Patrícia Moreira Bastos
*Texto escrito em 2000
Agradecemos a todos aqueles que aceitaram, acreditaram, e contribuíram direta e indiretamente , na construção de novas idéias para a reconstrução de um novo homem . [Mais...]
CONVITE AO ENCONTRO
( DIVISA)
Mais importante do que a ciência é o seu resultado ,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heróicos.
Mais importante do que o reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa.
Mais importante do que a procriação é a criança,
Mais importante do que a evolução da criança , é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos , o imperador.
Em lugar de passos criativos, o criador.
Um encontro de dois: olhos nos olhos , face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus,
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus olhos;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-á com os meus olhos.
Assim , até a coisa comum serve o silencio
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias ;
O lugar indeterminado , num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o Homem indeterminado.
(Jacob L. Moreno)
INTRODUÇÃO
Historicamente, segundo prof. Afonso Fonseca (in GUSMÃO,1999,17) a Abordagem Centrada na Pessoa tem representado nas últimas décadas um importante marco referencial no estudo do comportamento humano , assim como da ação terapêutica nas relações do indivíduo , revelando a interação cada vez maior e mais significativa de áreas de saúde afins , interessadas no desenvolvimento do sentido do valor humano em uma abordagem humanista , sob um enfoque fenomenológico existencial.
No III Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa , em Ouro Preto-MG/99, em um momento de elevada inspiração rogeriana, um grupo de ‘ terapeutas empáticos ‘ buscou desenvolver algumas reflexões sobre os indivíduos portadores de transtornos mentais , internados em instituições psiquiátricas, e a reorganização de seus padrões referenciais rompidos pelo sofrimento psíquico .
Então , sob o ponto de vista humanista , o que é saúde mental ? Quem é esse homem portador de transtornos mentais ?
Com base nos pressupostos rogerianos, como reconstruir a visão de homem ? Como avaliar os níveis de estagnação da expressividade humana , sem estar preso nas teias dos estigmas ?
Como facilitar a quebra dos ‘ grilhões ‘ das incongruências tão cristalizadas nestes sujeitos ?
Enfim , por onde começar para propor o resgate da autonomia de novamente tornar-se a ser ?
Estes mesmos ‘ terapeutas ‘ partiram para um grupo de interesse , no X Encontro Nordestino da Abordagem Centrada na Pessoa , Serrambi-PE/2000, visando compartilhar tantas dúvidas e propor parceria na descoberta de novas trilhas de entendimento , sobre este sujeito em conflito com o universo .
O resultado das discussões deste rico encontro foi a constatação de que pensar na ACP à partir de uma visão política assistencial na Saúde Mental , é uma idéia , como diria prof. Afonso Fonseca, “satisfatoriamente ousada “, entretanto , que acaba levando a uma outra questão : o aspecto existencialista do poder no contexto institucional e a ACP.
Segundo prof. Afonso Fonseca, a ACP responde muito bem em termos da relação pessoa a pessoa , porém existe nela uma lacuna grave a respeito da reflexão sobre a instituição , talvez na reflexão sobre o poder institucional e pessoal , comentado por Rogers de forma bastante genérica . A Abordagem Centrada na Pessoa parece ser precária na reflexão sobre o papel do ” ser terapeuta ” enquanto instituição – fala-se mais no terapeuta enquanto pessoa , apesar do ser terapeuta também representar ” ser instituição “.
Um outro aspecto citado, é a ausência de uma reflexão sobre a cultura , considerada também uma lacuna na ACP, principalmente quando se pode pensar nos fenômenos culturais, p.ex. no que diz respeito aos vínculos nos psicóticos ou no sujeito atípico como ser cultural.
Que cultural é esse , quando o sujeito funciona não conceitualmente, mas rompendo com todos os padrões consensuais e potenciais com a cultura , rompendo com a linguagem ?
Independente de qualquer posição , segundo ainda prof. Afonso Fonseca, a ACP é aplicável na reflexão institucional, mas não se pode deixar de considerar a existência de sua fragilidade neste contexto : muitas vezes fica-se perdido num oceano de teorias sem a contextualização institucional. Daí surgir a necessidade de se pensar sobre as lacunas existentes na ACP relativas aos aspectos institucional e cultural que podem certamente proporcionar um maior entendimento do processo fenomenológico existencial da abordagem e sua ampliação teórico-prática no contexto da Saúde Mental .
Num hospital psiquiátrico , pode-se verificar uma cultura profunda estruturada p. ex., você quer se relacionar com paciente enquanto pessoa , mas você não é visto como pessoa por ele , pois você é um agente institucional; e, como é que fica isso ? Se um terapeuta de consultório é considerado um agente institucional, em um hospital psiquiátrico , não restam dúvidas quanto ao seu papel institucional.
A superação da condição institucional parece ser possível , na medida em que ao se fazer reconhecer a dimensão institucional, buscar afastar-se um pouco do referencial da ACP para uma outra direção ; os psiquiatras ingleses existencialistas Ronald Laing e David Cooper, trabalharam bastante próximos da Abordagem Centrada na Pessoa , sob o enfoque fenomenológico existencial, porém envolvendo em maior escala a questão do ” paciente psiquiátrico “, enquanto outros , como Basaglia, Rotelli, Goffman, Michel Foucault e Alfredo Monfat, centraram seus trabalhos na questão institucional.
Nesta perspectiva , é possível obter o insight da questão institucional, visto à partir de uma visão fenomenológica existencial na ACP, estabelecendo uma ponte com a dimensão institucional, seja psiquiátrica ou não , como forma de superar a relação limitada da ACP da pessoa como pessoa , e só pessoa .
Paralelo à reflexão institucional e sua contextualização teórica , existe a possibilidade de facilitar ao paciente psiquiátrico alguns princípios rogerianos como : tendência atualizante, congruência e auto-aceitação para possibilitá-lo na (re) aquisição de sua identidade e potencialidades. E com estes indicadores de autonomia será possível verificar as variáveis que interagem em todo o processo terapêutico.
Portanto , segundo prof. Afonso Fonseca, toda a bagagem teórica que se possa construir quanto a questão institucional na ACP e o crescimento do indivíduo a partir da aplicação de seus fundamentos , poderão representar uma melhor maneira de abordar um paciente psiquiátrico como pessoa e/ ou como relação humana .
DESCENTRANDO PARA CENTRAR NA PESSOA
Não se pretende no momento , falar sobre a pessoa do terapeuta , nem daquele que pode ou consegue procurar espontaneamente ajuda .
Na verdade , tenta-se pensar no sujeito que perdeu seu potencial atualizante (de expressão ) ou encontra-se com sua capacidade de auto-regulação comprometida ou fragmentada; para tanto , visa-se basear-se nos princípios da ACP projetados, e realmente centrados, na pessoa portadora de transtornos mentais e/ ou sofrimentos psíquicos .
Neste aspecto , propõe-se, seguindo as condições satisfatórias para o processo terapêutico citado por Rogers, identificar e facilitar adequações às necessidades do sujeito considerado ” alienado “, despojado de vontade , rotina , cotidiano e possibilidades de escolhas .
O que é Saúde Mental ? O que é ter saúde mental ?
No contexto da Saúde Mental lida-se, freqüentemente com termos como ” doença mental “, ” loucura “, ” desajustes emocionais “, ” transtornos e sofrimentos”, etc. para os quais encontra-se inserido o homem .
É importante observar que no momento em que o indivíduo perde sua percepção de unidade do Eu , no momento em que seu eu encontra-se descontrolavelmente fragmentado, se submete, vive um sofrimento tal , principalmente em razão de deixar de lado , de perder , a possibilidade de criar , de produzir , de ser útil, enfim , de apenas ser . Conforme BRUNELLO (1988,03) “… pode-se verificar que pouca atenção é dada para o conhecimento do modo como o paciente e sua comunidade vivem dia-a-dia , seus costumes e valores . Se acreditamos que a doença mental é uma ‘ doença do viver ‘, segundo Thomaz Szazz, como é possível compreender o paciente na sua totalidade se não considerarmos como fundamental o conhecimento do que o indivíduo tem de mais profundo e vivo dentro dele: a sua cultura ?”
É exatamente à partir deste aspecto , que a situação se agrava , é quando o indivíduo se dá conta da sua integridade enquanto ” ser “, em todas as dimensões , ser ameaçada à estagnação. FIGUEIREDO (1997,132) cita que ” não deixa de ser suspeito que o indivíduo se descubra como dono inalienável de um tesouro – que é sua própria vida – no momento que sua produção , seu consumo , seu trabalho , seu lazer , seus motivos e suas emoções são medidos, previstos e programados de forma a se integrar docilmente à dinâmica da cultura das massas .”
Segundo FONSECA FILHO (1980), para Rogers, destacando as idéias buberianas, todo processo terapêutico é considerado como um encontro , uma ” terapia do relacionamento”. Acrescenta citando Buber, “… que a relação Eu-Tu é uma realidade ontológica que não pode ser reduzida ao que acontece em somente um dos membros do relacionamento.”(1980,27) Porém , entende que , ainda para Buber a relação Eu-Tu , entre terapeuta e cliente nunca estaria em níveis iguais na situação real , aliás uma “… relação (…) muito mais num sentido do que em ambos (…) Concorda, porém que possa ser um profundo diálogo existencial.”(1980,30)
Conforme ainda o estilo buberiano, o homem só poderia ter consciência ou garantia de sua individualidade e singularidade no mundo à partir do encontro , da interação , ou da relação Eu-Tu. E neste aspecto , a condição de receptividade, de abertura , para o encontro , enfim , da relação , é que constituiria o homem enquanto integridade existencial. Sem essa relação , o homem não se reconhece a si próprio , divide seu Eu , distanciando-se do Tu , estabelecendo uma grande cisão na sua capacidade de sentir e de ser no mundo com o Outro .
“O sentido de identidade exige
a existência do outro por quem a pessoa é conhecida .”
(LAING,1987,153)
Sabe-se que o desajuste emocional vivenciado por um indivíduo , pode levá-lo freqüentemente ao desequilíbrio social , o que vem representar a descontinuidade de sua condição de produção – quem não consegue corresponder às normas (institucionais) estabelecidas, é a estigmatização de uma participação não mais ativa para o sistema produtivo .
É esse indivíduo “excluído” das condições (institucionais) de produção estabelecidas, quem “perde” seu poder de escolher e decidir , forçado a atribuir , a entregar para terceiros , sua autonomia sobre si ; fadado a não poder ( ser ) e a não merecer desejar , sonhar , querer , não precisa pensar , muito menos sentir , e mais longe estão ainda suas condições de exercer os papéis de autor e ator de sua própria história e do mundo .
Para MAY (1998) três problemas desintegram o homem moderno : a sensação de vazio , a solidão , e a ansiedade , os quais apresentam por sua vez três raízes: a transição dos valores sociais , a dicotomização da visão / valor de homem , e a ineficácia da linguagem .
O ser humano precisa viver em um processo contínuo de renovação num sentido dinâmico : sua busca é sempre desenvolver-se, melhorar, crescer . Na medida em que vivencia com freqüência a ” (…) idéia de incapacidade para fazer algo de eficaz a respeito da própria vida e do mundo em que vivemos.”(MAY,1998,22) surge o ‘ vácuo interior ‘ resultante da falta de sentido de suas potencialidades.
É exatamente à partir deste vazio , onde se depara com as indecisões e as incertezas , enfim , com a percepção da incapacidade e ineficácia da sua autonomia , que o homem busca relacionar-se com o outro ( ou outros !!!) visando com este intercâmbio , adquirir , segundo MAY (1998,25) “(…) autoconsciência, base de sua capacidade para orientar-se na vida .”, o que consequentemente o distanciaria da solidão , já que de forma geral , ” Todo ser humano adquire grande parte do senso de sua própria realidade pelo que os outros dizem e pensam ao seu respeito .” (MAY,1998,28)
Segundo MARTIN (1984,11) a concepção moreniana de homem apresenta ” dupla dimensão individual e relacional”; no aspecto individual ” seu núcleo antropológico é a espontaneidade “, o que para Rogers representaria a tendência para atualizar-se ou a auto regulação, considerando a espontaneidade a essência , a fonte singular do homem que facilitaria sua interação com o outro .
O homem é um ser inacabado e imperfeito , por isso sua adaptação às contradições pode causar-lhe sofrimento, ” não é completamente condicionado e determinado ; ele mesmo determina se cede aos condicionantes ou se lhes resiste (…) Ele não simplesmente existe, mas sempre decide qual será a sua existência ., o que ele se tornará no momento seguinte (…) o ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor , se possível , e de mudar a si mesmo para melhor , se necessário .”(FRANKL,1991,112)
De que maneira então , pode-se acompanhar a dinâmica de comportamento , sentimentos e relações de uma pessoa “descontextualizada” e “despersonalizada”?
A REALIDADE ( POSSÍVEL ) DO INDIVÍDUO INTERNADO
UMA ESPÉCIE DE ” ESTUFA PARA MUDAR PESSOAS “(*)
OU UMA FORMA DE ” LAR PROTEGIDO”
DA CAPACIDADE DE TORNAR-SE A SER ?
(* GOFFMAN,1974,22)
A instituição psiquiátrica é um estabelecimento dirigido à assistência de pessoas tidas como dependentes , sem responsabilidades por si mesmas e que são vistas ( ainda !!!) como grande ameaça à comunidade , apesar de ‘ não intencional ‘.
Para GOFFMAN (1974), a ” instituição total ” representa um espaço com características residencial e de trabalho , onde um contingente significativo de pessoas , em condições similares , “separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo , levam uma vida fechada e formalmente administrada”(11). Toda instituição domina uma certa parcela do tempo , interesse e vontade de seus ” internos “, desvendando suas tendências de ” fechamento “. O termo ” total ” representaria nesta perspectiva , o estabelecimento de barreiras relativas ao aspecto social com o contexto externo .
O controle das necessidades e/ ou expressões humanas pelas instituições totais é apresentado por Goffman como um fator básico , indicativo do poder de autoridade e vigilância , para que haja o cumprimento das tarefas pré-determinadas, para atender aos objetivos oficiais da instituição , “…incapacitação, intimidação e reforma.”(GOFFMAN,1974,77)
Nas instituições totais observa-se comumente dois grupos , um sob controle caracterizado pelo grupo de internados, e outro pelo grupo da equipe técnica , ou de ” terapeutas “. O primeiro grupo , vive na instituição , com acesso reduzido ao contexto externo (1a mutilação do eu ); o segundo grupo trabalha muitas vezes em regime de escala de plantão ou sistema de carga horária ( obrigatória ), livremente integrado ao mundo exterior .
Freqüentemente , a instituição preocupa-se com a reabilitação , ou seja, com o “(…) restabelecimento dos mecanismos auto-reguladores do internado(…)”(GOFFMAN,1074,67); entretanto , o que na verdade acontece é que após a sua liberação , o internado nem sempre corresponde ao desejado pela equipe dirigente , pois o retorno à sociedade é acompanhado de sentimentos de angústia , resultado da vivência de um determinado modelo de conduta e “(…) totalmente exilado da vida .”(GOFFMAN,1974,64)
Nesta perspectiva , o internado atribui à instituição total , as suas responsabilidades (das quais se libertou!?) em razão da desculturação e suas conseqüências no âmbito da sociedade , e o estigma .
O termo estigma , é estabelecido pelo censo comum para a inclusão depreciativa de determinados atributos , caracterizando uma ” identidade social “, na redução da capacidade e potencialidades de um indivíduo a uma categoria de estereotipo indesejável . Portanto , “o termo estigma , será usado em referencia a um atributo (…) mas o que é preciso na realidade , é uma linguagem de relações e não de atributos .”; um traço que rotula, que marca profundamente alguém pode representar um indicativo de “normalidade de outrem , portanto ele não é em si mesmo , nem honroso nem desonroso ,”(GOFFMAN,1982,13)
Como o funcionamento de uma instituição total é similar a do Estado , pode-se então constatar a presença significativa de conflitos de relações e de status , entre os internados, em razão dos padrões humanos mantidos nas interações institucionais.
“(…) para estabelecer uma relação com um indivíduo ,
é necessário considerá-lo independentemente daquilo que
pode ser o rótulo que o define.”(BASAGLIA,1985,28)
Basaglia inclui no que denomina de ” instituição da violência “, os espaços destinados ao tratamento psiquiátrico , onde se observa o estabelecimento de papéis e funções , através da condição de produção do trabalho . Na verdade , este quadro parece refletir exatamente , as relações de poder “(…) a violência exercida por aqueles que empunham a faca contra os que se encontram sob sua lamina.” (BASAGLIA,1985,101) que traduzem o uso da violência como instrumento de controle do objeto-doença ( sujeito ) e a exclusão de todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente no sistema .
Segundo Basaglia, as instituições têm seus mecanismos próprios para camuflar suas contradições reduzindo os atritos , multiplicando resistências , solucionando conflitos provocados, para manter ou perpetuar sua condição de poder . Então , a instituição “Existia para problematizar o problema do enfermo , para o qual a única identificação era a estrutura hospitalar , feita para destruí-lo. Desta maneira o internado era obrigado a participar daquele único objetivo , colaborando ele próprio para a sua total desumanização.” (BASAGLIA,1985,279)
Nesta perspectiva , sua ação terapeutico-educativa visa ajustar o indivíduo a assumir o papel de ” objeto de violência ” como única e possível condição de sua realidade ; nessa inter-relação , observa-se o envolvimento simultâneo do ‘ paciente ‘ com sua doença , o terapeuta e via este último , a sociedade . A sociedade , por sua vez , informa os instrumentos para classificar os indivíduos , “o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma (…) categorias .” (GOFFMAN,1982,11)
A relação entre o indivíduo doente e a sociedade ( leia-se também instituição ), é então identificada como similar , ou muito próxima da relação do terapeuta e o ‘ paciente ‘, na medida em que se constata a postura conivente do terapeuta , o significado real de sua intervenção como reflexo das imposições institucionais, e o papel de ajustador de pessoas doentes na condição de ‘ objeto de violência ‘.
Percebe-se que mesmo despido das indumentárias institucionais, a pessoa doente é mantida enquanto “(…) objeto de uma violência que a sociedade exerceu sobre ele e que continua exercer , uma medida em que , antes de ser um doente mental , ele é um homem sem poder social , econômico ou contratual: é uma mera presença negativa , forçada a ser problemática e contraditória com o objetivo de mascarar o caráter contraditório de nossa sociedade .”(BASAGLIA,1985,113)
Estabelecendo-se uma linha de identificação entre a pessoa que está doente e a instituição , configura-se nesta relação o papel de passivo e de aceitação do controle do primeiro , como uma situação de significado único e estático . A inter-relação institucional, entretanto , enquanto vivência , parece estar fundamentada na negação de valores para o internado, caracterizado como “(…) irreversível objetivado pela doença , o que justifica, no plano prático-institucional, a relação subjetivante com ele instaurada.”(BASAGLIA,1985,274)
Acompanhando Foucault, na análise histórica do surgimento do hospital , no papel de agente terapêutico , pode-se observar que seu início se caracteriza com o acolhimento de pessoas pobres – dever social de proteção à sociedade , então , no lugar do meio de cura , um “morredouro”. O papel de interventor do hospital sobre a doença começa a tomar forma , ainda com base na ordem social , com a aplicação de mecanismos de controle ( ou ‘ disciplina ‘) de contaminação intra e extra-hospitalar.
Neste aspecto , Foucault define “A disciplina é uma técnica de exercício de poder (…)” (1986,105) que mesmo aperfeiçoando-se tecnologicamente tem o poder de vigília permanente nos indivíduos .
O hospital , no final do século XVIII passa a ser considerado uma instituição terapêutica e de cura , com a identificação do indivíduo doente sob sua responsabilidade , situação na qual o indivíduo assume um novo papel , o de ” objeto do saber e da prática “.
Reportando-se a questão da ‘ loucura ‘, que antes do século XVIII ” era essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão ” (FOUCAULT,1986,120), somente no começo do século XIX, tem-se registro do uso de internamento para diagnóstico e terapêutica da ‘ loucura ‘, então tida como ” desordem na maneira de agir , de querer , de sentir paixões , de tomar decisões e de ser livre .” (FOUCAULT,1986,121)
Segundo Foucault, é exatamente à partir desta perspectiva , que a instituição é reconhecida como um espaço de confronto , que produzirá “(…) dois efeitos : a vontade do doente , que podia (…) permanecer inatingível …” revelando sua desordem pela resistência à vontade institucional, e, “(…) a luta que à partir daí se instala (…) conduzir a vontade reta (…) perturbada à submissão e à renúncia.” (FOUCAULT,1986,122)
Mais uma vez , parece ficar cada vez mais clara a relação de poder como fator determinante da interação do homem doente e sua ‘ vontade de ser ‘ ; ao mesmo tempo que a instituição tem em seu saber uma verdade ( conhecimento e produção da doença ), pode submeter esta relação “(…) pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente (…) (FOUCAULT,1986,122) , neutralizando qualquer interferência , interna ou externa , que ameace ou coloque em risco seus mecanismos institucionais de controle .
É desta forma portanto , segundo Foucault, que “as relações de poder (…) condicionavam o funcionamento da instituição asilar , aí distribuíam as relações entre os indivíduos (…)(1986,127)
“a saúde mental está baseada em certo grau de tensão ,
tensão entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar ,
ou o hiato entre o que se é e o que se deveria vir a ser .”
(FRANKL,1991,96)
Por outro lado , ao referir-se quanto ao sofrimento psíquico vivido pelo indivíduo sob diversas circunstancias, num contexto hospitalar , pode-se eleger nas relações existentes entre as condições e ambientes de trabalho , e a ” emergência de sintomas ou doença mental “(PITTA,1991,15), o ponto frágil de convergência entre diversas categorias profissionais , a tecnologia , e os usuários com os seus processos de doença .
Neste aspecto , o impacto com a impotência frente a própria dor , o sofrimento e a morte , resulta na negação em forma de poder , através de instrumentos institucionais, o que equivale a dizer que ao indivíduo doente é cerceado a capacidade de refletir , observar , decidir , e, da responsabilidade de si .
A condição de doente representa sob o ponto de vista social , a perda da potencialidade de produzir , “e, portanto , de ser ” (PITTA,1991,37); não produzindo, o estigma reflete um indivíduo desacreditado, sem direitos , identificado como alguém que “(…) não seja completamente humano (…).”(GOFFMAN,1982,15)
Historicamente a loucura surge enquanto algo fantástico , sobrenatural , onde atitudes míticas poderiam explicar e/ ou intervir em suas manifestações , ou como resultado do descumprimento de normas e/ ou revelações divinas. Posteriormente , passa a representar o que é oposto à razão humana , o que foi associado diretamente à exclusão . E, à partir de pensamentos inovadores , a “desrazão humana ” (PITTA,1991,81) ganha uma nova importância- objeto da ciência .
PERCORRENDO AS TRILHAS DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL
Segundo Laing, o ser humano pode ser visto à partir de diversos ângulos , e ” em fenomenologia existencial, a existência em questão pode ser a nossa , ou a do outro . Quando o outro é um paciente , a fenomenologia existencial torna-se uma tentativa de reconstruir sua maneira de ver-se a si mesmo em seu mundo , embora no relacionamento terapêutico o enfoque esteja na maneira de ser do paciente em relação a mim .” (LAING,1987,24)
É possível verificar-se então , que a leitura fenomenológica existencial pode ter um indicativo do modo como o terapeuta sente e age, determinando a forma de ser do paciente . E Rogers registra o momento de compreensão relativo ao ‘ movimento do indivíduo ‘, enquanto algo significativamente contínuo , um processo dialético, “(…) a vida , no que tem de melhor , é um processo que flui, que se altera e onde nada está fixado.”(ROGERS,1990,38)
Neste aspecto , segundo Figueiredo “A fenomenologia da existência (…) humana descobre que o homem é um ser que não tem essência alguma pré-definida. A existência é o modo de ser de quem projeta e realiza seu destino , indissociavelmente vinculado a uma situação , mas transcedendo-a num impulso incessante para a frente , para o futuro , para o nada , para a morte (…). A compreensão do indivíduo – são ou ‘ doente ‘,- implica na reconstrução do seu mundo , na explicitação dos horizontes implícitos que conferem sentidos a seus atos e vivências conscientes , no desvelamento do projeto existencial que subjaz a todas as suas ações .”(FIGUEIREDO,1997,37). Entendendo-se então que sendo toda consciência , sempre consciência de alguma coisa , e a reflexão sobre a intencionalidade embutida nesta consciência expressa a formalização do conteúdo de seus objetos , é possível estabelecer parâmetros , explicar , enfim traçar as diferentes formas de interação do homem com o ( seu ) mundo .
Para TAMBARA (1999,51) a abordagem centrada percebe o indivíduo em sofrimento psíquico , enquanto personagens de ” expressões ” distorcidas de uma tendência positiva e construtiva que não obteve as condições necessárias para realizar sua função de crescimento , auto realização e socialização. É entender que neste indivíduo , a capacidade de expressar e/ ou buscar condições de sobrevivência e desenvolvimento de potencialidades, encontra-se comprometida, como conseqüência de aspectos conflituosos e de desajustes em sua forma de viver .
O homem é livre para tornar-se a ” ser “; a retomada de seus papéis de autor e ator de sua própria história , insere-o em seu meio sócio-histórico-cultural, já que o campo fenomenológico de vida precisa “alimentar-se” adequadamente de inter-relações , para uma consciência crítica e de auto realização plenas.
“A ‘ vida plena ‘ é um processo , não um estado de ser .
É uma direção , não um destino .”
(ROGERS,1990,166)
Para Rogers (1990), o caminho representado pela ‘ vida plena ‘ é resultado do livre arbítrio pelo indivíduo , na condição única de liberdade psicológica para deslocar-se em qualquer direção .
Conforme alguns autores existencialistas , e, com base em Justo , “(…) o princípio norteador da pedagogia rogeriana seria o fato que não se pode ensinar diretamente às pessoas , mas tão somente facilitar-lhes a aprendizagem.”(in GOBBI,1998,27)
Interagindo informações relativas à liberdade de deslocamento e a facilitação pedagógica , May sugere que “(…) quem se encontra à beira da psicose experimenta muitas vezes uma urgente necessidade de procurar contato com os outros seres humanos . É uma reação sadia , pois esse relacionamento constitui uma ponte para a realidade .”(MAY,1998,28)
Entretanto , como ensinar a ” vida plena ” referida por Rogers para alguém que perdeu seu potencial atualizante? É possível dizer a alguém , carente do saber sentir-se, como é o gosto de um sorvete de chocolate ?
E se, com tanta compreensão e aceitação incondicional , na facilitação do crescimento do outro , perceber-se que na verdade , a utilização de recursos internos latentes , estaria limitando a experiência de sua sensibilidade , assim como a possibilidade do ( poder ) sentir a si próprio ?
CONCLUSÃO
Atualmente , e de diversas formas , observa-se que em suas relações o homem moderno vem interagindo de modo pouco afetiva e com baixo teor de ( ou falsa ?) gratificação , tornando-se, possível e passivamente , um ser autômato ; o fato é que esta interação vem refletindo no baixo nível de prazer vivenciado com tudo aquilo que se pode criar e/ ou produzir , em suas relações sócio-culturais e de trabalho . Por outro lado , conviver com diferenças e contradições , é (re) aprender a construir-se e de forma contínua , novas respostas às situações antigas e/ ou respostas às situações novas , ajustando-se e re-significando o sentido em sua vida .
Neste ponto de vista , Gusmão esclarece que somente “(…) à partir do momento em que o homem é capaz de enfrentar as contradições que existem dentro dele, se instala o seu processo de conscientização e de mudança; se instala nele, com mais agudeza , essas contradições – e a insatisfação e a necessidade de mudança pessoal e social ganham força.”(GUSMÃO,1999,37)
O indivíduo tem em si ( mesmo que adormecido) potencial , recursos e toda uma gama de informações e mecanismos para realizar o seu desenvolvimento enquanto ser . Daí, ser considerado o mais capacitado para controlar e propor as mudanças de sentimentos e comportamentos na sua própria vida .
Retomando então o indivíduo portador de transtornos mentais , internado em hospital psiquiátrico , aquele com seu potencial crítico de ser e da vontade limitados, como lidar com o princípio de autoridade na sua condição de autonomia e responsabilidade ?
Como enfrentar as condições institucionais estabelecidas na relação da liberdade de ser e a negação de valores para garantir os mecanismos de controle e camuflagem de distorções ?
Como lidar com a impotência para controlar dor e sofrimento, sem contaminar-se com a tendência (institucional) de negar e moldar o outro à partir de modelos do saber-poder?
Com a capacidade de expressar sentimentos empobrecida ou quase nula , e apresentando uma postura de ser fragilizada e/ ou fragmentada, como facilitar a aprendizagem para a auto consciência em tornar-se pessoa ?
Enfim , como construir , através da Abordagem Centrada na Pessoa , a trilha facilitadora da identificação da existência do poder ( inerente ) do indivíduo , para dominar suas propostas de mudanças relativas a auto-imagem, auto consciência e vontade da auto realização num contexto institucional?
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
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