim, o de estimular e desenvolver as potencialidades do aluno e simultaneamente manter a motivação necessária ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal.

Desta forma, escola e professores podem ter um papel importante na descoberta dos interesses dos alunos e desenvolvê-los de forma a criar hábitos de pesquisa, que lhes permitam manter a motivação para aprender e encontrar métodos de estudo adequados às suas próprias necessidades. Mas, não basta enunciar estes princípios que à primeira vista, se nos afiguram harmoniosos. É necessário pô-los em execução, o que não deixa de exigir um esforço permanente por parte de quem educa. Nas palavras de Rogers (1986: 326, 327):

“Uma abordagem desse tipo, centrada na pessoa, é uma filosofia que se acha em consonância com os valores, os objetivos e os ideais que historicamente constituíram o espírito da nossa democracia. (…) Ser plenamente humano, confiar nas pessoas, conceder liberdade com responsabilidade não são coisas fáceis de atingir. O caminho que apresentamos constitui um desafio. Envolve mudanças em nosso modo de pensar, em nossa maneira de ser , em nossos relacionamentos com os estudantes. Envolve uma dedicação difícil a um ideal democrático.”

Bibliografia

BRODLEY, Barbara Temaner (1998). O Conceito de Tendência Atualizante na Teoria Centrada no Cliente. A Pessoa como Centro – Revista de Estudos Rogerianos, Nº.2.

BRODLEY, Barbara Temaner (s/d), A Client-Centered Psychotherapy Practice,Illinois School of Professional Psychology, Chicago, USA, Internet

Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (1996). Lisboa Ed. Notícias,

GOBBI, Sérgio Leonardo, MISSEL, Sinara Tozzi (Org.) (1998) Abordagem Centrada na Pessoa: Vocabulário e Noções Básicas, Editora Universitária UNISUL

HIPÓLITO, João (s/d), Abordagem Centrada e a Pedagogia, artigo amavelmente fornecido pela Associação Portuguesa de Psicoterapia Centrada na Pessoa e Counseling, Lisboa

HALL, Calvin S.et al. (1984), Teorias da Personalidade, 18ª. Edição, S.Paulo, Editora Pedagógica e Universitária

KINGET, Marian, ROGERS, Carl (1977), Relações Humanas e Psicoterapia, Belo Horizonte, Interlivros

RASKIN, Nathaniel, O Desenvolvimento da Terapia Não diretiva, in A Pessoa como Centro – Revista de Estudos Rogerianos, Nº. 1, Maio/1998

ROGERS, Carl (1974) A Terapia Centrada no Paciente, Lisboa Moraes Editores

ROGERS, Carl (1985), Tornar-se Pessoa, 7ª. Edição, Lisboa, Moraes Editores

ROGERS, Carl (1973) Liberdade para Aprender, 2ª. Edição, Belo Horizonte,Inter Livros de Minas Gerais

ROGERS, Carl (1986), Liberdade de Aprender em Nossa Década, 2ª. Edição, Porto Alegre, Artes Médicas

ROGERS, Carl (1983), Um Jeito de Ser, 3ª. Edição, S. Paulo, Editora Pedagógica e Universitária

ROGERS, Carl (1989) Sobre o Poder Pessoal, 3ª. Edição, S. Paulo, Martins Fontes Editora

SPRINTHALL, Norman et al. (1993) Psicologia Educacional – Uma Abordagem Desenvolvimentista, Lisboa, Editora McGraw Hill de Portugal

A vivência do transcedente e da espiritualidade em um contexto grupal rogeriano

A vivência do transcedente e da espiritualidade em um contexto grupal rogeriano (Algumas observações sobre o que é experienciado pelos participantes dos “grupos transcentrados”).

Elias Boainain Jr.

*Trabalho de Participação no IX Encontro Nordestino da Abordagem Centrada na Pessoa, Valença, Bahia, de 21 a 25 de abril de 1999.

“Nós temos sempre ajudado as pessoas a explorar a si mesmas e suas circunstâncias. Está a abordagem centrada na pessoa também dirigida a ajudar as pessoas a explorar experiências em áreas que transcendam a elas mesmas?”

Carl R. Rogers
[Mais...]

I. APRESENTAÇÃO

O objetivo deste texto é apresentar, numa visão panorâmica e ilustrativa, alguns fenômenos experienciais que tenho observado como característicos do que é vivenciado pelos participantes dos grupos transcentrados. Os grupos transcentrados constituem uma tentativa, por mim idealizada, de aplicação da metodologia rogeriana de facilitação grupal fora de suas propostas habituais enquanto escola de Psicologia Humanista e dentro de um campo temático mais próximo do que caracteriza as escolas de Psicologia Transpessoal.

Carl Rogers tem sido considerado, com justiça, um dos principais líderes e expoentes do movimento, ou corrente, da Psicologia Humanista, e a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), por ele criada, é reconhecida como uma das mais típicas e modelares escolas de psicoterapia humanista-existencial. Creio, e desejo, que ele possa ser também reconhecido como tendo contribuído, assim como inspirado desenvolvimentos nessa direção, para a constituição de uma escola afinada a um outro movimento da psicologia contemporânea, a Psicologia Transpessoal.

Especialmente no aspecto teórico, estou convicto, Rogers realizou, nos últimos anos de sua vida, importantes transformações nos fundamentos de sua compreensão e abordagem dos fenômenos psicológicos. Essas transformações, separadamente e em conjunto, sem negar totalmente suas concepções anteriores, têm o sentido geral de ampliar sua visão sobre o ser humano e o universo que o cerca. Essas mudanças configuram, no meu entender, uma forte e articulada tendência de afastamento dos pontos de vista das psicologias humanistas mais tradicionais e de aproximação do conjunto de escolas teóricas e práticas que se congregam no movimento auto intitulado Psicologia Transpessoal. Não cabe aqui uma descrição detalhada do que sejam a Psicologia Humanista e a Psicologia Transpessoal (vide a respeito Boainain Jr, 1994 ou Nagelshmidt,1996), tampouco uma defesa de minha afirmação de que Rogers deixou estabelecidos os fundamentos de uma completa transformação da ACP em uma nova escola de Psicologia Transpessoal, o que, ademais, já foi assunto de minha dissertação de mestrado (Boainain Jr, 1996). Do que tratarei aqui é algo que vai um tanto além do que Rogers criou, e se refere a um trabalho que venho desenvolvendo há pouco mais de quatro anos, ainda a nível experimental, e que intitulo grupos transcentrados.

Os grupos transcentrados nasceram de uma idéia até certo ponto bastante simples, mas nem por isso menos interessante: aplicar os princípios de trabalho psicológico (especialmente grupal) desenvolvidos pela ACP a um campo que até então não havia sido especificamente focado pelos trabalhos com grupos de metodologia rogeriana, ou seja, o campo da transcendência, da espiritualidade, das possibilidades últimas, das experiências religiosas e dos estados alterados de consciência, temáticas essas que, em seu conjunto, caracterizam o foco principal de interesses das teorias e métodos das escolas de Psicologia Transpessoal. Em outras palavras, os grupos transcentrados são uma metodologia grupal, de inspiração rogeriana, voltada para a exploração e desenvolvimento das potencialidades transpessoais dos participantes.

Basicamente o grupo transcentrado pode ser considerado um grupo de encontro temático, ou seja, um grupo reunido em uma situação de não-diretividade e contando com as demais condições propostas por Rogers como propiciadoras de um clima de facilitação do desenvolvimento pessoal e grupal, tendo previamente assumido um objetivo, ou tema, comum para suas atividades. Nas aplicações mais usuais da metodologia grupal rogeriana – a saber, os grupos de psicoterapia, de encontro e de formação de comunidade – os objetivos e a temática grupal costumam centrar-se, respectivamente, na resolução de problemas psicológicos individuais, ou no desenvolvimento de potencialidades auto-expressivas e relacionais, ou ainda no aprendizado da construção comunitária. No caso dos grupos transcentrados a temática proposta refere-se à exploração das potencialidades transpessoais dos participantes, ou seja, é oferecida uma oportunidade para que possam, num contexto livre e grupal, experienciar e explorar a dimensão espiritual e transcendente de si mesmos e da realidade, como quer que cada um entenda (ou descubra) o que isto seja ou possa ser.

Tenho posto em prática essa idéia na forma de workshops intensivos de final de semana, intitulados encontros transcentrados, realizados de forma experimental, ou seja, com finalidades de pesquisa e sem fins lucrativos, contando apenas com participantes convidados, conscientes e de acordo em participar de uma investigação em andamento (para os interessados em uma explicação um pouco mais detalhada do que são os grupos transcentrados e sobre a forma como têm sido organizados e realizados os encontros transcentrados, o Anexo I traz um texto de divulgação e esclarecimento que tenho utilizado para apresentar e explicar a proposta às pessoas convidadas a participar da experiência). Na verdade, a investigação dos efeitos, características e possibilidades dos grupos transcentrados é o tema de que se ocupará minha pesquisa de doutorado, conforme projeto já elaborado (Boainain Jr, 1997). O presente texto é uma primeira notícia dessa investigação, uma espécie de estudo-piloto, focalizando mais especificamente os tipos diferenciados (em relação ao habitualmente observado nas aplicações da metodologia rogeriana de trabalho com grupos) de experiências vivenciadas pelos participantes dos encontros transcentrados.

Até o momento foram realizados oito encontros transcentrados, em diferentes lugares, sempre na forma de workshops residenciais intensivos de fim de semana, com dois a quatro dias de duração. Cerca de 100 diferentes pessoas já participaram desses encontros, e por volta da metade delas participou de mais de um, tendo muitas participado de vários. Os oito encontros ocorreram nas seguintes localidades e datas, e reunindo os seguintes números de pessoas:

1O Encontro Transcentrado: Pindamonhangaba, SP, com 22 participantes, de 18 a 20/11/94

2O Encontro Transcentrado: Petrópolis, RJ, com 25 participantes, de 17 a 19/03/95

3O Encontro Transcentrado: Pindamonhangaba, SP, com 19 participantes, de 12 a 15/10/95

4O Encontro Transcentrado: Paulo de Frontin, RJ, com 35 participantes, de 25 a 28/7/96

5O Encontro Transcentrado: Porto Alegre, RS, com 12 participantes, de 15 a 17/11/96

6O Encontro Transcentrado: Tremembé SP, com 22 participantes, de 7 a 11/02/97

7O Encontro Transcentrado: Ubatuba, SP, com 36 participantes, de 6 a 9/11/97

8O Encontro Transcentrado: Cristina, MG, com 38 participantes, de 6 a 9/8/98.

Os depoimentos citados neste trabalho foram fornecidos por participantes e utilizados com sua permissão. Referem-se à participação em diversos dos encontros já realizados e foram obtidos de variadas formas: relatos livres escritos ou gravados, “diários” de experiência redigidos durante o encontro, extratos de correspondência entre participantes, resposta a questionários e gravação de reuniões para relato e discussão de experiências. Mantive o anonimato dos autores nos relatos, utilizando letras maiúsculas para representar os participantes referidos nos depoimentos, sendo que a mesma letra é mantida para o mesmo participante no caso de ser citado mais de uma vez.

II. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO QUE É VIVENCIADO PELOS PARTICIPANTES DOS GRUPOS TRANSCENTRADOS

Nesta seção busco sintetizar, ainda que de forma um tanto superficial e exploratória, algumas características que, segundo minhas observações e conforme será ilustrado por trechos de relatos e depoimentos, podem ser consideradas como ocorrências típicas das vivências experimentadas pelos participantes dos oito encontros transcentrados já realizados. No caso deste estudo específico serão enfocados apenas aspectos dos efeitos imediatos dos grupos transcentrados, ou seja, aqueles fenômenos experienciais e comportamentais ocorridos durante, e como possível conseqüência deste, o decorrer da vivência intensiva dos encontros, ou workshops, que utilizaram esta metodologia de trabalho grupal.

Vários outros aspectos de interesse, que continuam sendo investigados e possivelmente serão abordados em futuros estudos, foram deixados de lado nesta pequena investigação piloto. Entre os aspectos que aqui não serão especificamente considerados (embora vez por outra possam ser superficialmente referidos) destacam-se a descrição das características do processo dos grupos transcentrados, a discriminação das diferenças e semelhanças entre os grupos transcentrados e outras metodologias grupais rogerianas, a caracterização do trabalho de facilitação nesse tipo de grupo e os efeitos a longo prazo observados nos participantes.

É oportuno ressaltar também que as observações referem-se aos oito encontros transcentrados que ocorreram, os quais na prática consistem na única experiência (salvo algumas reuniões mais curtas de demonstração) já realizada com a metodologia, por mim proposta, dos grupos transcentrados. Assim sendo, creio ainda ser prematuro dizer se as características aqui descritas e apresentadas possam ser consideradas típicas e esperáveis de quaisquer futuras aplicações da referida metodologia, ou restringem-se, em maior ou menor grau, aos encontros até aqui realizados, estando associadas às idiossincrasias das pessoas e das próprias configurações grupais que os constituíram. Ressalte-se, nesse sentido, que não obstante o clima de permissividade e não programação dos workshops, o fato de muitos participantes terem vindo a mais de um encontro pode estar contribuindo para a criação de uma certa cultura nesses encontros, a qual influenciaria os acontecimentos na direção de certos resultados e comportamentos predeterminados, os quais poderiam ser outros no caso de experiências realizadas apenas com participantes “novatos”. Assim, parcimoniosamente, as características a seguir apresentadas deverão ser consideradas apenas como observações descritivas das ocorrências relatadas em oito encontros realizados com a metodologia dos grupos transcentrados, permanecendo em aberto a questão sobre até que ponto as mesmas ocorrências possam ser consideradas como típicas e esperadas no que diz respeito a futuras aplicações da mesma metodologia.

Por fim, quero observar que, embora eu tenha dividido minhas observações em cinco tópicos, referentes a cinco categorias de características do fenômeno que me parecem relevantes e típicas, esta divisão tem principalmente finalidade expositiva, posto que as ocorrências descritas e os relatos apresentados freqüentemente envolvem mais de uma das categorias de características propostas. Além do mais, o fato de eu me referir a cinco classes de características não significa, necessariamente, que estas abranjam a totalidade do fenômeno investigado, nem mesmo que elas se refiram aos seus aspectos mais notáveis e significativos. Tão somente referem-se aos fenômenos que, no estado atual de minha pesquisa, já me é possível discriminar e descrever enquanto observações relevantes.

1. Ocorrência de Estados Alterados de Consciência e Experiências Transpessoais

Um dos tópicos centrais de interesse da Psicologia Transpessoal são os estados alterados de consciência – também chamados estados inusuais de consciência – e em especial aqueles classificáveis como experiências transpessoais. As diversas formas e metodologias de psicoterapia transpessoal estão envolvidas na utilização de vários destes estados inusuais da vivência consciencial como forma de acesso a inúmeras potencialidades de cura, crescimento e transformação, tanto psicológica quanto espiritual. Assim, naturalmente, os grupos transcentrados, enquanto metodologia que se pretende transpessoal, trazem em sua proposta um desejo e expectativa de exploração dessa via privilegiada de desenvolvimento das potencialidades transpessoais. E de fato, conforme o esperado, os grupos transcentrados têm se mostrado eficiente propiciador da ocorrência de diversas modalidades de estados alterados de consciência e experiências transpessoais. É o que brevemente será comentado neste tópico.

Para Charles Tart (1991, 1997), o primeiro a propor o conceito de estados alterados de consciência, um estado de consciência define-se enquanto um sistema, uma gestalt, um padrão, um conjunto, e não por aspectos parcializados da experiência (percepção, identidade, cognição, etc…). Conseqüentemente, a designação estado alterado de consciência refere-se àqueles momentos em que a pessoa sente que sua consciência apresenta um padrão de funcionamento qualitativamente diferente de seu estado usual. Nesse sentido, tem sido uma constatação bastante comum, entre diversos participantes dos encontros transcentrados, a vivência de estados conscienciais de variadas intensidades em que se sentem “funcionando”, digamos assim, de maneira bem diferente do que estão acostumados no dia a dia de sua existência, experimentando notáveis mudanças envolvendo o conjunto de vários aspectos de seu aparato psíquico. Participantes veteranos dos encontros passaram até a utilizar do vocábulo “trans” para indicar a qualidade diferenciada desses momentos em que se encontram em estado alterado, falando por exemplo: “estou trans”, “fiquei trans”[1], etc. Um participante, em carta para colega, fala da qualidade única e diferenciada de suas experiências em dados momentos do encontro, frisando serem estas inclusive distintas, no seu caso, daquelas vividas em contextos religiosos de desenvolvimento da espiritualidade os quais, freqüentemente, também envolvem o trabalho de alteração da consciência:

Em relação à minha espiritualidade, as experiências que vivenciei nesses importantíssimos encontros transpessoais, jamais havia vivenciado em qualquer momento de minha vida. Em nenhuma igreja, templo de qualquer religião ou seita, qualquer centro espírita ou terreiro de macumba. Essas coisas só acontecem comigo com esse grupo. Única e exclusivamente com esse grupo!

De acordo com alguns depoimentos, além de propiciar experiências em estados alterados, a participação nos grupo transcentrados oferece também a possibilidade de um aprendizado vivencial de desenvolvimento de uma maior capacidade de autocontrole e intencionalidade na obtenção e exploração destes estados. É o que observa uma participante ao comentar mudanças que sentiu a este respeito após participar de três encontros (o 1O, o 7O e o 8O):

(…) nos primeiros “trans” participei de forma “passiva”, deixando que os fenômenos ocorressem espontaneamente, mas a partir desse último minha postura mudou para “ativa”. A cada momento eu tinha a intenção de provocar o estado alterado e tinha uma finalidade.

O processo então fica muito mais rico, não é mais simples “experiências”, e sim atos intencionais com objetivos de acrescentar algo mais ao nosso crescimento pessoal.

Digo também que parece ser uma trajetória a percorrer, primeiro acontece espontaneamente e nós “aprendemos” a buscar estes estados alterados. Pelo menos eu acho que comigo funcionou assim, eu aprendi que a dança, a meditação, abrem os canais e me levam para outra dimensão, e assim que chego lá, então tento ficar o maior tempo possível e tenho conseguido cada vez mais, mesmo aqui fora do grupo.

Outra participante, comentando em relato gravado suas experiências na primeira reunião do grupo durante o 8O Encontro, fornece um vívido relato fenomenológico de como esta busca intencional de um estado alterado de consciência nela ocorreu através de uma mescla entre um esforço mental interior (que compara à meditação) e envolvimento no processo grupal:

No primeiro grupão[1] , na hora em que nós nos sentamos, eu comecei a viver tantas coisas, a sentir tantas coisas (…) Olha só, quanta coisa se vive apenas numa “sentada” no grupão!

A primeira coisa que me aconteceu de forte, naquele grupão[2], foi como numa meditação uma dificuldade de sair do pessoal, de deixar que os pensamentos e os sentimentos, que vinham forte, passassem, não ficar me prendendo a nenhum deles, não ficar parando em cada um que vinha…vinham coisas, vinham coisas… mesquinhas até…coisas rolando e eu tentando soltar, soltar… e nesse esforço, nesse empenho de estar lá buscando mesmo algo além, estar olhando para o grupo, de estar chamando a energia do grupo para que ficasse mais coesa, e fui indo nessa pequena batalha. Num determinado momento o “F” colocou aquelas velas ali no meio e comecei olhar para as velas, nesse empenho, e comecei a viajar, e comecei a pensar na nossa necessidade de buscar a luz, de buscar a luz, e como aquelas mariposas que estavam ali voando em volta da luz e eu percebia que elas se queimavam, e aquilo doía em mim, mas é nisso, é assim, a luz está aí e a gente não sabe bem porquê mas o homem busca e era aquilo que a gente estava buscando como grupo, a gente estava buscando a luz, a gente estava buscando algo incompreensível, incompreensível, e necessário… Eu gostei de uma hora em que o “D” falou de “inominável”, de Deus, e eu senti um pouco isso, que a gente estava buscando algo muito além e que às vezes a gente precisava se queimar mesmo, se queimar nessa busca, morrer mesmo, por mais que isso doesse, tinha que morrer muita coisa ali. Eu olhava para as pessoas e eu sentia essa necessidade ficando mais forte.

Existem, é o que mostram as pesquisas nesse campo, uma enorme variedade de estados alterados de consciência, e muitos deles têm sido explorados em suas potencialidades não apenas pelas modernas psicoterapias transpessoais, mas imemorialmente pelas culturas humanas, especialmente no campo das tradições místicas e religiosas. Diferentes metodologias e contextos, embora envolvidas no mesmo campo amplo do desenvolvimento psicológico e espiritual, muitas vezes induzem e lidam com diferentes qualidades de alteração da consciência, sendo inapropriado tratá-las como se fossem um fenômeno só. Walsh (1997), por exemplo, tratou da questão em um

interessante artigo, em que busca critérios que permitam discriminar diferentes estados alterados de consciência, comparando os estados vivenciados na experiência xamânica, na desestruturação esquizofrênica, e em dois diferentes tipos de meditação oriental (budista e iogue). Quanto aos estados inusuais de consciência vivenciados nos encontros transcentrados, entretanto, no estágio atual de minhas observações seria prematuro afirmar que apresentam características distintas dos vivenciados em outras metodologias ou circunstâncias. Provisoriamente, e escudado no fato de já terem sido observadas e relatadas nos encontros transcentrados variadas modalidades de alteração da consciência, prefiro considerar que diversos fatores presentes nesses encontros agem como, utilizando a terminologia que Grof (1997) empregou para referir-se às drogas psicodélicas, “catalisadores inespecíficos”, ou seja, não predeterminando a natureza da experiência mas apenas quebrando o padrão habitual de consciência e favorecendo a emergência de vivências mais condizentes com o momento e as necessidades da pessoa submetida à sua ação. A própria ênfase rogeriana e não-diretiva, traduzida no clima de liberdade para que cada um viva à sua maneira sua espiritualidade e a dimensão transcendente de sua experiência, reforça a idéia de um estímulo genérico para a vivência da transpessoalidade. Não descarto, contudo, que a continuidade das observações venha a indicar tendências, ou predominâncias, de certas características ou qualidades nas alterações de consciência vivenciadas mais freqüentemente pelos participantes dos encontros transcentrados. Por ora, será interessante registrar algumas modalidades de experiências transpessoais cuja ocorrência já foi observada e relatada no contexto dos grupos transcentrados.

O conceito de experiências transpessoais, enquanto possibilidades acessíveis a diversas formas de alteração da consciência, foi proposto por Grof (1983), inicialmente com o propósito de categorizar todo um domínio experiencial a que teve acesso em seus anos de pesquisa sobre os efeitos do LSD. Genericamente, as experiências transpessoais foram definidas por ele (Grof, 1997) como aquelas em que há “expansão experiencial ou extensão da consciência além dos limites normais do corpo e do ego, e além das limitações de tempo e espaço” (p: 54).

A partir dessa definição mais ampla, Grof traça todo um esquema categorizador para diferenciar e classificar as diversas modalidades possíveis de experiências transpessoais. Em sua “Cartografia da Consciência” distingue três principais grandes categorias de experiências transpessoais, as quais por sua vez se dividem em um considerável número de subcategorias. Em minhas observações foi possível notar a ocorrência, nos grupos transcentrados, de experiências classificáveis em cada uma das grandes categorias de experiências transpessoais, embora não em muitas das subcategorias propostas e relatadas por Grof.

A primeira grande categoria da classificação de Grof (1997), refere-se às experiências de extensão da consciência “dentro da realidade e do espaço-tempo consensuais”. Nesta categoria, as experiências não rompem com a visão consensual de realidade, mas a consciência parece ultrapassar os limites em que se encontra restrita no estado de vigília habitual. Esta primeira categoria abrange duas principais subcategorias (por sua vez subdivididas em diversas modalidades de experiências transpessoais), respectivamente envolvendo transcendência dos limites espaciais e a transcendência dos limites do tempo linear.

Participantes dos encontros transcentrados têm relatado experiências, por assim dizer, “clássicas” enquanto experiências transpessoais de transcendência dos limites espaciais e temporais. A experiência de dissolução dos limites do corpo e de expansão da identidade até incluir porções do ambiente, típica experiência de transcendência dos limites espaciais, é relatada por uma participante ao descrever em seu diário sua experiência na primeira reunião do 8O Encontro:

Agora me proponho uma tarefa difícil, que é a de colocar na linguagem verbal experiências que vivi num “nível averbal”

É tudo tão complexo e simples ao mesmo tempo, tão grande que não cabe nos textos, nas palavras.

É como se uma energia imensa me arrastasse para o fundo, e esta viagem é minha, comigo mesma, vou em frente e me entrego. O silêncio do grupo penetra em meu corpo, calando meu coração, minha respiração e de repente estou em silêncio e em paz.

Este foi o efeito que consegui hoje, durante o encontro do grupo da noite, uma imensa paz, vibrações passam por mim sem resistências, como se em meu corpo não existisse matéria, como se me misturasse com cada pessoa que está aqui presente, o fogo se faz na sala e em volta de mim e tudo fica escuro e iluminado.

Devagar as coisas se misturam, silêncio, luz, escuro, vozes, e sinto que sou tudo isto ao mesmo tempo, a sensação é de quietude e paz.

(…) Neste estado de paz vou dormir e sonhar, guardo as palavras para não perder a imensidão de energias que vêm e vão passando por mim e por todos, expandindo-se cada vez mais rumo à natureza.

Outro participante relembra, em reunião realizada após o encontro, ter passado por uma experiência semelhante no mesmo workshop, só que com uma expansão consciencial ainda mais abrangente no sentido espacial e envolvendo também uma sensação de superação dos limites do tempo linear, havendo ainda referência à possibilidade de se tratar de uma experiência vivida de forma compartilhada à distância por outro membro do grupo:

Me deu uma vontade muito grande de entrar na piscina (…) De repente eu fechei o olho na piscina e comecei a viajar. Nisso eu comecei a sentir que eu não estava só na piscina. Eu estava em todos os lugares: eu era a piscina inteira, eu era a água, eu era o ar que estava rodeando, eu era o céu que estava encima de mim, eu era a terra… E eu também não estava só naquele tempo, e estava… eu tive a sensação de estar em todo o tempo, no passado, no presente, no futuro… E um dos lugares que mais me chamou a atenção foi a montanha, do lado, e de noite, quando eu conversei com o “M” e contei isso para ele, ele fala que, justamente nessa hora, ele estava lá de cima e ele olha para mim e ele sentiu a mesma coisa que eu estava sentindo, como se ele não estivesse só naquele lugar, mas estivesse em todos os lugares, em todos os tempos.

Uma das modalidades de experiências de transcendência do tempo linear classificada por Grof, refere-se às experiências de vidas passadas. A teoria da reencarnação, só aceitável, numa perspectiva científica moderna, no contexto da Psicologia Transpessoal, é polêmica e recebe diferentes ênfases ou referência nas diversas escolas de psicologia e psicoterapia transpessoal. Reservando-me o direito de suspender o juízo sobre a natureza dessas experiências, e independentemente do fato de considerarmos tais experiências como sendo de natureza simbólica ou referente a fatos concretos, é oportuno observar que um número significativo de participantes relata vivências desse teor, por vezes compartilhadas, indo desde impressões vagas até a lembrança de cenas mais ou menos detalhadas de fatos hipoteticamente ocorridos em outras de suas vidas. Eis, por exemplo, um trecho de correspondência trocada entre participantes do 2O Encontro e que fala de uma impressão desse tipo:

Outra fantasia que gostaria de lhe escrever é a seguinte: após vivenciarmos a tormenta, quando nos olhávamos, a história que pensava dizia que em “outra vida” você era homem e eu mulher, e nesta viemos trocados. Você guardava uma mágoa muito grande em relação a mim por algo que passamos e foi mal interpretado ou compreendido, e foi numa situação como aquela. Não sei direito qual o sentido disso… mas naquele momento fazia. (…). Acredita em reencarnação? Eu tenho minhas dúvidas.

A segunda grande categoria de experiências transpessoais proposta por Grof, refere-se à expansão consciencial além dos limites da realidade e do espaço-tempo consensual, ou seja, vivências que dão acesso a regiões, ou dimensões, da realidade para além do que é percebido e aceito como realidade objetiva em nossa vivência cotidiana. Grof inclui aí diversas subcategorias de experiência, como por exemplo: experiências espíritas e mediúnicas; experiências energéticas do corpo sutil; experiências de espíritos animais; encontros com guias espirituais e seres supra-humanos; visitas a outros universos e encontros com seus habitantes; experiências de arquétipos e seqüências mitológicas complexas; experiência de encontros com deidades diversas; compreensão intuitiva de símbolos universais; etc.

Algumas experiências classificáveis nessa categoria parecem ocorrer de forma mais ou menos freqüente entre os participantes dos encontros transcentrados. Há vários relatos, por exemplo, de diferentes participantes, de percepção mais ou menos clara, durante momentos de alteração da consciência, da presença de “entidades” (espíritos? figuras arquetípicas? entidades supra humanas? personificação simbólica de conteúdos inconscientes?) de uma outra dimensão. Uma participante, por sinal de formação evangélica e sem especial simpatia por concepções religiosas que enfatizam a existência de tais seres, relata ter vivido a seguinte experiência durante o 3O Encontro:

A gente foi até o rio de novo (…) Eu fiquei com a “L” e a “U” e a gente resolveu se abençoar. E quando eu abençoava cada uma delas eu, quando levantava a minha mão, eu via uma mulher muito alta, como se ela estivesse do meu lado, uma mulher de cabelos negros, compridos, toda vestida de azul, e aquilo foi muito estranho. Ela como que abençoava, e essa mulher ficou comigo depois daquele workshop um bom tempo, depois também sumiu.

Outro participante, o qual por sua vez relata ter ido ao 8o Encontro com a expectativa de entender melhor certas inclinações e vivências que lhe ocorriam como a indicar sua tendência e potencialidade em seguir um caminho nesse sentido (de “mediunidade”), as quais entretanto rejeitava e tendia a nelas não acreditar, relata uma experiência mais elaborada, em estado alterado de consciência, de contato com habitantes desse mundo espiritual, e que para ele tiveram um certo sentido de confirmação de sua vinculação com este nível transcendente da realidade:

No primeiro dia, na quinta feira, eu estava acompanhado. E eu via perfeitamente, assim, a pessoa do meu lado. E era um índio. Nesse dia mesmo (…) Eu fiz uma viagem muito grande, mas numa velocidade muito assim que… difícil de dizer qual a velocidade, mas eu sei que eu fui, cheguei e voltei ao mesmo tempo. Além do mais essa viagem foi muito clara, foi no meio da mata… como se tivesse voando, realmente. E ao mesmo tempo em que eu estava numa velocidade muito grande, eu tinha todo o conhecimento dos lugares onde estava passando. E eu cheguei até uma tribo, uma tribo assim indígena. E ali foi conversado, em várias línguas, tudo né, até em língua indígena… e quando eu estava lá até pensei “puxa, eu nunca tinha pensado que eu fosse conversar em tupi-guarani” (…) E no retorno eu via assim que essa pessoa estava me acompanhando (…) Até eu deixei um símbolo, escrito num papel. E aquele símbolo já estava na minha cabeça (…) mas eu não sabia o que seria, depois ele me disse. Aquele símbolo era o nome dele: Sete Flechas.

É interessante notar que, embora vários dos participantes dos grupos transcentrados tenham envolvimento e mesmo vinculação com o espiritismo kardecista, com a umbanda e o candomblé, tem sido uma experiência extremamente rara nos encontros a manifestação de fenômenos mediúnicos envolvendo a “incorporação”. Embora sejam relativamente comuns vivências envolvendo momentânea alteração de identidade e personalidade, algumas da quais chegaram a ser interpretadas por alguns membros do grupo como tendo uma qualidade “manifestação mediúnica”, pessoalmente lembro de ter presenciado apenas um acontecimento, assim mesmo rápido, em que estavam presentes indicativos mais ou menos típicos de que estaria ocorrendo o chamado “transe de incorporação”, com o que concordou o próprio sujeito da experiência, o qual na época era médium umbandista iniciante. De uma maneira geral, por tratar-se de um fenômeno de alteração da consciência fortemente identificado com determinadas doutrinas religiosas, e de interpretação bastante negativa do ponto de vista de outras posições sectárias, intuo que a baixa ocorrência, pelo menos de forma mais explícita, desse tipo de fenômeno talvez se deva a uma espécie de respeito para não chocar, perturbar ou mesmo assustar pessoas, especialmente aquelas de formação católica ou evangélica mais rigorosa, que participam do encontro.

A terceira e última grande categoria de experiências transpessoais proposta por Grof refere-se às “experiências transpessoais de natureza paranormal”. Esse assunto será tratado mais adiante, em tópico específico.

2. Vivência da Religiosidade e Expressão de Atitudes Devocionais

Um dos aspectos mais interessantes dos grupos transcentrados, diz respeito às formas com que as pessoas entram em contato com a dimensão religiosa de sua espiritualidade. Este fator, em grande parte, é influenciado e propiciado pela própria proposta do encontro, e também pela natureza dos convidados, os quais – pessoas no geral já atentas ao desenvolvimento de sua espiritualidade – têm estimulada a intenção de vivenciar a dimensão espiritual de seu ser.

Mesmo os participantes dos encontros transcentrados que já têm todo um trabalho pessoal de desenvolvimento espiritual, por vezes dentro de uma religião mais específica, sentem uma grande libertação na vivência e expressão de sua religiosidade de uma forma desinibida e compartilhada, a qual em outros contextos costuma encontrar pouco espaço público para exposição, sendo habitualmente vivida de forma mais contida, disfarçada e privada, ou então dentro de algum ambiente religioso mais formal e sectário.

Temos aqui um aspecto que também diferencia muito os grupos de encontro e as comunidades de aprendizagem rogerianos habituais dos grupos transcentrados. Nos encontros rogerianos habituais – salvo em momentos fortuitos e pouco usuais – há poucas vivências envolvendo uma religiosidade mais explícita, ou mesmo íntima. Enquanto que nos grupos rogerianos habituais os participantes passam muito tempo pensando em seu próprio jeito de ser nas relações interpessoais, nos grupos transcentrados muitos se envolvem na interação com algo mais profundo, elevado e transcendente, o que assume para a maioria um sentido religioso de contato com Deus. Mesmo nos encontros religiosos formais, que por vezes usam da metodologia do encontro intensivo como forma de propiciar experiências classificáveis como místicas e religiosas, isto se dá dentro de uma armadura tanto a nível sectário quanto na própria estrutura do encontro, altamente direcionado e programado. A total liberdade dos grupos transcentrados acaba por permitir a espontaneidade, tanto ideológica quanto de ação, na expressão da própria espiritualidade de cada um. Uma participante do 8o Encontro Transcentrado, bastante envolvida com a vivência espiritual no Catolicismo, comenta as diferenças que percebeu em relação aos encontros religiosos formais que já conhecera:

O Encontro Trans foi a primeira experiência mística que vivi fora do contexto religioso católico, embora já tenha experienciado essa mística em cursos de liturgia com perspectiva ecumênica e retiros da Renovação Carismática Católica.

O novo foi o “imprevisto” e a liberdade de opção e ação para oração, contemplação e vivência espiritual (trans)

Eu fui com uma expectativa e não foi o susto que eu esperava. Estava com medo por parecer ser algo muito misterioso. Foi extraordinário e gostoso mas não assustador.

A liberdade chamou minha atenção. O clima de liberdade que não há nos encontros religiosos é o que foi mais lindo porque Deus se tornou transcendente como ele é. Não tinha nome, regras e não era manipulado por nenhuma religião. Essa foi a novidade contagiante que uniu a todos porque quando se busca o infinito ele congrega a todos. No infinito está o ponto convergente. Se você me permitir usar um texto bíblico; “um só rebanho e um só pastor” como diria Jesus Cristo. Uma experiência que a princípio parecia “profana” se tornou completamente religiosa. Mais próxima de Deus por ser trans como Ele. Religiosa mas trans porque não se limitou a segmentos religiosos.

Eu coloquei no chão a idéia de que psicólogos (cientistas) como o povo pensa e eu pensava não procuram Deus e só pensam com os pés no chão. Profanos, como pensam os beatos.

Eu achei importante o improviso para facilitar o despojamento do cotidiano rotineiro e a entrega sem preocupações ao poder infinito de Deus. Esta improvisação ajudou-me a elevar-me até Deus porque com ela esqueci o relógio, etc. Não tinha texto para ler, relógio para conferir o tempo, roteiro ou obrigatoriedade para freqüentar qualquer momento do encontro e etc…

Sempre levei tudo na rotina e não havia me preocupado em pensar o quanto ela atrapalha a nossa mística. É por isso que as pessoas têm tanta dificuldade em falar com Deus.

Num certo sentido, não houvessem outras vantagens, a proposta dos grupos transcentrados já seria uma grande contribuição por oferecer esta oportunidade tão rara de diferentes pessoas, de diferentes vinculações religiosas (temos tido participantes de diversas crenças – e singulares misturas delas!) poderem expressar sua religiosidade da maneira que sentirem necessidade ou desejo, de forma individual pessoal e/ou compartilhada. Sinto que, para muitas pessoas ao menos, é uma oportunidade muito liberadora poder estar expressando e desenvolvendo – em pensamentos, palavras, comportamentos e atitudes – sua própria forma de se relacionar com Deus, com o Divino, com o Transcendente e o Sagrado. Há depoimentos de uma sensação muito gratificante de estar em contato com um grupo em que isso é permitido, compreendido e compartilhado, sem as habituais doutrinações e sectarismos, mas como expressão de um desejo comum de entender e se relacionar com o Mistério maior. Uma participante, de anterior formação evangélica, relata o prazer de sua experiência no momento em que, durante o 4O Encontro Transcentrado, toma consciência deste, como ela mesmo diz, “privilégio”:

Eu me lembro que um determinada hora estava um grupo com o “U”, a “S”, outras pessoas, e eu senti o privilégio de estar ali… Sabe, eu fiquei olhando e pensando assim: puxa, eu era de uma igreja, eu queria tanto chegar perto de Deus, eu achava que era daquele jeito, que era de um jeito só, e ali eu senti que eu estava tão próxima, tão próxima, e que era aquilo, que existem pessoas em todo mundo que fazem parte de um povo que quer chegar perto de Deus, e que estão chegando, e que o Trans também tinha essa função ali, uma comunhão com Deus, uma comunhão com as pessoas, algo assim que eu nunca tinha conseguido, raramente eu tinha conseguido na Igreja… com as pessoas – com Deus sim – mas com as pessoas era mais difícil.

Para algumas pessoas o grupo transcentrado é uma oportunidade de descoberta, ou reconciliação, com relação à própria religiosidade, algo que estava pouco desenvolvido, ou reprimido sob mal resolvidos conflitos de natureza religiosa, que afligiram o participante em algum momento de sua vida e acabaram sendo soterrados por concepções mais racionais, materialistas ou psicológicas. Redescobrir a própria religiosidade, ou perceber e integrar, assumindo como um aspecto importante de si, sua dimensão de contato com o transcendente e a divindade, é um acontecimento que por vezes é relatado por participantes como um ganho em sua participação nos encontros:

Descobri que eu sou um templo onde Deus ainda existe. As contradições e opostos que lutavam dentro de mim se uniram transformando-se num elemento novo, onde o humano e o divino, o bem e o mal, o azul e o vermelho coabitam com mais serenidade.

Outro participante, em carta para colega, é enfático ao falar como esta conscientização lhe veio a partir de experiências transpessoais um tanto intensas, inefáveis e mobilizadoras que vivenciou no 1O Encontro Transcentrado:

No 1o, fui para tentar compreender o que seria “Psicologia Transpessoal”, pois estava cético em relação a esses aspectos de nossas vidas.

Dito e feito! Você acredita em Deus? Até então tinha minhas dúvidas… Quando cheguei bem próximo a ele, ou era ele próprio, “esfarelei”. Eu não era eu, não era mais nada e ao mesmo tempo era o mundo. Consegui compreender a essência de minha existência e do Universo. Um estado de ÊXTASE e plenitude, mesclados com pavor, indescritíveis! As pessoas estavam em sincronia. Não existem palavras para descrevê-la, classificá-la ou teorizá-la

A falta de uma doutrina oficial no encontro, e a mistura de pessoas de diferente formação religiosa, acaba oferecendo oportunidade para diferentes expressões rituais ou litúrgicas, por vezes de forma mesclada ou mesmo original. Já tivemos, por exemplo, um ritual de casamento durante o 8o Encontro, o qual foi totalmente realizado nos moldes da livre criatividade grupal, envolvendo desde prece espírita no início até benção em hebraico no final (com direito a pisar na “taça” de plástico), sem contar com fadinha benzendo as alianças com sua varinha de condão e todo um foguetório digno de “casamento na roça”. Uma breve passagem do depoimento gravado de uma participante sobre um momento do 3O Encontro, ilustra este saudável convívio de diferentes culturas religiosas no desejo de acionar a intervenção do divino em favor do encontro:

Eu me lembro de uma vivência legal, nesse workshop, que a gente resolveu… Uma hora a gente estava sentindo que a energia estava muito pesada, e a gente resolveu cada uma cantar. A “T” cantou uma “Ave Maria”, eu cantei o Kadish em hebraico e cantei um hino da Igreja, e tinha uma religiosidade muito grande.

A vivência religiosa, na forma de prece ou devoção, intermeia-se aos relacionamentos e encontros entre participantes, por vezes emergindo de forma espontânea como a simples expressão do vivenciar intenso do momento. Em carta a outro participante, contando como vivenciara o 2O Encontro, alguém descreve um momento desses no seu encontro com um terceiro participante, sendo esse relato interessante também por incluir aspectos que serão comentados em outros tópicos deste texto, como por exemplo as vivências energéticas e a percepção paranormal (quando o destinatário da carta pareceu advinhar onde tocar a mão da autora do relato):

Ficamos um com a mão no coração do outro. Tínhamos um mesmo ritmo, na freqüência da natureza. Era uma integração total e profunda. Senti a presença de Deus.

Perdi o medo e senti a mais profunda paz.

Nossas mão se juntaram como se estivéssemos rezando, Acho que uma oração saiu de nossos corações.

Minha mão se elevou ao céu e bem no centro da palma eu sentia uma pressão. Parecia que um feixe de energia pulsava em mim entrando e saindo por ali.

Quando eu estava ao seu lado na árvore você pressionou minha mão exatamente no mesmo ponto.

Outras vezes, o envolvimento com a religiosidade intensamente vivenciada mescla a oração a outros esforços, também pouco usuais para a psicologia corrente, em favor do processo grupal, o que se observa no seguinte relato, escrito por uma participante narrando sua experiência interior no início da primeira reunião do grupo durante o 8O Encontro, e oferecendo além disso uma amostra da forma “transcentrada” de trabalho de facilitação grupal conforme vem sendo desenvolvida por alguns participantes mais ativos e veteranos dos encontros:

Grupo reunido e silencioso. (…) Logo já fechei os olhos, rezei e pedi a benção de Deus para este nosso VIII Encontro que estava se iniciando. Fui ficando trans, lágrimas corriam de meus olhos e eu estava bastante presente. Pessoas me chamavam a atenção e com elas eu trabalhava.

Eu estava trabalhando com todo o meu SER numa intensidade e dedicação que me deixou bastante satisfeita. Era como se eu estivesse chamando as pessoas para começarem a remar, pois já estávamos todos no “barco”. Rezava e trabalhava para que os medos fossem dissipados e as almas (?) fossem libertadas para se lançarem na abertura da possibilidade das experiências.

De uma maneira geral, essa abertura e esse assumir com relação à própria religiosidade, assim como a vivência grupal dessa dimensão da experiência humana, marca os encontros transcentrados de maneira quase constante, e em muitos dos relatos comentados nos próximos tópicos continuará a ser ilustrada essa observação. Por ora concluo a breve descrição deste aspecto dos encontros transcentrados, com o texto de uma participante que, respondendo ao pedido de relatos feito por uma colaboradora minha (Maria Tereza Vitor Cesar), sintetiza o sentido global que os encontros transcentrados em geral, e o 4o Encontro em particular, tiveram para si. Nesse relato, de várias formas, faz referência à religiosidade que impregnou suas vivências e marca como um todo o efeito intenso e transformador que os encontros transcentrados tiveram em sua vida:

Falar do Encontro Transcentrado…realmente um desafio O que acontece… não sei dizer…EU VIVO! O Encontro Transcentrado… percebo em mim como fazendo parte de mim… agora sinto meu coração bater forte, uma emoção vir à tona, à flor da pele… (…)meu Deus… sinto que não poderia ser diferente o que estou sentindo, se estou me “preparando” para falar de minhas experiências no Transcentrado. Sei que me pediu para falar do que aconteceu comigo lá, mas não consigo deixar de falar do que está acontecendo comigo aqui e agora. Me emociono em pensar naquele momento, no momento único do Encontro como um todo…sinto como mágico o Encontro Transcentrado… choro! Sinto que toca em algo profundo do meu ser agora, como sendo um caminho que me apareceu, um caminho que me chama e que para isto, para seguí-lo, tive que fazer renúncias, senti mudar minha vida, senti desmoronando imagens de vida construídas, senti mudando meu jeito de viver e sentir prazer… Senti mudando meus valores… “T” e “E”!!! Pessoas grandes para mim, pessoas que no 4O Encontro Transcentrado eu sentia um “trio” comigo; um triângulo que me fazia bem! Nas madrugadas, no silêncio das noites, nós três juntos… Foi mágico para mim – me sentia abençoada, me sentia num momento mágico, comungando com o universo, vivendo coisas que somente em momentos especiais vivo. Algo muito maior, como se estivesse comungando um “segredo”, uma outra dimensão… (não quero tirar a palavra que coloquei em primeira mão, mas não é como se estivesse, pois realmente sinto que aconteceu algo como isto)

Não sei falar, descrever determinada situação ou momento, pois agora vejo o Encontro o tempo todo como um momento único o qual sinto inteiramente mágico (…) quando quero falar dele agora só o vejo como “momento único” – me vem a sensação de PAZ, de MAIOR, de significativo para mim – momento que é parte de mim – momento Divino – como se estivesse no céu – porque agora me veio a imagem do céu estrelado e lembrei que olho muito para o céu quando estou no Encontro. Me sinto no céu, junto com as estrelas, com Deus… o Encontro acontece aqui na terra, mas para mim a sensação é que na verdade acontece no céu! Sinto amor, sinto paciência, sinto compreender, aceitar, sinto gratidão, alegria, sinto falar com Deus, sinto muito forte a presença Dele e isto me faz muito bem!

3. Aumento da Percepção e Interação com a “Energia”.

Um dos fenômenos que tenho observado como bastante característico e freqüente nos grupos transcentrados é a atenção e o envolvimento com que significativa parte dos participantes se volta para uma qualidade de “energia” não mensurável por procedimentos científicos aceitos e que é descrita com características transpessoais, isto é, não restrita ao interior dos organismos individuais. Alguns declaram vê-la, a maioria diz percebê-la através de sensações corporais ou de uma indefinida qualidade de intuição ou percepção extra-sensorial.

Na verdade não se pode dizer que se trate de um fenômeno exclusivo dos grupos transcentrados, sendo algo também percebido e verbalizado, embora de forma menos intensa e aberta, em outros grupos vivenciais, situações terapêuticas, ou mesmo situações habituais, conforme o paradigma cultural da pessoa e do meio aceite ou não este tipo de comentário. Hoje em dia, no ambiente Psi, têm se tornado relativamente comuns, em diálogos informais entre profissionais, observações sobre efeitos energéticos relacionados ao trabalho de atendimento psicológico. No campo das disciplinas espirituais o fenômeno é intensa e tradicionalmente enfocado, de variadas formas (basta lembrar as concepções orientais de Ki, Prama, e Kundalini), e muitas das metodologias curativas de vinculação religiosa envolvem atuações que assumem ou sugerem a manipulação de alguma energia dessa espécie (veja-se, por exemplo, as “imposições de mãos”, os “passes energéticos”, as práticas de benzedeiras, os “banhos de descarrego”, os incensos purificadores, etc). O mesmo se observa em toda sorte de terapias ditas “alternativas”, desde a respeitável acupuntura às especulativas terapias por cristais e aromas.

Acredito que o que o encontro transcentrado faça com certa originalidade seja apenas fornecer um ambiente despojado de preconceitos científicos ou dogmas religiosos em que as pessoas possam, se assim desejarem ou sentirem, experimentar e dar curso livre e criativo ao desenvolvimento dessa, entre outras, de suas potencialidades de crescimento transpessoal. E, de fato (ou pelo menos segundo minhas observações e relatos dos participantes) é o que grande parte dos participantes tem feito nos encontros já realizados, conforme procuro sintetizar e exemplificar a seguir.

A nível individual, nos grupos transcentrados têm sido relatadas mudanças bruscas, intensas e, muitas vezes, indeterminadas da qualidade e intensidade pessoal de energia. Pessoas relatam calores, ou frios, intensos e dissociados da temperatura ambiente, formigamentos, ardores, ativação energética de pontos corporais, súbitos esvaziamentos ou preenchimentos energéticos, energias de qualidade agradável ou incômoda, sensações de bloqueios ou liberação energética, etc. Eis, por exemplo, o que afirma uma participante em relato gravado:

Uma coisa que se repete em todos os workshops é que eu me sinto energizada demais, over, às vezes dói até a mão, eu tenho de pôr a mão na terra, eu tenho de pôr a mão na água, eu tenho de fazer alguns rituais nesse sentido.

Alguns participantes observam que a intensidade energética sentida no encontro costuma, ao menos para eles, persistir mesmo após o término deste:

(…) fica um potencial de energia vital mesmo, que leva em média uns três a quatro meses para “gastar”. Uma energia vitalizadora que me impulsiona a realizar projetos, neutraliza o cansaço da vida diária, e neste último encontro [refere-se ao 8O Encontro Transcentrado] até resolveu problemas de saúde (stress, hipertensão) que vinham dando um pouco de trabalho para normalizar.

A energia, muitas vezes, não é sentida como um fenômeno meramente intracorporal, mas como algo intercambiado com o ambiente, inclusive com o todo mais amplo incluindo a terra e o céu, conforme observa um participante ao falar de suas experiências energéticas no 1O e no 2O Encontro, associando-as, além disso, a uma certa alteração da consciência, influenciando sua percepção da realidade:

Sentia uma força vibrar em mim, por todo meu corpo e que vinha do chão. Diferente da força que senti no primeiro encontro que vinha em forma de espiral, também do chão para o céu. E enxergava a realidade de forma sutil, diferente dessa nossa realidade.

Outra participante, escrevendo sobre suas experiências durante o 1O Encontro Transcentrado, também narra vivências envolvendo intercâmbio energético com elementos da natureza – a água, no caso – e aparentemente associadas a estado de alteração da consciência, as quais lhe ocorreram durante caminhada que fez com outros membros do grupo:

Realmente me impressionou o fato de ter tido tantas sensações ao mesmo tempo. O mais engraçado foi que as pessoas que estavam comigo, em alguns momentos, achavam que poderiam ser exageradas minhas descrições sobre tais sensações. Em determinado momento da caminhada chegamos a uma cachoeira, pensamos logo em nos refrescar devido ao forte calor. Estávamos sentados em uma pedra quando fechei os olhos e senti uma vibração muito forte dentro de mim, não sei até agora descrever com palavras o que foi. Sei que comecei a rezar e senti uma energia muito forte, que emanava da corrente das águas que batiam nos meus pés, por alguns minutos acho que fiquei completamente fora do ar. Quando ouvi alguém me chamar é que dei por mim e então resolvi deixar esse lugar, colocando minhas mão dentro d’água e finalizando minha prece. Eu nunca pensei que pudesse ficar tão leve e receptiva às energias que estavam a meu redor.

A nível interpessoal também se verificam relatos de envolvendo a experiência de intercâmbio energético, sendo comum a sensação de que esta energia espontaneamente pode ser transmitida de uma pessoa para outra. Uma participante, em relato gravado em que conta suas experiências no 4O Encontro Transcentrado, fala de um momento destes em que, a partir de uma comunicação não verbal seguida de contato corporal, recebe ajuda de outro membro do grupo para “descarregar” um excesso energético que a estava incomodando:

Eu estava naquela vivência de uma energia muito grande, eu estava me sentindo mal de tanta energia, mal mesmo, doía perna, doía mão, e eu estava no grupo e de repente sinto que alguém está olhando para mim e olho para o “M”, e o “M” estava me chamando, ele chamava com o olhar. (…) Quando ele olhou para mim, Elias eu não sei, mas eu me joguei para cima dele, não sei como eu saí de onde eu estava, eu sei que eu já estava grudada nele. Na hora que a gente se tocou, eu peguei a mão dele, eu senti como se, assim, uma descarga elétrica profunda, profunda, e nós dois começamos a rir, a rir, a rir… E foi muito, muito forte.

Também a nível grupal, muitos declaram-se bastante atentos e sensíveis à intensidade, fluidez, movimentação e qualidade da energia que está presente no ambiente nos diversos momentos das reuniões. Assim, no geral, tem sido um fenômeno característico dos encontros transcentrados pessoas declararem “ver”, perceber intuitivamente, sentir por ressonância corporal, ou mesmo por “invasão” e “contaminação”, essa energia em si mesmas, em outros, inclusive no todo grupal reunido, ou ainda em locais ou objetos determinados. Essa experiência costuma ser verbalizada, sem maior constrangimento, e escutada com respeito, atenção, interesse e credulidade, nos diálogos entre os participantes, seja individualmente ou seja em grupo. Uma parte dos participantes, inclusive, ocupa-se em indagar e trocar informações a respeito destas percepções, tratando-as como indicativos do momento e do processo grupal.

Mais que apenas vê-la, pressentí-la ou intuí-la, vários participantes crêem estar interagindo com ela, de forma passiva ou ativa, sendo bastante comum a manifestação de comportamentos que visam estar modificando ou influenciando intencionalmente a energia observada, sentida ou pressentida em si, nos outros e no ambiente. Dentre as formas mais comuns dessas, digamos assim, “ações energéticas”, estão os abraços, os toques corporais e a “imposição de mãos” a certa distância, que costumam ser praticados sem maiores constrangimentos, conforme comenta uma participante referindo-se às atitudes facilitadoras inusuais por ela observadas nos encontros transcentrados:

Eu tenho percebido que durante o transcorrer do grupo as pessoas se ajudam mutuamente, intencionalmente ou não. Algumas expressam em atos e assumem posturas facilitadoras, outras apenas “são” e às vezes nem se dão conta da contribuição energética que dão ao grupo.

Nas minhas experiências pessoais, eu sempre sinto esta força energética do grupo todo que me faz ir cada vez mais fundo.

O “M” tem um grande potencial energético que ao abraçar uma pessoa faz o papel de facilitador, que desbloqueia energeticamente, não sei se ele usa isto intencionalmente ou não.

O que eu tenho observado é que as pessoas, ou eu mesma em alguns momentos, utilizam a imposição das mãos em outros que estejam em dificuldades. (…) vejo este procedimento como uma doação, ou interação energética entre duas pessoas que se beneficiam mutuamente.

Há ainda participantes que declaram utilizar-se de mentalizações com a intenção de influenciar a energia grupal e também pode ser observada a utilização de outros meios (incensos, água, oração, ruídos, dança, rituais, etc) com a mesma finalidade. A “empatia à distância”, isto é, o comportamento de “sintonizar” mentalmente com pessoas não necessariamente presentes no mesmo ambiente e, através desse contato, tentar exercer alguma influência, é algo que também tem sido relatado com certa freqüência por participantes. Uma delas, referindo-se aos aprendizados que teve em suas participações nos encontros transcentrados, refere-se à descoberta dessas novas possibilidades de atuação terapêutica e facilitadora:

(…) foi crescendo em mim esta maneira de participação. Rezo bastante pelo Encontro, fico atenta ao Grupo, envolvida e ligada no que está acontecendo. Se percebo alguém necessitando de ajuda, procuro ajudá-la. Quando isto acontece, geralmente, até poderia dizer SEMPRE, acontece de maneira inusual, pois sinto que posso ajudá-la mesmo sem falar com ela, sem estar próxima corporalmente. Posso ajudá-la me ligando nela e transmitindo através da minha intenção, pensamento, energia, atos mágicos… o que eu sinto poder ajudá-la. Isto me ampliou muito, na possibilidade de poder ajudar alguém, me trouxe paz pela possibilidade de poder transcender o tempo e o espaço .

4. Aparecimento de Formas “Mágicas” de Pensar e se Comportar

Um curiosa tendência que tem sido observada, de várias formas relacionada aos aspectos acima examinados, diz respeito ao crescente aumento, manifestado no decorrer dos encontros até agora realizados, de uma forma de funcionamento mental, refletida em comportamentos, que parece traduzir um envolvimento com a realidade a partir de um referencial que se pode qualificar, na falta de um melhor termo, de “mágico”.

Alguns participantes adotam, durante momentos ou períodos mais duradouros dos encontros, uma forma de perceber a realidade e com ela interagir bastante diferente da observada como usual em nossa cultura objetiva e racional. Parecem assumir um padrão de pensamento e percepção, e um jeito de ser e atuar, semelhante ao decorrente da mentalidade lúdica e fantasiosa das crianças, da panteísta e mítica visão de mundo das culturas primitivas, do pensamento simbólico e criativo, e da imaginação artística. Digo “mágico” por que nos remete a uma vivência em que o mundo parece encantado, entrelaçando o que é subjetivo e o que é objetivo e ampliando nossas possibilidades de ação e interação de tal forma que só encontra paralelo na forma com que os xamãs, bruxos, alquimistas, pajés, magos e feiticeiros envolviam-se na prática da magia. Não só o mundo, mas o próprio ser do sujeito, e consequentemente sua forma de “ser-no-mundo”, altera-se, assumindo nos comportamentos sua identidade enquanto ser “mágico,” seu jeito “mágico” de ser. De várias maneiras, e em variada intensidade, isto tem sido observado como ocorrência nos grupos transcentrados.

Talvez a forma mais comum dessa manifestação seja a intensa, e quase pessoal, interação que muitos participantes mantém com a natureza num grau de envolvimento tal que caracteriza um estado alterado de consciência e um modificado “mapa de realidade”. A natureza é sempre referida como marcantemente presente durante os encontros transcentrados, seja pelo êxtase que sua beleza e intensidade provoca, seja pela interação energética que permite e alimenta, seja pela surpresa de nela desvendar canais de um diálogo com dimensões transcendentes e misteriosas da realidade.

Uma participante, por exemplo, relatando num diário suas experiências durante o 8O Encontro, fala de uma noite em que, envolvida em sua interação com a lua e com o fogo, consegue transitar para uma outra dimensão da vivência, o que por sua vez parece ajudá-la a integrar-se num todo mais amplo e cósmico de possibilidades:

Nesta noite a lua estava presente, não lá em cima no céu, mas ali no meio do grupo, e sentia um contato quase físico com ela, era como se a estivesse bebendo, um líquido de prata que fervia no calor da fogueira e me transportava, não sei para onde, talvez para o universo.

Pensei que tinha feito o propósito de buscar minha bruxa interior, que de certa forma representava o aspecto feminino de minha personalidade, e ali estava ela, na minha frente, a lua, a fogueira, a noite, e alguém que se aproximava de mim vestida de preto. Na minha visão esta pessoa em momento algum tinha um rosto, apenas era uma figura negra e linda, sem rosto mais ainda. Todo o meu ser a reconheceu e teve certeza de sua presença sagrada. Eu sabia que era a “C” que estava na minha frente, mas em alguma parte de mim via uma figura que não era humana, sem rosto, imponente, e sagrada, e tive a certeza que ela descera da lua para juntar-se a mim. Senti-me inteira, completa, sentei-me perto da fogueira para esperar o sol.

Outra participante, tendo vivido a partir de uma experiência interior a sensação de conexão com o sol, nos conta a qualidade mágica e encantada que a partir daí sua interação com o mundo passou a assumir, incluindo também a vivência de um estado alterado de consciência em que lhe parece possível a interação energética com uma entidade, ou uma personificação, transumana associada à luz de um sol interior e exteriormente percebido:

Aqui fui tomada de uma sensação de paz e tranqüilidade tão intensa que senti não precisar de mais nada a não ser estar aqui e me fazer presente neste lugar entre as pessoas que aqui se encontram. Não senti vontade de falar inicialmente sobre isso, mas apenas desfrutar e deixar fluir esse mar de tranqüilidade que me invadia. E quando durante o encontro as pessoas começaram a falar sobre a dor que estava presente, eu não senti essa dor. Mas ao fechar os olhos vi um sol lindo e imenso sobre nós, vi cores fortes, intensas e reais, senti necessidade de virar as palmas de minhas mãos em direção ao céu e vi que um ser que se misturava com a luz do sol, porém todo de branco, enviava um raio de luz na direção de minhas mãos. Esse raio de luz em contato com minhas mãos se transformava em uma bola de luz, prateada e dourada. Levei então essa bola de luz em direção ao meu peito e a apertei. Senti que ela penetrava em meu coração, se incorporava no meu corpo e preenchia todas as minhas células, do alto da cabeça até a sola dos pés. Senti-me leve, feliz e ao mesmo tempo forte. Ouvi pessoas chorando e automaticamente me dirigi até elas e senti que tinha de tocá-las. E ao tocá-la vi o mesmo ser do alto enviando luz que penetrava em mim e fluía através do meu corpo até as minhas mãos e passava para a pessoa que eu estava tocando. Percebi então o verdadeiro sentido de minha presença neste lugar e o significado real do compartilhar.

O pensamento simbólico e arquetípico é intensamente adotado por vários participantes (temos tido significativa presença de simpatizantes das idéias de Jung), que liberando-se na vivência dessas possibilidades de seu ser, não raro elaboram e executam, sós ou em grupo, trabalhos rituais com finalidade de estar provocando ou propiciando algum tipo de efeito, para si ou para o todo. Um participante conta, em conversa gravada, uma experiência destas que viveu durante o 8O Encontro, quando durante a realização de um ritual que idealizara por inspiração, sente sua consciência e percepção alterarem-se, vivenciando expansão dos limites corporais, interação inusual com elementos da natureza e mesmo pressentimento da presença de entidades transumanas:

À noite… eu resolvi fazer um ritual, sozinho, quatro horas da manhã (…) mexia com os elementais, ar, água, fogo e terra. (…) Eu sentia que não estava sozinho lá, havia pessoas me olhando, passando por mim… parecia como se as árvores falassem, estivessem mais vivas. E eu sentia que eu aumentava de novo, conseguia tocar as árvores, a ponta das árvores… quando eu mexia a mão eu sentia que minha mão se prolongava. E tudo tinha mais vida. (…). Eu antes já estava com vontade de fazer um ritual e no primeiro dia da reunião me veio a imagem de como seria, o que eu levaria, em que lugar iria colocar (…) Eu faria um círculo, e esse círculo como se tivesse

A relação de ajuda no contexto médico-hospitalar: Relato de uma experiência de atendimento psicológico.

Vera Lygia Menezes Figueiredo

* Trabalho apresentado no IV FÓRUM NACIONAL DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA (Brasília, DF –Brasil -28/10/2001 a 03/11/2001).

INTRODUÇÃO

“Quando ouço, verdadeiramente, uma pessoa e apreendo o que mais lhe importa, em dado momento, ouvindo não apenas as suas palavras, mas a ela mesma, e quando lhe faço saber que ouvi seus significados pessoais privados, muitas coisas acontecem.”

(Carl R. Rogers – 1973:210) [Mais...]

Conheci a sra. V. em um momento de desespero frente a alta hospitalar do seu marido. Fisionomia envelhecida e cansada, uma imensa tristeza na voz ao dizer que não aguentava mais a vida que levava. Um casamento de muitos anos, atualmente ambos na 3ª Idade.

A visitação ao homem idoso hospitalizado atendia à demanda do médico-assistente para um apoio psicológico ao doente: pautas comportamentais discrepantes, reativas de complicações do seu quadro orgânico, tornavam-no uma pessoa de difícil trato. Mas, quem pediu ajuda foi a sua esposa, que o acompanhava na internação. Conversei com o casal, expliquei meu trabalho. O doente disse não perceber necessidade de uma psicóloga para si, e tentou estender sua opinião para a esposa. Esta refuta e afirma a sua própria necessidade. Neste primeiro encontro, caracteriza-se uma situação que a sra. V. percebe-se com um problema pessoal grave e importante, que tenta resolver e não consegue.

No dia seguinte, pela manhã, houve uma alta hospitalar – a do marido, e uma baixa hospitalar – a dela , a quem prestei atendimento psicológico por quase dois anos até a sua morte.

Com esta senhora, vivenciei seu adoecer, seguido de um ano de um viver liberto das amarras existenciais construídas, e o seu processo de morrer. Pressuponho que a morte, antes de concretizar-se no corpo, já vinha existindo em sua alma. E somente após a visão explícita do seu feio semblante é que a coragem para ser e viver pôde desabrochar. Na hora do tudo ou nada, a tão decantada liberdade pôde ser experimentada.

Através do relato de uma assistência psicológica efetivada ao longo de uma internação hospitalar, estarei entretecendo os postulados teóricos preconizados por Carl Rogers para uma Relação de Ajuda, além de afirmar a Abordagem Centrada na Pessoa como uma potente perspectiva de trabalho para o psicólogo em contexto médico-hospitalar.

FIXIDEZ E A POTÊNCIA DE SER

“Pode-se também formular a pergunta nos seguintes termos:

será melhor gritar e precipitar seu próprio fim,

ou calar-se e barganhar uma agonia mais lenta?.”.

(Milan Kundera)

A sra. V. é hospitalizada por conta de uma forte dor abdominal, que a nauseia e a deixa enfraquecida fisicamente. Exames são prescritos, hipóteses diagnósticas levantadas. Ela recebe sedativos para a dor, além de hidratação venosa, e é mantida hospitalizada para observação e fechamento de um diagnóstico médico.

Apresento-me para o segundo atendimento. No dia anterior, após desfilar suas mazelas e chorar muito, havia pedido que eu a ajudasse. Encontro-a no mesmo estado: prostrada e lamuriante. Quer muito falar de suas agruras familiares, reclama das necessidades pessoais insatisfeitas por não saber como se desvencilhar de problemas que a mantém sempre no mesmo lugar. Não se queixa da hospitalização, pelo contrário, aprecia a atenção e a solidariedade dos profissionais; sente-se acolhida e protegida, distante dos seus conflitos.

Dispomo-nos a trabalhar juntas. Vamos, então, a cada encontro, possibilitando descobertas sobre si mesma, desvelando sentimentos, compreendendo dificuldades… buscas frustrantes ao longo de uns vinte anos para mais, de um amor idealizado pelo esposo e pouco correspondido, no seu entender. Frustração, raiva, revolta… sentimentos ainda não claramente percebidos por não se encaixarem na imagem que tem de si mesma: é aquela que sempre cede, e que por isso pouco pode se cuidar e se poupar. Não se enxerga capaz de libertar-se, está à mercê do outro, através dele existe – esta é sua questão crucial !. Sente saudades de uma filha (que optou por viver sua própria vida, distanciando-se da família), expressa irritação e tristeza por um filho que se assemelha ao pai em temperamento, e que lhe traz aborrecimentos por conta de uma vida pessoal acidentada.

Nos dois últimos dias de sua hospitalização, observo mudanças atitudinais na jovem idosa que, paulatinamente, vão ganhando expressão, e nas trocas com o meio interpessoal hospitalar vão revelando que um processo de crescimento desponta: o reconhecimento e a aceitação de alguns sentimentos, que favorece a reflexão sobre os seus conflitos familiares e as possibilidades de ação a partir disso; o “ensaio” de algumas atitudes com relação ao esposo, nas suas visitações diárias à doente; a iniciativa de re-estreitar laços com a filha distanciada através de telefonemas convidativos à visitação no hospital; as possibilidades do viver, já esboçadas pela aparição da vaidade feminina no seu dia-a-dia no hospital, pelos telefonemas para os amigos, pelas visitas dos parentes que faz questão de solicitar, e também pelas reivindicações para manter-se bem assistida pela equipe de saúde.

A sra. V. recebe alta hospitalar, sendo recomendada uma continuidade no atendimento médico em ambulatório. Disponibilizo assistência psicológica pós-hospitalização por conta da preocupação demonstrada, de sua parte, de não perder um espaço que percebia vinha lhe fazendo bem. Ela fica de entrar em contato.

O campo relacional estava preenchido por ela e eu e a situação, que são o ambiente. Havia um texto (o mundo interno e subjetivo dessa pessoa) e um contexto (tudo aquilo que acompanhava o seu texto). Quando a sra. V. criticou o contexto, pôde rever o seu texto, possibilitando escolher para além das alternativas já prontas, reorganizando as percepções sobre si própria e sobre o mundo, pois “o comportamento se mantém coerente com o conceito de self e altera-se conforme este último também se altera”. (Rogers, 1992:224)

Havia uma incongruência do self, onde se configuravam discrepâncias entre suas necessidades pessoais, a percepção destas, e as ações que permitiriam a sua satisfação. Havia uma auto-imagem construída alhures no passado, que obstaculizava atualizações, gerando uma existência autolimitada que vinha sendo incomodamente arrastada. “O eu que se afirmava vazio está cheio de conteúdo, que o escraviza justamente porque ele não o conhece ou aceita como conteúdo.” (Tilich, 1976:118)

A tomada de consciência de sua experiência pessoal, segundo ROGERS (Rogers & Kinget, 1971), tende a ser uma diretriz no processo de reorganização das suas condutas atuais e das condutas futuras de sua vida.

Com a liberação do self para novas construções no presente, há uma tendência a um aumento da auto-estima por reconhecimento de potencialidades, que podem ser transformadas em atitudes construtivas e prazerosas, e a redução da angústia por afastamento dos grilhões da não-consciência que tendem a paralisar as expressões criativas. Em outras palavras, dá-se ênfase à experienciação da pessoa, onde a preocupação do terapeuta, nos orienta ROGERS (in Wood, 1994:264), deve estar “não com a verdade já conhecida ou formulada, mas com o processo pelo qual a verdade é vagamente percebida, testada e aproximada”.

TILICH (1976:82,139), discutindo a ontologia do ser, aponta o sujeito da auto-afirmação como um eu centralizado, onde ele é um eu individualizado, apesar deste eu somente poder ser este eu porque tem um mundo estruturado, ao qual ele pertence, e do qual ao mesmo tempo está separado. “Empenhar-se pela auto-afirmação faz uma coisa ser o que ela é” (id:15). Há uma opção a ser tomada, certamente espinhosa e muitas das vezes dolorosa, porém libertadora, que é a de possibilitar a potência que se tem de realizar-se contra a resistência de outros seres.

Eis o ponto de partida para uma Relação de Ajuda: “(…) uma das condições quase sempre presente é um desejo indefinido e ambivalente de aprender ou de se modificar, desejo que provém de uma dificuldade percebida no encontro com a vida”. (Rogers, 1991:260) Contudo, esta relação torna-se possível somente quando acontece debaixo de um clima de aceitação e de crença na capacidade daquela pessoa de empreender, na sua maneira singular, o resgate da sua responsabilidade sobre si mesma até onde ela quiser e puder ir.

FLUIDEZ E AS FORÇAS CONSTRUTIVAS DO SELF

“Temos a tendência a ver na força um algoz e na fraqueza uma vítima inocente.” (Milan Kundera)

“Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir, quando o forte é fraco demais para poder ofender o fraco.”. (Milan Kundera)

Mais ou menos uma semana após a alta, a sra. V. é internada em estado de emergência, indo direto para a UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). Acontece uma cirurgia de longa duração, com momentos críticos pelo seu delicado estado orgânico. Suspeição de câncer intestinal.

A sra. V. pede a minha presença. Momentos difíceis no confronto com a sua realidade de adoecimento, atitudes oscilantes e hesitantes pelo temor da morte. Sentimentos conflituosos relativos aos tratamentos médicos, estados de ânimo flutuantes.

Interconsulta e orientação familiar passam a ser minhas atividades constantes, facilitando as comunicações e amplificando os movimentos de ajuda à doente. A família e a equipe de saúde são estimuladas a participar intensamente desses seus momentos de hospitalização, compreendendo e acolhendo suas necessidades de atenção, de carinho, de apoio enfim.

Com o vínculo terapêutico estreitado em um “setting” flexível e adaptado por nós duas, as variáveis típicas de um espaço hospitalar puderam ser mais bem controladas e minimizadas (telefonemas, entrada e saída no quarto de profissionais ou atendentes, presença da família, etc), possibilitando nesta intimidade momentos de vívidas emoções e ‘insights’. Espontânea e corajosamente a sra. V. vai procurando formular planos de ação concretos, já que a experiência da responsabilidade sobre si torna-se mais aceitável. Emerge decidida a modificar sua vida, a permitir-se viver e a ser feliz. Dispensando os familiares da tarefa de “porta-vozes” (comportamento até então habitual seu), procura maiores explicações do médico acerca de sua doença (já consegue, agora, verbalizar a palavra ‘câncer’); enfrenta o medo pelo tratamento radioterápico prescrito, e lida de uma melhor forma com a difícil questão de uma colostomia permanente (intervenção cirúrgica de desvio do trânsito intestinal). Complementando este ciclo de tratamento intensivo de saúde, uma nova cirurgia é efetivada. A evidência orgânica da sua doença é afastada, até onde os resultados dos exames clínicos podem revelar.

Recebe alta hospitalar, já demonstrando atitudes de engajamento na responsabilidade dos procedimentos de manutenção do seu tratamento, sendo muito estimulada pela filha, que agora a acompanha permanentemente. Após haver experimentado a possibilidade concreta da morte, a sra. V. optou por ressignificar sua vida e libertar-se para viver. Ela havia deixado a morte para o momento real de sua aparição.

Ao longo de um período de mais ou menos um ano, vem visitar-me de quando em quando para contar as novidades. Sente-se ótima, vívida; diz ter-se dado férias da família, está passeando muito. Sua mudança física é surpreendente, parece ter rejuvenescido uns dez anos. Fala-me das coisas que vem descobrindo, de suas conquistas no âmbito pessoal-familiar-social. Às vezes uma sombra insinua-se no seu semblante, é o medo da recidiva da doença. Mas, logo em seguida, abre um sorriso maroto para falar da estupefação da família pelos seus novos comportamentos.

A família, às vezes, vem aconselhar-se comigo: reclamam das mudanças ocorridas na sra. V. e, relutantemente eu percebo, dizem-se contentes por vê-la tão feliz, “tão bem”. A filha, que com ela caminha incansavelmente ao longo do tratamento clínico, pede-me de quando em quando um apoio psicológico: quer partilhar sua tristeza por temer a recidiva da doença, quer entender a possibilidade de ligação da sofrida vida de sua mãe com o aparecimento do câncer, quer confirmar a importância dos estímulos que vem oferecendo para que sua querida mãe possa viver uma vida de forma mais prazerosa.

Através da relação terapêutica per se, configurada como um instrumento necessário e suficiente para focalizar o universo daquele ser que sofre, o enfoque centrado na pessoa facilita as experiências bloqueadas a virem à consciência e poderem ser simbolizadas, gerando assim uma abertura à experienciação, fundamental ao processo de mudança efetiva.

ROGERS (Rogers & Kinget, 1971) havia preconizado que, na liberdade da experiência, a pessoa sente-se livre para reconhecer e elaborar suas experiências e seus sentimentos pessoais, como ela crê que deve fazê-lo. “(…) uma característica desta mudança é que o indivíduo move-se de um estado em que seus pensamentos, sentimentos e comportamentos são governados pelos julgamentos e expectativas em direção a um estado no qual baseia seus valores e padrões em sua própria experiência”. (Rogers, 1992:183)

A liberdade do self possibilita que os recursos da pessoa (potenciais internos) sejam utilizados de uma forma mais construtiva, resgatando forças revitalizantes (fluidez de energia potencial); criam-se condições de vislumbrar metas vitais mais abrangentes e completas (ressignificação do seu momento existencial), abrindo espaço para um desenvolvimento mais positivo (no sentido de não-danoso) e coerente com sua realidade atual. Adquire-se uma maior autonomia nas atitudes e comportamentos para se alcançar os objetivos pessoais. Não se está obrigado a negar ou a deformar o que sente para conservar o afeto ou a estima dos que desempenham um papel importante na sua vida. Confirmando com ROGERS (1992:225): “O resultado essencial é uma estrutura de self com uma base mais sólida, a inclusão de uma proporção maior de experiência como parte do self e um ajustamento mais confortável e realista à vida”.

A MORTE ENFRENTADA COM DIGNIDADE

“A fraqueza de Tereza era uma fraqueza agressiva que o derrotava sempre e que o transformou numa lebre aninhada em seus braços.”

“O que significa ser lebre? Significa que a força foi esquecida. Significa que dali para diante um não é mais forte do que o outro.”

(Milan Kundera)

Enfim, um dia, a sra. V. precisa ser novamente hospitalizada por fortíssimas dores. Há indício de metástase (infiltração de células cancerígenas em outra parte do organismo). Uma bateria de exames é solicitada, e os resultados não trazem muita esperança. Por um curto período de tempo, ela ainda consegue voltar para casa, alternando os momentos de internação. Mas a doença perversa ganha a batalha, e no hospital finda por permanecer, fazendo uso de coquetéis de sedativos cada vez mais potentes. Seu enorme sofrimento perdura por uns quatro meses.

Queria ver-me todos os dias. Eu também a queria ver. Combinamos sobre o melhor momento para conversarmos, quando a sós podia ‘abrir sua alma’, conforme costumava dizer. Havia uma questão que a Sra. V. sempre trazia à baila: como teria sido sua vida, se houvesse desistido do casamento? Foi certo o que fez – prosseguir com ele, ou na verdade abriu mão do seu viver? Ia tentando explorar seus sentimentos no antes e no agora, como um balanço de vida. Pôde comprender que o marido foi o que pôde ser, que muitas prisões foram construídas por ela mesma. Foi-lhe também importante falar sobre os momentos felizes vividos; com que prazer saboreava essas lembranças!

Paralelamente a estes ‘mergulhos para o interior de si’, havia a realidade dos desconfortos da dor que enfrentava, do avanço da doença, e dos procedimentos médicos necessários porém muito invasivos. A isto tudo reagia com vigor, dando-se o direito de exprimir no tempo e na ocasião propícios os seus sentimentos, os seus desconfortos, os seus desejos, o que favorecia a uma menor ansiedade pela hospitalização e pela sombra da morte. Uma “nova” sra. V. descortinava-se aos olhos dos familiares e da equipe de saúde, pois fazia questão de colocar-se como co-partícipe das decisões sobre o seu corpo e o seu bem-estar. As vezes suas atitudes geravam polêmicas, mas ela tinha um jeitinho todo especial de amortecer os choques, conseguindo conduzir seus momentos de vida de uma forma mais autônoma e melhor ajustada às suas necessidades. O terço final de sua vida, no hospital, foi ocupado com as preocupações sobre a morte, seu desejo quanto ao funeral e os seus pertences pessoais, e como a família ficaria sem ela. Momentos pungentes de despedida , de desespero para os familiares, e de tristeza para a equipe profissional.

Uma tarde quis confidenciar um segredo que, disse-me, carregava desde menina, e que nunca teve coragem de contar para ninguém; ela mesma já não tinha certeza se o fato havia acontecido, mas não queria levar esta lembrança consigo. Tudo veio entrecortado por um mar de lágrimas, soluço, tremores corporais. Mal sabíamos que este seria seu último dia de consciência, pois no dia seguinte entraria em estado comatoso e, após três dias, viria a falecer.

Deste baque, o esposo da sra. V. veio a sucumbir pouco tempo após. Ainda nos encontramos algumas vezes nesse meio tempo; a doença crônica, da qual era portador, evoluiu negativamente com muita velocidade. Sua profunda tristeza o impedia de sair do vazio deixado pela morte da esposa. Ele sentia-se como uma lebre, frágil e indefeso; não conseguiu deixar de ser lebre.

Tendo o processo de experienciação desencadeado, eu percebia que nos intervalos entre os nossos encontros a sra V. ‘trabalhava’ muito consigo mesma. Pois quando eu me apresentava no dia combinado, ela já ansiosamente queria compartilhar seus sentimentos, contar as últimas novidades ocorridas. “(…) insights significativos ocorrem no intervalo entre as entrevistas,e embora o insight pareça bastante simples, é o fato de adquirir significado emocional (grifo do autor) e operacional que dá a ele o ar de novidade e nitidez.” (Rogers, 1992:139)

Entendo que a sra. V. pôde singularizar o seu processo de adoecer e até mesmo o seu morrer. Na segurança da relação terapêutica, a sra. V. foi capaz de permitir-se experienciar sua verdade, conhecer-se um pouco mais, construir seu presente e vivê-lo, onde “(…) a raiva é mais claramente sentida, mas o amor também; o medo é uma experiência feita mais profundamente, mas também a coragem.” (Rogers, 1991:175)

Termino este relato clínico valendo-me de uma definição sobre o crescimento pessoal, de C. MOUSTAKAS (in Miranda, 1983:10), bastante pertinente à ocasião:

“O sentido de ligação a outra pessoa é um requisito básico para o crescimento individual. O relacionamento deve ser tal que cada pessoa seja considerada um indivíduo com recursos para o seu próprio desenvolvimento. O crescimento, às vezes, envolve uma luta interna entre necessidades de dependência e de autonomia; mas o indivíduo se sente livre para se encarar se tiver um relacionamento em que sua capacidade seja reconhecida e valorizada e em que ele seja aceito e amado. Então ele estará apto a desenvolver seu próprio potencial de vida, a tornar-se mais e mais singular, autodeterminado e espontâneo”.

CONCLUSÕES

“Aqueles que passam por nós,

não vão sós,

não nos deixam sós.

Deixam um pouco de si,

levam um pouco de nós”.

(Antoine de Saint-Exupéry – “O Pequeno Príncipe”)

O processo orgânico do adoecer leva a uma ruptura da realidade cotidiana da pessoa. Quando a hospitalização faz-se necessária, um nova realidade será descortinada. Neste contexto, há um pulsar humano dinâmico pelos inter-relacionamentos que se constroem, dos quais passiva ou ativamente o doente participa. Em meio ao sofrimento, o doente tende a procurar quem o conforte, quem sintonize com seus sofrimentos; a hierarquia vertical das categorias profissionais não lhe é tão significativa quanto a hierarquia dos valores humanos.

A pessoa, ao ser hospitalizada, mostra-se geralmente confusa e aturdida com o impacto da doença e com as consequências refletidas na sua vida pessoal-familiar. Quer sair disso, quer voltar a ser o que era e como era, assusta-lhe ser e/ou estar diferente. Seu pedido de ajuda é para partilhar sua confusão, aliviar seus medos, livrar-se do desconhecido que a assusta porque é justamente a perda do controle sobre si que teme.

“Do ponto de vista da Abordagem Centrada na Pessoa”, nos alerta ROSENBERG (1987:20), o ‘foco’ é dado pelo cliente (…). Isto implica que o cliente não só levante os temas e conflitos emergentes, como tenha a liberdade para explorá-los ou abandoná-los no decorrer do processo. Mesmo que se disponha de pouco tempo, este procedimento se mantém.” Assistir psicologicamente ao doente hospitalizado intenta facilitar a liberação do self para vivificar as suas forças construtivas. Assim, esta pessoa transforma-se no seu próprio agente de mudanças. “Uma relação de ajuda significa favorecer ao outro as condições mínimas para seu desenvolvimento” (Morato, in Rosenberg, 1987:25). Para tal, o psicólogo centrado precisa estar imediatamente presente e acessível ao seu cliente, apoiando-se na sua experiência, momento a momento, para facilitar o movimento terapêutico. “Acredita-se que um número pequeno de encontros, ou mesmo um único, tem uma função terapêutica e pode ser suficiente para que o cliente se organize internamente e prossiga sem ajuda”. (Rosenberg, 1987:19).

O método de trabalho de uma ‘Relação de Ajuda’ pode ser entendido como propiciar um clima contínuo tal de aceitação e liberdade que a pessoa possa re-pensar e avaliar seus desejos e necessidades. Autovalorização e autocorreção são as duas operações fundamentais advindas do conhecimento reflexivo. Este tipo de conhecimento é uma capacidade potencial existente em todo ser humano de compreender-se a si mesmo e resolver seus problemas, de modo suficiente para atingir a satisfação e a eficácia necessárias a um funcionamento adequado para si.

A Intervenção Psicológica Centrada na Pessoa, caracterizada pela Relação de Ajuda, deve ter como fundamentos:

· As atitudes do psicólogo (necessárias e suficientes) que ensejam a função facilitadora do processo de auto-exploração e mudança na pessoa

· A pessoa é capaz de viver e elaborar suas experiências de forma integradora, utilizando os seus próprios recursos potenciais.

Quando necessário, o psicólogo centrado também pode vir a ser um facilitador das comunicações, colaborando para uma maior integração na ação terapêutica da equipe de saúde, através do estímulo à reflexão sobre as atitudes profissionais e a capacidade de escuta refinada, de forma a que possam oferecer um ambiente acolhedor e facilitador para a expressividade da pessoa hospitalizada.

O profissional de saúde, via de regra, escolheu sua profissão motivado pela ajuda ao próximo e comunga um sentimento de humanidade. Muitas das vezes as emoções do doente são identificadas corretamente; contudo, precisa haver uma disponibilidade interna daquele profissional para ‘abrir-se ao outro’, caso contrário suas intervenções tenderão a ser diretivas, podendo até mesmo inibir ou bloquear a expressividade do doente. ROGERS (1991:290-294) comenta que a maior barreira à comunicação interpessoal é a natural tendência da pessoa para avaliar, julgar, e conseqüentemente aprovar ou desaprovar as afirmações e as atitudes de outra pessoa ou de outro grupo, partindo da apreciação do que foi dito do seu próprio ponto de vista, do seu quadro de referência interno. “Assim, quanto mais fortes forem os nossos sentimentos, com muito mais facilidade deixará de haver elementos comuns na comunicação”. A relação, deste modo, não conduz ao crescimento/desenvolvimento do outro. “E nessa medida creio que agora mais facilmente se evidencie que nem todas as relações interpessoais mantidas pelo indivíduo são consideradas relações de ajuda. Nem todas ajudam a crescer”. (Rosenberg, 1987:26)

Olhar o contexto hospitalar sob o prisma da Abordagem Centrada na Pessoa é considerar as forças dos relacionamentos emocionais nas mudanças, nas restaurações e nas melhoras do indivíduo. É acreditar nas expectativas e valores individuais como as partes mais importantes no sucesso para um bem-estar pessoal, a partir do seu compromisso de trabalhar no sentido da mudança. E isto tanto pode ser verdadeiro para o doente como para o profissional de saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. 35ª ed. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 1985

MIRANDA, Clara F. de & MIRANDA, Mário L. Construindo a relação de ajuda. 6ªed. Minas Gerais: Crescer, 1983

ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991

_______ Liberdade para aprender. Minas Gerais: Interlivros, 1973

_______ Terapia Centrada no Cliente. São Paulo: Martins Fontes, 1992

_______ & KINGET, Marian Psicoterapia e Relações Humanas. Madrid: Alfaguara, 1971

_______ & ROSENBERG, Rachel L. A pessoa como centro. São Paulo: E.P.U., 1977

ROSENBERG, Rachel L. (Org.) Aconselhamento Centrado na Pessoa. São Paulo: E.P.U., 1987

TILICH, Paul A coragem de ser. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976

WOOD, John K. (org.) Abordagem Centrada na Pessoa. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1994

A pessoa por trás do diagnóstico

Marcos Alberto da Silva Pinto

*Texto escrito em 2003 e apresentado no VII Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa em Nova Friburgo/RJ em 2007.

O presente trabalho visa questionar o diagnóstico e a sua real utilidade. Busca-se iniciar uma reflexão a respeito do diagnóstico servir muito mais para manter o estigma da pessoa que sofre e o conforto do profissional de ajuda em firmar-se como pessoa superior nesta relação.

A proposta do trabalho é apresentar alternativas ao diagnóstico, buscando encontrar a pessoa que existe e sofre por detrás deste rótulo, pessoa esta que como todas, possuem sentimentos, histórias e sentidos e que quando estigmatizadas normalmente deixam de ser enxergadas como pessoas com potenciais, sonhos, desejos e possibilidades.

O trabalho é elaborado a partir de experiência pessoal, profissional e teóricas, buscando convidar o leitor a repensar a postura diagnóstica através dos princípios básicos da Abordagem Centrada na Pessoa.

_____________________________________________________

É improvável que alguém tenha condições de precisar há quanto tempo o diagnóstico é utilizado como forma de ajuda no campo da psiquiatria e da psicologia.

O primeiro “Manual de diagnóstico e estatísticas de distúrbios mentais”, da Associação Americana de Psiquiatria foi editado em 1952, sendo este, o primeiro manual oficial de distúrbios mentais a conter um glossário de descrições de categorias diagnósticas.

Este manual, hoje em sua quarta edição devidamente revisada e ampliada, foi e é amplamente aceito pela maioria da comunidade que trabalha com saúde mental no Brasil e no mundo, e segundo ele mesmo, tem a função de “realizar o tratamento do paciente”.

Na própria psicologia, existe uma vasta literatura a respeito do diagnóstico, sua importância, suas formas, técnicas e métodos.

Todos eles, devidamente embasados e demonstrando a sua importância e funcionalidade na relação de ajuda.

É importante verificarmos o sentido original da palavra diagnóstico (gnossis= conhecimento; dia=através), ou seja, conhecer o outro através. Conhecer o outro inteiro, por trás da fachada, em seus sentimentos e sentidos.

Em minha opinião, infelizmente, o que vemos hoje como diagnóstico é algo completamente oposto a esta concepção.

Gostaria de convida-los, através deste trabalho a refletir a respeito do diagnóstico (este que temos hoje em dia). Tão pouco questionado em função de uma quase unanimidade quanto a sua importância na relação de ajuda.

Em um de seus livros, Carl Rogers menciona o seu medo em escrever algo que seja controverso, e que ao escrever, fazia isto como se fosse apenas para ele próprio ler, pois se escrevesse pensando que outros o leriam, provavelmente mediria as suas palavras e não seria inteiro e autêntico em suas idéias.

É com este espírito que eu desejo me posicionar acerca do tema mesmo tendo claro que esta é uma visão muito pessoal e diferente da grande maioria.

Quando eu era criança, me lembro que adorava bife de fígado, até o dia em que descobri o que era um fígado. Perdi a fome, o desejo e o interesse no tal bife. Ainda que me contem o quanto ele é necessário e faz bem a saúde, simplesmente não o como.

Já não me importa mais nem o seu gosto, se há grande quantidade de ferro, etc. Assim funciona o rótulo.

Durante a minha vida profissional, tenho acompanhado em meu consultório, pessoas que chegam já devidamente diagnosticadas tanto por colegas quanto por outros profissionais de saúde.

Muitos chegam por sua própria conta buscando o seu diagnóstico.

Em minha opinião, o diagnóstico tem nos servido muito mais pra estigmatizar e menos para ajudar.

Por meio do diagnóstico, o outro já não interessa, os seus sentimentos, medos, necessidades. A pessoa que está por detrás do diagnóstico vira mero coadjuvante.

Embora muitas vezes revestida com uma capa de necessidade, a minha impressão é que o diagnóstico tem servido, na maioria das vezes, como manutenção a um modelo confortável e arcaico para o profissional de ajuda, que desta forma, abre mão do contato, do relacionamento e do vínculo, que a meu ver é o que de fato importa nesta relação.

Quando se diagnostica o outro, a meu ver, se está colocando a pessoa em uma condição inferior. A pessoa passa a ser o segundo plano. O diagnóstico afasta o profissional da pessoa.

Muitas vezes, em meu consultório, tenho encontrado pessoas previamente diagnosticadas, e o que tenho visto é que esta situação tem colaborado para a própria pessoa sentir-se inferiorizada e conformada com a situação, em muitas vezes até se alimentando e trabalhando para a própria manutenção deste.

Frases do tipo: – Afinal eu sou mesmo depressivo; – O que se pode esperar de um esquizofrênico como eu; a meu ver colaboram para que a pessoa perca a crença na sua possibilidade de se desenvolver e enfrentar a sua dificuldade em condições de igualdade, buscando a sua libertação e melhoria da qualidade de vida. Ao invés de cuidar, o diagnóstico tem servido para que haja uma total descrença e pré-conceito com a pessoa que sofre.

Há muitos anos, em uma visita a um hospital psiquiátrico, conversei com uma senhora que me contava estar em sua oitava internação. Contou-me que desta vez derrubara um prato de comida no chão e soltara um palavrão, o que fez com que a sua família acreditasse ser o início de uma nova crise, o que resultou na sua atual internação. Questionei esta senhora dizendo que eu já havia, por muitas vezes, derrubado coisas e dito palavrões e que isto não fazia com que eu fosse internado. A senhora olhou pra mim com lágrima nos olhos dizendo que eu não tinha o estigma de louco e por esta razão eu derrubar um prato e ficar irritado tinha um significado para as pessoas, mas em relação a ela a mesma atitude tinha outro significado.

Em outra ocasião uma cliente me disse que não agüentava mais passar pelas tais crises de depressão. Eu disse a ela que se estivesse passando pela mesma situação de vida que ela, provavelmente também estaria muito triste e sofrendo. Ela ficou meio chocada e me disse que eu era a primeira pessoa que entendia o seu sofrimento sem rotulá-lo. Depois disso sentiu necessidade de questionar a sua própria “depressão” e concluiu que este era o nome que davam para o seu sofrimento, e que ela merecia simplesmente se sentir triste ou alegre de acordo com o andamento da sua vida. Decidiu que não seria mais apenas um rótulo que a empurrava pra baixo. Resolveu buscar em si a sua capacidade de caminhar em direção a vida.

Certa vez ainda, um rapaz diagnosticado como “esquizofrênico”, me procurou e toda vez que eu aceitava as suas atitudes e enxergava por trás do seu rótulo o seu sofrimento ele me dizia que não tinha jeito pois era um “esquizofrênico”. Eu sempre mencionava que entendia que ele vivera a maior parte de sua vida com este diagnóstico, mas eu me interessava mesmo por seu sofrimento, independente do nome que lhe deram. Um dia ele chegou ao consultório com aquela fisionomia de sempre, trazido por parente e ao fechar a porta me disse que andava pensando no que conversávamos e que ele em função do diagnóstico que recebera, nunca se dera ao trabalho de encarar as suas dores e sua vida, e que a partir daquele momento queria olhar para si, para as suas angústias, medos, sonhos… No início me disse que não se sentia confiante em demonstrar pra todos que se percebera como um ser não mais inferior, pois tinha medo da reação das pessoas que já estavam acostumadas com isto. Depois, começou a pensar que do mesmo jeito que podia ser ele mesmo ali comigo, gostaria de tentar ser assim com os outros. Para isto concluiu que deveria começar a se posicionar. A família espantada passou a questioná-lo e a me questionar, pois ele começara a ser meio hostil e questionador. Começou a dizer não e isto desagradara à família que havia se acostumado com uma pessoa dependente e dócil. Na opinião da família, ele estava piorando, embora para ele este era o início de sua libertação. Para minha tristeza, depois de algum tempo, ele desistiu da psicoterapia dizendo-me que não tinha forças para lutar contra o rótulo que lhe fora imposto de “esquizofrênico”, e que de certo modo, a psicoterapia estava lhe fazendo mal, pois nela, se via uma pessoa “normal”, mas que como apenas ele e eu o víamos assim, ele não encontrava forças para enfrentar as pessoas que amava. Disse-me chorando que iria escolher ser o “esquizofrênico” conhecido e aceito de sempre.

Este é apenas alguns de tantos exemplos dos males, que ao meu ver, os diagnósticos produzem.

Talvez o maior problema para se abrir mão do diagnóstico, seja o de acreditar na capacidade natural da pessoa em se autodirigir.

Outra dificuldade é que abrir mão do diagnóstico significa que o profissional pode perder parte do seu “poder” e “superioridade” sobre o “paciente”.

Provavelmente poucos profissionais de ajuda queiram se colocar numa condição de igual perante o outro, pois isto acarretará numa perda de seu “status”, e provavelmente “em nome do bem”, será mantido esta tradicional forma de “ajuda” de opressor versus oprimido.

É sabido por todos os profissionais que buscam a Abordagem Centrada na Pessoa como sua referência, que desde o início, esta abordagem foi conseqüência da percepção de Carl Rogers a respeito do mal, ou pelo menos da “ausência de ajuda” que o diagnóstico pode causar.

O próprio Rogers nos conta em várias situações a sua experiência quando trabalhava em um centro de orientação infantil em Rochester onde uma mãe que ele entrevistava através de um questionário pronto visando o diagnóstico do filho ao se despedir comentou algo como: – Que pena, achei que aqui poderíamos conversar a respeito daquilo que me aflige.

Neste momento, ele percebeu que o enfoque estava sendo dado ao questionário, as regras, ao diagnóstico e não a pessoa que era a parte realmente importante em todo o processo.

Este foi o primeiro passo de Rogers em direção a esta nova visão que hoje conhecemos como Abordagem Centrada na Pessoa.

Há aqueles que possuem como referência a ACP e defendem o diagnóstico como forma do profissional poder se comunicar com outros profissionais que não tem como referência a ACP. Desta forma, estamos nos enquadrando a um modelo que coloca a pessoa em um segundo plano e estamos nos curvando a pressão e ao padrão de outras referências. O mesmo respeito que devemos ter com colegas que possuem outras referências, devemos saber exigir ao nos posicionarmos contra o diagnóstico da forma como este é realizado e mantido.

Não podemos esquecer que o importante, na relação de ajuda, é a pessoa.

Para mim, não agrada colaborar para que a pessoa do cliente seja ou se sinta contaminada com rótulos, pois isto apenas colabora para que ela perca a crença em si e em sua condição de buscar um movimento de libertação interna. Crescimento está intimamente ligado à liberdade e o diagnóstico em nada colabora para isto. Interessa-me a pessoa que está por trás do diagnóstico. A pessoa que sofre, que tem sentimentos e histórias. A mim, agrada olhar o outro em sua unicidade, respeitá-lo em seus sentimentos e sentidos e deixá-lo caminhar em seu caminho apenas facilitando condições favoráveis para que ele se desenvolva em sua direção própria.

Este talvez seja o momento de nós, que acreditamos em uma forma de ajuda mais humana, nos unirmos em torno do não diagnóstico e buscarmos uma ajuda cada vez mais livre de regras, nos libertando também para irmos em direção à pessoa que sofre de uma forma verdadeiramente genuína.

Referências:

American Psychiatric Association (2000). Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios mentais (4a. Edição). São Paulo: Ed.Artmed

Moffatt, A.(1983). Psicoterapia do oprimido: Ideologia e técnica da psiquiatria popular (4a. Edição). São Paulo: Cortez Ed.

Nowen, H.J.M.(2000). Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Ed.Paulinas.

Pinto, M.A.S.(1999). Apostila do Curso de introdução a Abordagem Centrada na Pessoa. São Paulo.

Rogers, C., Stevens, B.(1991). De pessoa para pessoa: O problema de ser humano. São Paulo: Pioneira.

Rogers, C.(1983). Um jeito de ser. São Paulo: EPU.

A partir da mitologia: uma reflexão sobre a criação do humano

Emanuelle Coelho Silva

*Texto escrito em 5/3/2006.

No início era Caos. Tudo existia, mas não havia ordem. A fonte de todas as coisas pairava latente na natureza do Caos. Em um determinado instante uma ordem se manifesta e surge então a primeira divindade: Gaia, a Terra.

Há tempos o homem cria seus mitos, seus deuses, que refletem, (até hoje) a sua própria natureza, os sentimentos interiores, medos, desejos mais profundos, sempre acrescidos por elementos que remetem a existência à imortalidade e ao prazer e satisfação de cada sentimento e emoção (humana), que se torna divina.

Os mitos, as histórias criadas são em sua maioria de caráter atemporal, acontecimentos e personagens misturam-se sem o cuidado de datas e seqüências. O mesmo acontece com o inconsciente humano, que também age de tal forma, resgatando passados, confundindo-se com o presente.

No inicio mitológico, tudo era CAOS, e na natureza humana, é o caos que inicia as grandes manifestações, as descobertas de si e as revelações. O constante caos só se fará ordem à medida em que o homem é tomado pela “TERRA”, pela firmeza de suas idéias, de seus sentimentos, para começar a origem. Nietzsche, em seu livro Assim falou Zaratustra, diz que é preciso dar vazão ao caos para que a luz possa se fazer, ou seja, o caos é o início da criação, é o início de tudo. No dia-a-dia, a cada novo caos instaurado, caminha-se para a criação ou o surgimento de uma nova perspectiva, de um novo horizonte, um novo “deus (interno)”.

A criação, o caos, o desenvolvimento são sempre permeados por sentimentos e sentidos, desejos e instintos, que conduzem o ser na busca por si mesmo. Um desses sentimentos mais aclamados por cientistas, poetas, artistas e pessoas comuns é o AMOR, sensação que invade, que enlaça, que embriaga os amantes. Esse sentimento tão estudado pela ciência, pela filosofia, pela psicologia e por diversas áreas, ainda é fonte de grande mistério, e está presente em alguns dos mitos mais interessantes, principalmente na greco-romana.

Ao tentar entender esse sentimento, que trava uma batalha entre o bem e o mal, o homem cria mitos e histórias que fascinam e o exaltam. O que é o amor? Por que o amor? Os mitos, que foram criados para explicar (e aceitar sentimentos humanos) também fazem alusão ao amor, de formas diferentes, desde o mais fraternal ao possessivo e doentio, que leva a outros sentimentos e sensações que resultam, sem sempre em frutos doces.

Um dos mitos greco-romanos que pode ser citado é o de Ares (Marte para os romanos), que tem a paixão, o amor e a tragédia como marcas de sua história.

Ares apaixonou-se por Afrodite (Vênus para os romanos), a deusa mais bela do Olimpo, que era casada com Hefesto (Vulcano para os romanos), filho de Juno. Hefesto era o castigo das deusas a Afrodite, que obrigou o casamento entre eles, para puni-la pelo poder de sedução que ela exercia sobre os outros deuses do Olimpo.

Afrodite e Ares encontravam-se constantemente as escondidas até que Apolo (Sol para os romanos), o deus que tudo via, contou a Hefesto que sua mulher o traía. Hefesto então, confeccionou uma rede de ouro invisível e armou uma armadilha para os amantes. Quando foram consumar mais uma vez o adultério, Afrodite e Ares ficaram aprisionados ao leito e Hefesto trouxe todos os deuses para observar a vergonha de Afrodite. Ao serem libertados, Afrodite esperava que Ares assumisse o seu amor e mesmo expulsos do Olimpo fossem vagar pelos cantos da terra juntos. Porém Ares frustrou a deusa abandonando-a. Afrodite, a deusa do Amor, transformando seu amor em ódio, rogou uma praga para que Ares se apaixonasse por todas mulheres que visse, tornando-se assim um deus constantemente apaixonado e agressivo, que tomava as mulheres a força quando estas não cediam à sua sedução. A primeira mulher que encontrou e se apaixonou foi Aurora esposa de Astreu.

O masculino e o feminino, o amor e o ódio, a traição, a vingança e a inveja, sentimentos humanos são exaltados no “mundo dos deuses” e vividos por eles. Essa dualidade de sentimentos, a “fraqueza” que eles remetem são extremamente humanas e compartilhadas. Uma analogia, onde o amor de Afrodite e Ares pode representar o que é verdadeiro, mas que sofre as interjeições e intervenções das normas (sociais), que aqui são representadas pelo casamento e pela ira das deusas invejosas. Esse amor, que transforma e embriaga também causa dor e decepção, que distinguem homem e mulher mais uma vez, que separa a dualidade, e os coloca em lados diferentes, quase opostos, onde o desejo de ser amada, sob qualquer circunstância, leva a mulher a querer o amor sob sua forma mais plena, já o homem, não consegue assumir o amor que sente, repreende seus sentimentos, em razão das regras, das normas pré-determinadas, procurando recompensar o sentimento renegado, com paixões diferentes e menos profundas. Essas “posições” tomadas por masculino e feminino os colocam em patamares diferentes e as reações dos deuses não diferem em muito da reação do homem e mulher do mundo inferior do mundo humano.

Essa emoção enigmática e potente, que é o amor, desperta no homem um instantâneo fascínio, quase surreal. Um conceito (quase) mítico contado e cantado em imagens, versos e poemas. É sempre muito evocado, através dos séculos, nas mais criativas e diferentes formas. Registros singulares e marcas de encontros e separações o acompanham.

A história de Hades também pode ser citada como exemplo de um amor, é verdade que é a história, talvez menos romântica entre todos os deuses da mitologia greco-romana, mas não menos importante para tentar entender a luta milenar do ser humano para aceitar seus sentimentos, seus desejos e instintos mais profundos.

Hades é o deus do inferno, conhecido como Plutão pelos romanos. Sua história traz uma ilustração dos sentimentos mais instintivos, sobre a dor e a morte, com base no amor.

Com a divisão dos reinos, os domínios do subterrâneo, o inferno, e tudo que se esconde, incluindo pesadelos e sentimentos de culpa pertencem a Hades. De seu reino, Hades ausentou-se apenas duas vezes. Numa dessas visitas fora de seu mundo, pediu a Zeus que lhe desse sua filha Perséfone (Prosérpina para os romanos) em casamento. A resposta de Zeus foi a de que a decisão cabia a mãe de Perséfone, Deméter (Ceres para os romanos). Deméter afirmou que necessitava de sua filha para a fecundação das plantas. Hades não se deu por vencido e aproveitando o momento em que Perséfone estava na Sicília colhendo flores, raptou-a utilizando o seu manto de invisibilidade. Quando Deméter percebeu o desaparecimento de sua filha, procurou Zeus que consultou ao deus que tudo via, Apolo, que lhe informou do ato de Hades. Deméter então prometeu provocar a escassez de alimentos até que sua filha voltasse, mas só aceitaria sua volta se esta não houvesse consumido alimentos no reino dos infernos. Hermes, o mensageiro dos deuses, foi chamado para descer ao reino de Hades e convencê-lo de devolver Perséfone. Mas já era tarde, ela tinha comido um grão de romã, ficando presa eternamente no subterrâneo. Hermes conseguiu convencer Hades a dividir sua amada com a sua mãe e esta a aceitar sua filha. Perséfone passou então a freqüentar o reino dos infernos durante o outono e inverno, a ajudar sua mãe durante a primavera e brilhar no Olimpo durante o verão.

Este mito remete aos sentimentos humanos relacionados a morte, aos pesadelos, as tormentas, as culpas, e ao amor que dilacera e separa. Uma vez experimentado o novo, o desejo, o sexo, mesmo em pequenas porções, como um grão de romã, prende ao desejo de descobrir e de aventurar-se em novos caminhos, deixando para trás a inocência do amor (o abandono da mãe, experimentando o alimento do inferno de Hades). Percebe-se o quão profundo os sentimentos, os desejos mais profundos conduzem a atos que nem sempre são aceitos ou esperados. É a eterna busca de satisfação do ser humano, através do desejo, do amor.

O amor passa de sereno a extravagante, dilacerador, provocador. É o momento em que o instinto e o sentimento se misturam e dão origem a reações imprevisíveis, impetuosas humanas.

O que foi dito até o momento é de um amor que envolve o ser e o outro. Mas além da dualidade, existe o amor a si próprio, a contemplação de si, que é um sentimento primário do homem, que leva a desdobramentos nem sempre tão aceitos pela sociedade, pela cultura.

Esse sentimento por si mesmo, remete ao desejo de crescimento, de aprimoramento, de aceitação, de grandeza, de paixão por si mesmo, e revela-se tão grandioso e poderoso, que por vezes é punido pela lei (castradora) social. A contemplação de si mesmo (o narcisismo) é por vezes associada ao egoísmo e ao desprezo pelo outro e pode ser bem ilustrada pela história de Narciso, que foi punido por sua autocontemplação.

Narciso era um jovem de singular beleza, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias adivinhou que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferente aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa Eco – segundo outras fontes, do jovem Amantis – e seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. A flor conhecida pelo nome de narciso nasceu, então, no lugar onde morrera.

O que pode pensar, (sem tentar ser conclusivo) mas apenas explicativo sobre o amor e a evolução do ser, é que o homem é entremeado pelo amor, sob suas várias formas e ações, que provoca o crescimento e o desenvolvimento da personalidade individual, o SER. A partir desse sentimento tão peculiar, a existência passa a ser criada e a idéia do outro a ser construída em si. O amor é base, é chão.

Não se pode esquecer da interferência do outro, que vem acompanhada da percepção individual que este outro tem dos sentimentos que também o compõe. Os sentimentos de si e do outro dão origem à nova formação ou desenvolvimento da nova percepção que cada um desses terá da realidade que estão inseridos, inscritos.

Ser homem, humano é demasiado complexo e por vezes pode ser bastante penoso, mas é sempre a partir dessas provações, desses obstáculos que o eu, que o ser é moldado. Conhecer-se, aceitar-se a partir de sentimentos, instintos, de si, do outro, é o caminho para o tornar-se.

O caminho percorrido em busca da formação do ser é permeado por todos os sentimentos que os mitos trazem consigo, amor, ódio, ressentimento, vingança, contemplação, inveja, sexualidade, desejo, instinto, sentimentos que o homem partilha da sua história com a dos deuses, e que, quase que inconscientemente, derramam sobre este, as expectativas de entendimento e de resolução de tais problemas, que o próprio homem é capaz de solucionar.

Vemos o quão são complexos o sentimento do homem de tornar-se SER, e a busca incessante por respostas, que por vezes, vêm ilustradas por histórias e mitos mirabolantes e cheios de efeitos que tentam criar uma ligação à vida cotidiana, mesmo que inconscientemente ou instintivamente.

Essa é a grande viagem do ser humano, a busca por si mesmo, a busca por explicações em suas próprias criações, sejam os mitos, na arte, na música, na ciência, seja na cultura que circunda e molda os passos desse árduo e longo caminho.

Lembrando Guimarães Rosa, que soube como poucos descrever esse sentimento de falta e eterna busca, o homem é um SER em busca de SI MESMO, através do outro e de si próprio (o eu e o outro):

“Viver é muito perigoso e carece de coragem.

Viver é muito perigoso porque ainda não se sabe.

E aprender a viver é que é o viver mesmo”.

Bibliografia consultada

VIEGAS, Sônia. Amor e Criatividade. Belo Horizonte, Mar. 1994.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução Alex Marins. Editora São Paulo: Martin Claret, 2005.

ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. Tradução Manuel Jose do Carmo Ferreira e Alvamar Lamparelli. São Paulo: Martins Fontes, 1995